O “barrosismo”

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 17/07/2023 - Publicado há 1 ano

Francis Bacon, o filósofo, ensinava: “Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspectos que audaciosos. Acima de
todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza”.

Rui Barbosa, o patrono da advocacia, nosso afamado tribuno, dizia: “a ninguém importa mais que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações e não conhecer covardia”.

Luis Roberto Barroso, ministro da nossa Suprema Corte, com pós-doutorado na Harvard Law School (EUA), discursou, quarta-feira, 12, em palanque organizado pela União Nacional dos Estudantes: “nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”.

Com seu pronunciamento, considerado “infeliz, descabido e inoportuno” pelo presidente do Senado. Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o magistrado Barroso ampliou o volume de dissonância que, há tempos, ecoa nos vãos e desvãos do Supremo Tribunal Federal, dando conta de que a mais alta Corte do país, por meio de alguns de seus membros, partidariza a Justiça, ferindo os princípios da harmonia, independência e autonomia entre que devem reger os Poderes.

Dessa forma, Sua Excelência estaria manchando a tão admirada virtude da integridade, acalentada por Bacon. Será que Rui diria que sua fala é uma demonstração de coragem e de enfrentamento da covardia? Certamente, não. Esquivar-se de humilhações, na visão da Águia de Haia, é elevar ao alto a tocha da justiça, sem receio dos magistrados de ferir interesses dos poderosos, sem a obrigação de dar “votos de agradecimentos” aos patrocinadores de suas escolhas para a Suprema Corte.

Entremos nessa seara. Comecemos com a lição dos nossos clássicos sobre ciência política. Interpretando a visão de Aristóteles, o ser humano cumpre uma função
política. A missão do cidadão é servir à polis. A cota política que o filósofo atribui ao homem estende-se às instituições do Estado, razão pela qual seu dever é o de
participar da vida de uma cidade, do país, sob pena serem considerados seres vis. Por conseguinte, empregam dons naturais do entendimento para exercerem funções de cidadão, juiz ou representantes do mandato popular, neste caso, os membros do Parlamento.

Com esse entendimento, infere-se que há, na missão do magistrado, uma faceta política. Até aqui, tudo bem. Mas não se deve confundir o ente político, que deve se posicionar como cidadão a serviço da coletividade, como o defensor de interesses escusos, alguém manietado por grupos, facetas, núcleos ideológicos ou partidários. Ou seja, atender aos protagonistas que usam a política para operar jogos de poder.

Vez ou outra, vemos que membros do Poder Judiciário, entre muitos que orgulham a Nação, parecem confundir Política com P maiúsculo com politicagem de p minúsculo. Isso é grave nesse momento em que a “politização” adentra a esfera judiciária, a ponto de se identificar votos de membros das Cortes como parte do “agradecimento” a seus patrocinadores.

Nesse ponto, emerge a polêmica sobre a ingerência do Executivo sobre o Judiciário. Ingerência que se liga ao patrocínio de nomeações. A mão que nomeou um magistrado parece permanecer suspensa sobre a cabeça do escolhido, gerando retribuição. O Executivo acaba quase sempre levando a melhor quando se vale do STF, o que levou o jurista cearense Paulo Bonavides à ênfase: “A Suprema Corte correrá breve o risco de se transformar em cartório do Poder Executivo”.

Noutras instâncias, as promoções na carreira costumam passar por cima de critérios de qualidade. Uma liturgia de herança de poder se instala, com muita docilidade junto às cúpulas dos tribunais.

Desmancha-se a fé nas instituições, estiola-se a confiança da sociedade na luz que deve iluminar os rumos da justiça.

Ora, não se pretende aqui defender o conceito de que o juiz dever ser figura anódina, vestir o figurino da neutralidade. Juízes insípidos, inodoros e insossos tendem a ser os piores. O que a sociedade quer é voltar a encontrar no Judiciário as virtudes que tanto enobrecem a magistratura e outros serventuários da Justiça: independência, saber jurídico, honestidade, coragem e capacidade de enxergar o ideal coletivo.

O juiz Barroso cometeu aquele desvio muito comum ao ser humano, o de se deixar levar pelo carro desenfreado das emoções, sem medir as consequências de atos e palavras. Em um ambiente estudantil, sob a organização de uma entidade com histórico de lutas, como a UNE, o discurso teria de condizer com as expectativas. Ali, recebeu aplausos e vaias. Um andar sobre o fio da navalha. Em suma, sem demérito ao preparado juiz, Luiz Roberto teria cometido um “barrosismo”, pecadilho que costuma pegar os homens públicos na curva das derrapadas. É elogiável o esforço de uns para abrir fluxos de comunicação com a sociedade. Quando, porém, a expressão da alta administração da Justiça se transforma em negociação de bastidores ou no verbo pouco contido do salão dos aplausos, a imagem do Judiciário mais estilhaçada fica.

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