Garimpo e mineração em Terra Yanomami resultam em destruição moral, ecológica e econômica

“O genocídio yanomami nos mostra, da maneira mais crua possível, que, em pleno século 21, continuamos, se não a guerra de conquista, pelo menos o empreendimento colonial”, afirma Moisés Ramalho

 20/09/2023 - Publicado há 8 meses
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A comunidade precisa ter a liberdade de ocupar diferentes espaços na floresta – Foto: Pedro (@whereispepere) via Flickr

 

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O relatório chamado Nós ainda estamos sofrendo: um balanço dos primeiros meses da emergência yanomami foi produzido e divulgado por organizações yanomamis com o intuito de analisar o primeiro semestre de ações do governo federal em 2023. As principais políticas federais concentraram-se no combate do garimpo ilegal e na disponibilização de serviços essenciais para a saúde da população. O documento estuda as ações governamentais elaboradas e seus impactos efetivos após a denúncia sobre o estado de emergência dessa população no início de 2023. 

Moisés Ramalho, doutor em Etnologia Indígena pelo Centro de Estudos Ameríndios da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, comenta que a violência contra esses povos é histórica. Napë, segundo ele, é o termo que, na língua dos yanomamis, significa branco, forasteiro e inimigo. “Não temos a menor ideia da devastação e do horror causados pelo garimpo e pela mineração na terra indígena em todos os níveis: o moral, ecológico, econômico, social e psicológico”, afirma.

Tradições e o meio ambiente 

Moisés Ramalho – Foto: Arquivo Pessoal

Ramalho explica que, além do dano ambiental, ocasionado pelo desmatamento e poluição das terras pelo garimpo, há, sobretudo, uma destruição de parte importante da cultura e costumes yanomamis. Destruição que resulta, principalmente, na situação de fome permanente das comunidades impactadas pela presença e ação dos garimpeiros em seus territórios. 

“Para se dar conta da extensão do desastre é preciso conhecer o funcionamento das comunidades indígenas, como a principal atividade econômica dos yanomamis: agricultura de coivara”, diz Ramalho. Essa prática se configura de maneira que cada aldeia – que pode contar com de 30 a 100 pessoas – planta sua roça, de onde provém boa parte de sua alimentação. No entanto, Ramalho ressalta que a produtividade da plantação limita-se a alguns anos, assim, na prática, existe uma rotatividade entre três áreas de cultivo: a antiga, que está sendo retomada pela floresta, a atual, que fornece alimento, e uma futura, que está sendo preparada. 

Para manter esse modelo de sobrevivência, a comunidade precisa ter a liberdade de ocupar diferentes espaços na floresta. “Com o garimpo, os yanomamis passam a viver literalmente encurralados em suas aldeias, ameaçados por milhares de forasteiros que reviram a terra e os leitos dos igarapés e rios à procura de ouro”, analisa Ramalho. Outro fator preocupante, que vai ao encontro dos levantamentos realizados pelo relatório, está relacionado à presença de mercúrio, que contamina tanto a terra quanto os corpos hídricos essenciais para a população local. “A razão entre uso do mercúrio e produção de ouro é de um para um, para cada tonelada de ouro retirada da terra indígena yanomami, temos uma tonelada de mercúrio contaminando os rios, igarapés e a floresta”, alerta o especialista.

Ele ainda acrescenta que a relação do crime organizado com a atividade extrativista ilegal intensifica a violência na ocupação dos territórios. Assim, a sobrevivência dos ecossistemas se confunde com a própria existência do povo yanomami, na medida em que as terras são intrínsecas ao estilo de vida da comunidade.

Teoria versus prática 

A estratégia denominada “estrangulamento logístico”, que compreende um conjunto de ações de controle do espaço aéreo e o bloqueio dos acessos fluviais e terrestres – já muito mencionada pela própria comunidade indígena –, mostrou-se como plano mais eficiente para o combate ao garimpo, segundo o relatório. “A geografia da região torna a alimentação dos milhares de garimpeiros um problema de logística insolúvel, tudo o que é consumido deve ser transportado por aviões monomotores ou helicópteros de Boa Vista, a pelo menos 200 quilômetros de distância de lá, tornando quase proibitivo o preço da comida”, esclarece Ramalho. 

O documento também revela uma série de descumprimentos de medidas protetivas no último governo – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

O pesquisador destaca que a intensificação da violência e do descrédito direcionado aos direitos dos povos nativos nos últimos quatro anos evidencia a não correspondência entre o corpo legislativo e sua aplicação. Ele acrescenta ainda que, mesmo com exceções de comunidades mais isoladas e, consequentemente, com menor possibilidade de comunicação das denúncias, o principal desafio da proteção dos yanomamis é a resposta às denúncias. 

No entanto, com a recente mudança na configuração ideológica do governo brasileiro acerca dessa questão, na medida em que alçou a esfera do Ministério e reformulou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o especialista prevê um cenário otimista, mesmo que com resultados tímidos. Além disso, o relatório ainda recomenda 33 medidas para o combate, como o maior auxílio para a saúde dos indígenas, a ampliação do monitoramento das regiões demarcadas e o alinhamento dos planos federais com as organizações locais. 

Destruição histórica

“No caso yanomami, há relação direta entre a explosão do garimpo e o aumento de casos de doenças infectocontagiosas, como gripe, pneumonia e demais infecções respiratórias”, constata o relatório. O pesquisador Moisés Ramalho ainda resgata o processo histórico de dizimação das comunidades indígenas e, especialmente, no que tange às doenças trazidas pelas populações externas da comunidade em conjunto com a baixa resistência imunológica dos yanomamis. 

O documento também revela uma série de descumprimentos de medidas protetivas no último governo, o que contribuiu para o adoecimento da população indígena, sobretudo durante o período de pandemia da covid-19, em 2020. “O genocídio yanomami nos mostra, da maneira mais crua possível, que, em pleno século 21, continuamos, se não a guerra de conquista, pelo menos o empreendimento colonial”, reflete o especialista.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


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