Cerca de 180 mil crianças não têm acesso à pré-escola no Brasil

Segundo a professora Anete Abramowicz, esses dados, de alguma maneira, reproduzem a própria estrutura desigual da sociedade brasileira

 19/09/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Julia Galvao*
Arte: Carolina Borin**

O acolhimento da criança em uma instituição de ensino público de qualidade amplia as oportunidades de vivência infantil em diferentes níveis – Foto: Pedro Ventura/Agência Brasília via Flickr

Segundo a ONG Todos Pela Educação, atualmente, cerca de 425 mil crianças de 4 a 5 anos não frequentam a pré-escola no Brasil. Dessas, 180 mil declaram não comparecer ao ambiente estudantil em decorrência de dificuldades de acesso, já que, muitas vezes, as escolas mais próximas de determinados municípios e periferias se encontram em localidades distantes ou não aceitam as crianças por conta de sua idade. 

Plano Nacional de Educação (PNE) apresentava como uma de suas metas centrais a universalização, até 2016, da educação infantil na pré-escola para crianças dessa faixa etária. Além disso, a ampliação do ensino infantil deveria atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos. 

Anete Abramowicz, professora da Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo, destaca a importância que a educação infantil apresenta, não só para a criança, como também para a sociedade como um todo. “Do ponto de vista econômico, por exemplo, inúmeras pesquisas nacionais e internacionais revelam um aumento significativo do PIB de um país quando as crianças têm acesso a uma educação infantil de qualidade”, comenta a especialista. 

Ramificações

Para além disso, o aumento do número de creches e pré-escolas demonstra-se essencial para a inserção da mulher no mercado de trabalho. Assim, Anete afirma que a educação é também um caminho extremamente eficaz para o combate contra a pobreza e a desigualdade social. “Sem dúvida, a falta de acesso a creches e pré-escolas atingem as mulheres e as impedem de exercer não só uma atividade do mercado de trabalho, mas de exercer uma vida plena para que possam partilhar o cuidado com o Estado, cuja função é dar educação para todas as crianças”, explica a professora.

O acolhimento da criança em uma instituição de ensino público de qualidade amplia, dessa forma, as oportunidades de vivência infantil em diferentes níveis. Sendo também importante destacar que é nesses ambientes que os primeiros processos de socialização serão realizados por uma série de sujeitos. Considerando a relevância desses processos, a professora questiona os motivos para essa etapa da escolarização permanecer sendo negligenciada no território nacional. 

“Existem diferentes respostas para isso, entre elas está o fato de que as próprias crianças são negligenciadas como categoria social. Elas são invisibilizadas na história, na sociologia, na sociedade geral e nas políticas públicas”, adiciona Anete. Somada a essa questão, encontra-se o fato de a escolarização ser considerada um trabalho de reprodução feminino, revelando também o machismo atrelado à subalternização dessa etapa do ensino. 

Anete Abramowicz – Foto: Reprodução/UFSCAR

Anete Abramowicz – Foto: Reprodução/UFSCAR

Mecanismos

Atualmente, a educação infantil básica é dividida entre creches e pré-escolas. A especialista explica que as creches abrigam as crianças de até 3 anos de idade, enquanto as pré-escolas dedicam-se ao ensino de crianças entre 4 e 5 anos. Assim, o PNE tinha como um de seus desafios a universalização das escolas e a ampliação em 50% das vagas em creches nacionais. Cerca de 180 mil crianças — na faixa etária de 4 a 5 anos — se encontram fora das escolas devido a dificuldades de acesso; entre os diferentes motivos para explicar esse dado, encontra-se a pandemia de covid-19. “É importante realçar que esse e qualquer dado relativo à desigualdade de acesso à educação infantil é maior entre as crianças pretas, pobres, filhos de mães mais jovens com baixa escolaridade e famílias monoparentais”, comenta a especialista. 

Com relação às creches nacionais, foi possível observar um avanço de 30,4% de crianças matriculadas para 35% — número que ainda passa longe da meta imposta pelo PNE. A professora destaca o fato que as desigualdades relativas às escolas nacionais também se apresentam de forma regional, uma vez que a região Norte do País conta com apenas 17,6% de suas crianças em creches, enquanto a região Sul conta com uma porcentagem de 43,3% — sendo possível notar também uma diferença racial nessas regiões. 

Especialista aponta que qualquer dado relativo à desigualdade de acesso à educação infantil é maior entre as crianças pretas, pobres, filhos de mães mais jovens com baixa escolaridade e famílias monoparentais - Foto: Paulo H Carvalho/Agência Brasília

Conflitos

Anete Abramowicz também explica os vouchers para a educação infantil, que é um dinheiro que o município dá para as famílias escolherem a escola ou a creche que a família queira. “É importante dizer que isso é uma maneira de o poder público abandonar as crianças de 0 a 3 anos e a gente está vivendo esse processo”, comenta a professora. Assim, as crianças estariam sendo atingidas em convênio com o Estado por meio de entidades filantrópicas. 

Além disso, a professora destaca um crescente apostilamento de materiais didáticos para a primeira infância. Dessa forma, Anete avalia que a “voucherização” das creches enfraquece e, de alguma maneira, privatiza o espaço público, fazendo com que o indivíduo crie um desafeto com o resto da sociedade. “Esse é um processo de despolitização dos sujeitos e, na verdade, produz a expansão de uma precarização. Essa liberdade individual desorganiza o sistema de educação e faz isso naqueles lugares em que prevalece o bem comum e a coletividade”, finaliza. 

 

*Estagiária sob supervisão de Paulo Capuzzo

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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