Nunca foi sobre proteger as nossas crianças: um basta às violências cometidas contra pessoas intersexo

Por Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP

 18/04/2024 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 04/06/2024 às 20:19

No dia 4 de abril de 2024, a Organização das Nações Unidas deu um passo histórico para a promoção e proteção dos direitos humanos das pessoas intersexo. Em sua 55a sessão, o Conselho de Direitos Humanos aprovou a primeira resolução a abordar especificamente a discriminação, a violência e demais práticas nocivas contra as pessoas que apresentem qualquer variação inata de suas características sexuais.

Pessoas intersexo são aquelas que apresentam características sexuais, tais como cromossomos, genitália, gônadas ou padrões hormonais, que não conformam com as definições binárias socialmente aceitas e sancionadas pelos poderes médico-legais de macho e fêmea. Dessa forma, a intersexualidade constitui um termo guarda-chuva para descrever uma miríade de variações das características sexuais que ocorrem naturalmente na espécie humana. Apesar de estarem presentes desde o nascimento, o fato de uma pessoa ser intersexo pode se manifestar em diferentes momentos de sua vida: no nascimento, durante a infância, na puberdade ou até mesmo apenas na vida adulta. Em particular, algumas pessoas sequer chegam a se descobrir ou a se reconhecer como intersexo. Os motivos são diversos, incluindo desde o desconhecimento por parte dos provedores de cuidados médicos e de saúde até o preconceito e a discriminação que pessoas intersexo sofrem. Trata-se, contudo, de uma condição bem mais comum do que a excepcionalidade com que é tratada possa sugerir. De fato, de acordo com o trabalho de Anne Fausto-Sterling, estima-se que aproximadamente 1,7% da população mundial seja intersexo.

Em uma sociedade estruturada sobre a ficção de um dimorfismo sexual absoluto que determina biunivocamente os destinos e papéis sociais de uma pessoa baseada apenas na observação de um genital, a mera existência de corpos intersexo é disruptiva a ponto de ser considerada uma emergência psicossocial. Assim, não apenas a sua existência é legalmente negada, mas deve ser pronta e sumariamente eliminada por qualquer meio médico disponível em nome de uma desesperada manutenção da endocisheteronorma. Afinal, que pais gostariam de passar pelo desconforto de ter uma criança que não é “nem menino, nem menina”? Que pais não fariam tudo para “proteger” sua prole da discriminação em função de uma genitália ambígua? Com esse fim, a autonomia corporal, a integridade física e os direitos humanos de pessoas intersexo são corriqueiramente violados das formas mais violentas possíveis. Mas, que direitos, se, como pontua George Annas, bebês com sexo atípico sequer são considerados completamente humanos? São os cirurgiões, em seu santo ofício, que os tornam humanos, ao mutilá-los até que suas genitálias sejam reconhecíveis, provendo-lhes então e, somente então, dos direitos e proteções salvaguardados pelas legislações e diretrizes éticas.

A patologização da intersexualidade leva a medidas atrozes que começam mesmo antes do nascimento, com o descarte e até mesmo o aborto de embriões e fetos que possam apresentar alguma variação de suas características sexuais. Notadamente, a partir da década de 1950, a pressão da endocisheteronorma fez com que o protocolo padrão para o tratamento de bebês que nascessem com genitália atípica fossem cirurgias “reparadoras” como: a redução do clitóris, vaginoplastias, gonadectomias e reparos de hipospádias, cujo papel reside primariamente em normatizar a aparência e não em melhorar a função. Tais procedimentos, realizados na maioria das vezes sem o consentimento da criança, causam não apenas traumas psicológicos, mas também uma série de problemas físicos como tecido cicatricial doloroso, perda de sensibilidade, osteoporose, osteopenia, problemas urinários e infecções. Em particular, um estudo alemão conduzido entre 2005 e 2007 com 439 pessoas intersexo de todas as idades, residentes na Alemanha, Áustria e Suíça constatou que 81% des participantes foi submetide a pelo menos uma cirurgia em função da variação de suas características sexuais e que quase metade des adultes participantes reportou distúrbios psicológicos e uma série de problemas relacionados com o seu bem estar físico e vida sexual.

O Brasil foi um dos 24 países que votaram a favor da resolução. Chama a atenção, contudo, as 23 abstenções, sobretudo sob a influência dos países árabes. Trata-se de um claro indicativo de que o jovem movimento intersexo, cuja organização e primeiras conquistas remontam a 2015, ainda tem um árduo caminho pelo frente na articulação de leis e políticas públicas que visem combater as múltiplas formas de discriminação que pessoas intersexo podem sofrer no acesso à educação, à saúde, ao trabalho, ao esporte, à seguridade social, bem como às restrições ao exercício da capacidade jurídica e ao acesso a recursos legais e à justiça. Como bem disse o ministro Silvio Almeida, ao iniciar a sua gestão do ministério dos Direitos Humanos: “vidas intersexo existem e são importantes”, e cabe também a nós, pessoas endossexo participar desta luta.

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