Em defesa das cotas raciais e das comissões de heteroidentificação na USP

Por Coligação de Coletivos Negros da USP e Núcleo de Consciência Negra da USP

 05/03/2024 - Publicado há 5 meses

 

Desde a conquista da implementação das cotas étnico-raciais nos vestibulares da Universidade de São Paulo (USP), a banca de heteroidentificação representa a principal vitória do Movimento Negro atuante na instituição. Ela surge em um momento de muita tensão política na Universidade, que, entre 2018 e 2022, esteve tomada por casos escandalosos de fraude na ocupação das vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas (PPI).

À época, o Comitê Antifraude às Cotas Raciais, organização criada por estudantes e ativistas para acompanhar o tema das fraudes e do controle da política na USP, registrava mais de 1.000 denúncias de ocupações irregulares das vagas PPI, advindas de todos os campi da instituição.

Sem qualquer tipo de controle no ingresso de estudantes, muitas pessoas de fenotipia não negra se autodeclaravam como PP (pretos e pardos) e ingressavam na Universidade na condição de cotistas, se aproveitando dessa importante ação afirmativa, criada para corrigir as históricas distorções de acesso ao ensino superior que afetam, em especial, pretos, pardos e indígenas, minorias raciais nos ambientes universitários.

A conquista também surge em um momento de reorganização do Movimento Negro da USP. No início de 2021, foi criada a Coligação de Coletivos Negros da USP, que reúne as agremiações negras das unidades de ensino e pesquisa da Universidade com o propósito de unificar e fortalecer as demandas antirracistas apresentadas pelo corpo discente e estudar possibilidades de atuação e diálogo junto às instâncias políticas e administrativas da USP.

A Coligação, refletindo este debate comum ao movimento, exerceu papel exitoso ao pressionar a USP para obtenção de melhorias no processo de seleção de cotistas e tem sido um pilar central na manutenção dessas mudanças. Além de ter conquistado espaços de negociação direta com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento – instância encarregada da articulação das políticas de diversidade e inclusão implementadas na USP -, tornou-se a responsável pelas indicações de membros discentes de graduação e pós-graduação que integram a banca de heteroidentificação atuante no vestibular universitário.

Nesse sentido, ninguém mais do que a própria Coligação de Coletivos Negros da USP, formada por dezenas de coletivos negros da graduação e pós-graduação da Universidade, teria condições de conferir uma opinião crítica e independente a respeito das polêmicas que vêm sendo veiculadas envolvendo a atuação da banca de heteroidentificação da Universidade.

Em primeiro lugar, é fundamental desmistificar a narrativa de que a banca é um “tribunal racial”. Acusações dessa natureza demonstram uma total falta de familiaridade com as etapas e critérios envolvidos nas averiguações de candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos) e com a eficácia que essa ferramenta tem demonstrado em dezenas de vestibulares e concursos públicos do País.

Desde sua concepção, a heteroidentificação tem tido como objetivo a inclusão, não a exclusão, de pessoas negras, visando promover uma efetiva integração racial, conforme preconizado pelas normas que regem as políticas de cotas. As bancas, nesse sentido, ao realizar análises fenotípicas que preservam a dignidade dos candidatos, têm se revelado uma ferramenta reconhecida pelo seu emprego frequente em muitas universidades do País ao longo das últimas décadas, angariando certo consenso entre os ativistas do Movimento Negro, as autoridades públicas e o próprio Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a sua constitucionalidade em dois momentos (ADPF 186 e ADC 41).

Em segundo lugar, do ponto de vista técnico, é essencial ressaltar que a heteroidentificação da USP está em total consonância com os princípios e valores que regem uma averiguação fenotípica adequada. Todos os candidatos são tratados com equidade e máximo respeito ao longo de todas as etapas do processo, garantindo-lhes o direito ao contraditório e à ampla defesa, particularmente na fase recursal.

A composição tanto da banca de heteroidentificação da USP quanto da banca recursal é bastante diversa e qualificada. Inclui representantes de todas as categorias presentes na instituição (alunos, professores, funcionários, pesquisadores de pós-graduação, etc.), e da sociedade civil, abrangendo pessoas de diferentes identidades étnico-raciais e de gênero. Todos os membros são igualmente submetidos a um curso de capacitação, onde são discutidos temas como o histórico de miscigenação da população brasileira e os procedimentos pertinentes à heteroidentificação.

Além disso, a fim de evitar o cometimento de qualquer injustiça, a USP criou uma série de etapas para o funcionamento da banca de heteroidentificação:

Inicialmente, todos os candidatos recebem instruções detalhadas para o envio de uma fotografia, a qual deve atender a diretrizes de iluminação, nitidez e vestimentas estabelecidas nas normas do processo seletivo. Em seguida, os candidatos que não tiveram suas fotografias validadas são convocados para uma entrevista, que pode ser presencial ou virtual, a depender da modalidade de disputa (Enem, Provão Paulista ou Fuvest). Caso a autodeclaração não seja validada nesta etapa, o candidato é remanejado para a ampla concorrência, mantendo, no entanto, o direito de apresentar recurso a uma banca recursal, onde o candidato é novamente submetido à análise, mas por um grupo independente de pessoas.

Os diversos passos mencionados anteriormente fornecem uma evidência bastante sólida de que a heteroidentificação na USP não visa perpetuar injustiças, mas garantir um processo de averiguação justo e transparente. Todo o empenho na garantia da qualidade do procedimento foi pensado precisamente para assegurar que a política de cotas raciais, por anos perturbada pela narrativa de que cotas devem ter um caráter exclusivamente social, seja protegida e aprimorada sempre que possível.

É importante ressaltar, ainda, que a implementação de cotas raciais na USP requer que os beneficiários provenham de escolas públicas. A regra atual estabelece que metade das vagas do vestibular é reservada para a ampla concorrência, enquanto a outra metade é destinada a estudantes de escolas públicas, sendo distribuída entre aqueles que se autodeclaram negros (pretos e pardos) e indígenas e aqueles que não o fazem.

Os casos que vêm sendo repercutidos na imprensa, que supostamente revelam um equívoco na atuação da banca da Universidade, precisam ser discutidos com responsabilidade. Na prática, o que tem sido visto é uma tentativa ilegítima de descredibilizar o trabalho que é fruto de uma conquista histórica do ativismo negro universitário, baseada em um ou outro caso considerado polêmico. Por outro lado, pouco tem sido dito a respeito das centenas de alunos negros que se beneficiaram da atuação da banca de heteroidentificação ao longo dos últimos anos ou do significativo impacto à reputação da Universidade, que já não mais convive com as vergonhosas fraudes de antigamente.

Os debates em torno dos desafios e das controvérsias relacionadas às bancas de heteroidentificação continuarão a ser pauta em aberto na Universidade de São Paulo por muitos anos. Esse diálogo é fundamental para fomentar um ambiente democrático de aprendizado institucional e de intercâmbio entre o ativismo negro e a administração universitária. No entanto, é preciso que esses debates se desenvolvam não com o intuito de desacreditar as bancas, mas sim defendê-las e aprimorá-las, reconhecendo sua eficácia na salvaguarda da política de cotas raciais.

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