Recompensas, games e apps: o “tigrinho” na ponta do iceberg

Por Thayla Bicalho Bertolozzi, doutoranda no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

 19/01/2024 - Publicado há 6 meses
Thayla Bicalho Bertolozzi – Foto: Currículo Lattes

 

O ano de 2023 foi marcante para inúmeras celebridades, de jogadores de futebol a influenciadores digitais, dadas as exposições cada vez mais nítidas, na mídia, quanto às publicidades pagas e demais formas de patrocínio advindas de plataformas estrangeiras, responsáveis por cassinos on-line e jogos de azar on-line — como o famoso “jogo do tigrinho”.

No cenário jurídico e nas redes sociais, fala-se sobre a possível responsabilidade civil, criminal e até mesmo ética de divulgar jogos com o potencial de causar (ou reforçar) dependência em seguidores, sobretudo em um país como o Brasil, que enfrenta sérias desigualdades socioeconômicas, de acesso a serviços de saúde e de atendimento psicossocial.

O próprio título deste ensaio deriva de uma publicação da influencer Mari Krüger sobre o tema, na qual disse que “os jogos de azar são só a ponta do iceberg”, em referência a diversos dilemas éticos envolvendo publicidades e influenciadores.

Embora o cenário esteja em profundo agravamento na atualidade, não estamos falando de uma completa novidade quando se trata de dependência, ou de apps e games que possuem ou incentivam mecanismos de recompensa e de dependência.

Obviamente, não se trata de comparar (nem seria justo fazê-lo) completamente jogos que foram produzidos com a exata finalidade de que fossem “de azar” (como “caça-níqueis” e similares) com todo e qualquer jogo eletrônico existente, nem mesmo com aplicativos que sequer sejam jogos. Deve-se levar em consideração os limites possíveis da comparação aqui proposta, sem interpretações que ultrapassem a razoabilidade.

No entanto, podemos propor a seguinte reflexão: o que torna um jogo, ou até mesmo um aplicativo (rede social, plataformas de streaming, de compras ou qualquer outro tipo) tão viciante?

No caso das plataformas, alguns especialistas compreendem que a simplicidade do uso de botões, como “curtir”, “gostar”, “amar” e semelhantes, associado à recomendação algorítmica de conteúdos a partir do histórico de interações, podem ser alguns dos facilitadores. Outros, entretanto, não estão convictos da existência de elementos suficientes para utilizar termos como “vício” ou “dependência”.

O famoso “FOMO” (Fear Of Missing Out ou “medo de ficar de fora”), por sua vez, também tende a ser recorrente, geralmente fazendo com que “a grama do vizinho seja mais verdejante”, ou seja: pensamos que todos estão se divertindo muito nas redes, então deixar de usá-las seria deixar de participar da diversão, de acompanhar tendências e até mesmo de se informar.

O mecanismo de “recompensa” básico, que seria o número de visualizações (ou quem as visualizou, qualitativamente), de “likes” e/ou de “seguidores” costuma ser igualmente relevante para, em tantos casos, tornar-se um mecanismo de “dependência”, quando o uso termina por se tornar nada saudável.

Ao olharmos para os apps de e-commerce, não raro encontramos alguns destes mecanismos (ou todos!). A recompensa, porém, pode variar: cupons diários e/ou por “presença” diária, demandando que o usuário entre todos os dias ou em determinados horários e dias específicos para receber cupons (de desconto ou frete), também podem provocar uma sensação gratificante ao, finalmente, conseguir atingir o objetivo.

Os próprios apps deste tipo, muitas vezes, oferecem “minigames” para conquistar mais pontos, mais moedas, mais cupons, mais e mais formas de conseguir gastar, comprar e consumir – uma verdadeira gamificação do consumo e da dependência.

Nas plataformas, identifica-se a tendência a passar longas horas somente “rolando” o “feed” – em alguns aplicativos, sequer existe a necessidade de “rolar” para visualizar as atualizações dos perfis, favorecendo ainda mais a “imersão” completa do usuário em conteúdos que não acabam mais.

Já nos jogos eletrônicos, mesmo aqueles que não sejam de azar, tal imersão também ocorre, principalmente no caso de games on-line, dada a dificuldade (ou impossibilidade, em alguns casos) de interrupção durante as partidas.

Não é incomum ouvir relatos de jogadores que deixam de fazer suas necessidades básicas, como dormir, comer ou tomar banho, para terminar uma partida ou duas – e, no fim, passam a madrugada inteira no mesmo ciclo, cenário que forneceu bases mais sólidas para a inclusão do gaming disorder (“dependência em jogos eletrônicos”) na lista de condições de saúde mental e addictive behavior da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019.

O mecanismo de “recompensa”, que eventualmente pode se tornar um mecanismo de “dependência”, também existe na forma de “presença diária” para conquistar pontos, completar missões ou objetivos específicos, principalmente no caso de jogos do gênero MMORPG on-line, sendo muito comum (porém não exclusivamente) em games chineses do gênero. “Subir de nível”, completar tarefas e outros elementos básicos também tendem a ser satisfatórios em qualquer gênero.

Além da necessidade de “logar” (entrar no game) todos os dias para conseguir completar determinados desafios e progredir com sucesso, muitas vezes sente-se a necessidade (ainda que não obrigatória, geralmente) de inserir algum dinheiro para ter acesso a itens exclusivos ou mais “raros”, ou até mesmo para “rolar dados” e fazer com que o sistema decida, na sorte ou no azar, se aquele item específico terá ou não o status adicional que o jogador almeja, por exemplo. Até aqui, nada de novo nos games on-line, pois esta sempre foi uma das táticas utilizadas pelas empresas desenvolvedoras e/ou administradoras de servidores em outros países para captar recursos, sobretudo em jogos “gratuitos”.

Entre um jogo pensado e desenvolvido para ser um jogo de azar e um jogo que não o foi, porém possui alguns mecanismos em comum, novamente, deve-se ter em mente que há grandes diferenças, tais como a possibilidade de conseguir conquistar, no segundo caso, vários itens sem inserir dinheiro real – porém, além de haver exceções, geralmente também acabam demorando muito mais tempo do que seria possível utilizando um cartão de crédito, pix ou cartão/vale-presente. Quanto mais exaustivo é esse processo, mais os jogadores tendem a denominar um jogo como Pay to Win (“P2W” ou “pague para ganhar”) – ainda que o jogo, por si só, seja “gratuito”.

Alguns jogadores de anos passados que lerem este ensaio podem pensar: “mas eu sempre joguei e nunca tive nenhum problema com isso! Eu sempre consegui me controlar!”. E eu vos falo: eu também! Todavia, nossa realidade não é a mesma de toda a população brasileira, e estamos falando de novos jogos, novas tecnologias, novas inserções e novos meios de interação a partir dos games.

Provavelmente, os leitores que assim pensarem não vivenciaram o que crianças, jovens (e até mesmo adultos, nos jogos e nas plataformas) vêm vivenciando em termos de expansão dos jogos para várias áreas da sociedade, inclusive em campeonatos oficiais de e-sports cada vez mais recorrentes, de escala mundial e alta remuneração, ou o fenômeno de ver, em um jogador profissional e/ou streamer, o seu verdadeiro ídolo, inspiração e fonte direta de influência.

Este último aspecto, por si só, já deveria nos causar preocupação: não para “demonizar” os jogos e os profissionais envolvidos, pois, assim como há aspectos negativos, há também elementos positivos do uso de games na aprendizagem e comunicação (notadamente os serious games, voltados para isso), mas para ter cada vez mais atenção ao tempo de tela, à qualidade e à recomendação de conteúdo feita por terceiros, principalmente para crianças, jovens e idosos, bem como todos os públicos de maior vulnerabilidade e dificuldade de discernimento, autocontrole e gestão do tempo.

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