Escravidão é uma necessidade do capitalismo, afirma José de Souza Martins

Em novo livro, o sociólogo e professor da USP analisa o fenômeno da servidão contemporânea e seu papel na produção capitalista

 24/05/2024 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 07/06/2024 às 16:35
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Para José de Souza Martins, a escravidão não é uma etapa rumo a uma forma racional de capitalismo nem simplesmente resultado da maldade humana, mas uma necessidade histórica que ainda hoje se faz necessária para o processo do capital – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Marcos Santos/USP Imagens e Reprodução/Editora Unesp

Em setembro de 2022, havia mais de 27 milhões de trabalhadores ao redor do mundo vivendo em situação de escravidão, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Desse total, 4 milhões estavam nas Américas. No Brasil, em episódio recente, ocorrido em fevereiro de 2023, 194 trabalhadores da colheita de uva no Rio Grande do Sul foram escoltados pela Polícia Rodoviária Federal para a Bahia, após serem resgatados de condições semelhantes à escravidão.

A Lei Áurea de 1888 e seus equivalentes ao redor do globo, como os dados acima atestam, não acabou com a escravização de seres humanos por outros seres humanos. A expansão do trabalho assalariado, legislações trabalhistas e o propagandeado avanço do capitalismo não corresponderam à extinção de uma forma de relação laboral que, para qualquer um, é condenável. Fruto da maldade e ganância individual de certos sujeitos?

Nada disso. Trata-se de uma parte indissociável do próprio capitalismo, um de seus mecanismos de sustentação e reprodução. É o que revela a análise crítica do sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP José de Souza Martins em seu mais recente livro, Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-Escravista, lançado pela Editora Unesp. Trata-se de uma coleção de artigos independentes mas unidos, como explicita o autor, por uma “mesma e demorada observação sociológica” e por uma unidade interpretativa.

Martins se propõe a uma análise científica do problema da escravidão contemporânea, que se afasta do senso comum e das explicações rasteiras e mistificadoras. Lidar com o problema da escravidão que ainda persiste no século 21 exige, para o professor, a mobilização de uma sociologia crítica, de inspiração no pensador alemão Karl Marx (1818-1883). Um repertório analítico capaz de ultrapassar respostas simplistas, que não chegam até as estruturas profundas da questão.

Capa do livro do professor José de Souza Martins, lançado pela Editora Unesp – Imagem: Reprodução/Editora Unesp

Para Martins, a escravidão é uma parte necessária do processo de produção do capital. Essa forma não capitalista de trabalho não é apenas uma etapa na evolução para um capitalismo ideal, livre de irracionalidades, mas uma necessidade do próprio capitalismo. “Escravidão contemporânea e capitalismo se determinam reciprocamente”, escreve o professor. O trabalho escravo ilumina justamente as contradições desse sistema econômico.

Trata-se de um subcapitalismo, acessório à forma principal de exploração que é o trabalho assalariado. Corresponde a uma sobreexploração que aumenta a taxa de lucro do capital reduzindo o preço pago pela força de trabalho. No caso brasileiro, Martins aponta que não se trata de um resquício da escravidão pré-1888 e tampouco de uma reinvenção contemporânea do capitalismo, mas parte de um processo global.

“No mundo inteiro, o desenvolvimento do capitalismo se deu e tem se dado não por meio de uma revolução capitalista, a chamada revolução burguesa, mas por meio de uma contrarrevolução anticapitalista motivada por uma conciliação entre o capital e formas pré-modernas de exploração do trabalho e de posse da terra”, escreve o professor. Dito de outro modo, para se expandir, o capitalismo precisou e ainda precisa se apoiar em elementos não capitalistas, como o trabalho escravo.

A situação brasileira, para Martins, tem como traço peculiar nosso subcapitalismo e suas contradições. É uma maneira de o capital organizar seus negócios em espaços nos quais o Estado está precariamente presente e a escravidão aparece para os trabalhadores como uma “opção inevitável”. Representa o embate entre aqueles que não têm nada e os detentores do capital, “um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido”.

Na análise do professor, a questão fundiária é central para entender o caso brasileiro. Nosso capitalismo começa a ganhar corpo no início do século 19 e toma forma com o fim do tráfico negreiro e a Lei de Terras, que transformou a terra em equivalente do capital, acessível pela compra, em 1850. Foi preciso quase quatro décadas, até a Lei Áurea, para a confirmação das “bases anticapitalistas do capitalismo brasileiro”. Uma estrutura que surge não a partir de uma revolução burguesa, mas de uma reação à própria racionalidade do capital.

O resultado é a união entre capital e propriedade da terra. O capitalista lucra sem produzir, a partir da renda da terra. Um processo consolidado com o Estatuto da Terra, de 1964, no início da ditadura militar (1964-1985). “O capitalismo brasileiro levou mais de um século para se tornar um capitalismo de capital subsumido pela renda fundiária e subsidiado pelo Estado. E constitutivamente subsidiado por formas não capitalistas de relações de trabalho, como a da ‘escravidão contemporânea’”, escreve Martins.

Essa escravidão dos dias de hoje, comenta o professor, é fruto desse capitalismo insuficiente, que precisa de elementos não capitalistas para crescer. Na análise clássica de Marx, há a divisão entre capital constante e capital variável, o primeiro ligado às matérias-primas e equipamentos necessários à produção, e o segundo, ao salário pago aos trabalhadores. Nesse quadro, o trabalhador escravo se torna capital constante, matéria-prima para a reprodução do capital. “Há uma dimensão genocida na escravidão contemporânea e na sobre-exploração do trabalho como recursos de obtenção de um lucro extraordinário para o capital”, escreve o professor. “São elas um verdadeiro subsídio à constituição da riqueza dos que acumulam como seu o que é alheio, porque não pago.”

Dessa maneira, a tese defendida por Martins é que o trabalho escravo não é uma aberração dentro do sistema capitalista, mas uma recriação desse próprio sistema. Passado mais de um século da Lei Áurea e de o Brasil ter se assumido, oficialmente, como lugar de uma economia baseada em trabalho livre, formas disfarçadas de escravidão existem porque são necessárias ao capitalismo, segundo o professor. Isso porque o capitalismo brasileiro é incapaz de se reproduzir baseado em formas completamente capitalistas de compra e venda da força de trabalho.

Para lucrar (mais), o capitalista precisa baratear sua força de trabalho. E faz essa economia preferindo o trabalho escravo ao assalariado. Mais do que a exploração da força de trabalho, trata-se de um saque, nas palavras de Martins, possibilitado por aliciadores habilidosos e por uma classe trabalhadora tão carente de condições que participa do esquema sem ter exatamente escolhas, mas como estratégia de sobrevivência.

“Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime”, aponta o professor. Crime praticado como engrenagem de um “capitalismo de insuficiências”, que não é atrasado apenas economicamente, mas também nas relações sociais, na mentalidade, no modo de vida e nas crenças. E detentor de uma característica sociologicamente surpreendente, destaca Martins: a ideologia de que é possível progresso econômico sem progresso social e político. Justamente a ideologia que, conforme escreve o professor, “define o marco dos nossos tormentos e das nossas carências sociais”.

Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-Escravista, de José de Souza Martins, Editora Unesp, 272 páginas, R$ 68,00.


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