Desafios no Mercosul

Por Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

 07/07/2023 - Publicado há 10 meses
Pedro Feliú Ribeiro – Foto: FFLCH
A 62ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, ocorrida 4 de julho em Puerto Iguazú, na Argentina, transpareceu o atual desafio brasileiro de manter e incrementar o bloco. A rebeldia uruguaia e os questionamentos sobre a democracia venezuelana revelam a dificuldade de o Brasil liderar o processo de integração regional no Cone Sul. O presidente Lula, que assume a presidência temporária do bloco até o final de 2023, precisará mais do que retórica para concretizar o plano de reativar a agenda sul-americana de integração sob a liderança de Brasília.

Um dos principais fatores associados ao incremento do processo de integração regional é a existência de um país membro capaz de arcar com os custos da mesma, liderando o bloco. Isso invariavelmente envolve comprometer recursos na empreitada regional, como o caso da Alemanha na União Europeia. No Mercosul, caberia ao Brasil exercer esse papel. Embora o país tenha liderado importantes iniciativas como o Focem (Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul), sempre houve insatisfação dos demais membros do bloco acerca da capacidade e vontade política do Brasil gastar recursos próprios, como ficou evidente nas declarações do presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou (Partido Nacional), demandando independência para negociações comerciais.

Não é novidade a utilização de um possível acordo de livre comércio com os EUA ou China por parte do Uruguai como instrumento de barganha por mais recursos do Brasil no âmbito do Mercosul. O ex-presidente Tabaré Vázquez (Frente Amplio) utilizou essa estratégia em seus dois mandatos, primeiro com os EUA (2006) e depois com a China (2016). A diferença fundamental entre Lacalle Pou e Vázquez é o partido político. Enquanto o Frente Amplio possui entre seus legisladores forte preferência por aprofundar o processo de integração regional no Cone Sul, entre os Partidos Nacional e Colorado (maiores partidos da base de governo), os legisladores são mais propensos a adotar a estratégia da Aliança para o Pacífico de fomentar acordos bilaterais de livre comércio com a Ásia. Com maioria legislativa no Congresso Nacional, Lacalle Pou não possui resistência interna na base de governo como tinha Vázquez para promover movimentos de enfraquecimento do bloco regional. É possível vislumbrar no atual governo uruguaio um risco maior do blefe virar política, o que representaria um duro golpe ao Mercosul. O Brasil precisa agir para neutralizar a movimentação uruguaia, usualmente com a oferta de recursos materiais como no caso do Focem.

Outro ponto sensível da agenda regional é o processo congelado de adesão da Venezuela ao Mercosul e a cláusula democrática. Enquanto Paraguai e Uruguai denunciam a ausência de democracia no país caribenho, Argentina e Brasil adotam o discurso do respeito à soberania e aproximação por meio do diálogo. A recente inelegibilidade da opositora ao regime de Maduro, Maria Corina Machado, escancarou e polarização entre os sócios menores e maiores do bloco. O Partido Colorado do Paraguai já demonstrou em distintas situações o seu rechaço ao regime venezuelano. Do lado uruguaio, enquanto o Frente Amplio aderia reticente à ideia de incorporação da Venezuela ao Mercosul, o Partido Nacional do atual presidente possui postura fortemente contrária ao governo de Caracas.

A postura diplomática do Brasil em relação à Venezuela se fundamenta na lógica de aproximação e não isolamento. A aceitação do regime do Maduro seria condição necessária para poder exercer um papel mediador entre governo e oposição como faz atualmente o México. Em outras palavras, na visão da atual chancelaria brasileira, a aproximação é a melhor estratégia para promover, respeitando a soberania do país, melhorias no regime democrático. Desde o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), entre 1998 e 2022, a Venezuela foi alçada a aliada preferencial na agenda diplomática do Brasil, elemento que se intensificou nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). No seu terceiro mandato, Lula busca reativar essa parceria construída ao longo de 16 anos, tendo como desafio central convencer Paraguai e Uruguai da estratégia de aproximação ao governo de Maduro. Em 2012, após o impeachment de Lugo (2008-2012) no Paraguai, a resistência do Senado colorado paraguaio em aprovar o protocolo de adesão da Venezuela ao bloco foi vencida com a suspensão temporária do país. Horácio Cartes (2013-2018), presidente colorado pós impeachment, acabou posteriormente aprovando a entrada na Venezuela. No Uruguai de Mujica (2011-2015), o então vice-presidente Daniel Astori, também criticou a entrada da Venezuela no bloco, demonstrando a polarização que o regime de Caracas gera no interior dos partidos políticos da região. Esses eventos passados nos permitem vislumbrar a possibilidade de novamente vencer a resistência de Paraguai e Uruguai em aceitar a Venezuela, objetivo que demandará do Brasil capacidade de ofertar benefícios materiais a ambos os países.

A recente cúpula do Mercosul delineou os desafios colocados à liderança brasileira na condução da integração regional. Somamos ao cenário a necessidade de salvar a moeda argentina e estabilizar a economia do país vizinho e principal aliado do Brasil. Duas coisas podemos antecipar: a economia do Brasil precisa crescer em um bom ritmo e a negociação orçamentária do Executivo com o Congresso Nacional precisa abrir espaço para os gastos com política externa. Caso o presidente Lula queria retomar o papel de liderança do Brasil na América do Sul será necessário investir recursos brasileiros. O Mercosul vive encruzilhada que pode testar definitivamente a capacidade e vontade do Brasil liderar a integração do Cone Sul.

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