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O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, na sigla em inglês), criado pela Associação Americana de Psiquiatria para definir como é feito o diagnóstico de transtornos mentais, classifica depressão como “presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo”.
Contudo, o conceito e, principalmente, a forma como a doença é encarada pela sociedade, já passou por grandes modificações. Apenas em meados do século 19 os distúrbios mentais foram reconhecidos como doença e o primeiro DSM só surgiu em 1952. Anteriormente, casos de depressão e loucura estavam associados a mitos e superstições. O livro A história da Melancolia (Editora Artmed, 2016) relata esse percurso.
O autor Táki Athanássios Cordás, que é médico e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FMUSP) da USP, busca mostrar a forma como as doenças mentais foram vistas pela sociedade, desde os tempos bíblicos até a criação da DSM-5. Para ajudar neste recorte, o médico convidou o historiador Matheus Schumaker Emilio, formado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Cordás destaca a importância de compreender os avanços da psiquiatria – e da medicina como um todo – não somente do ponto de vista de seus aspectos técnicos.“Os conceitos psiquiátricos avançam não apenas na medida dos conhecimentos biológicos e psicológicos, mas também são influenciados por aspectos filosóficos e sociais.”
O público-alvo do livro, diz ele, não é composto de especialistas em psiquiatria ou história, mas sim do público em geral. Apesar de trazer aspectos acadêmicos e de pesquisa, a escrita do livro foi pensada de forma que leigos no assunto compreendam. “Esse não é um livro hermético, é livro em que se buscou uma abordagem fácil de ler, sem ser simplista, para o indivíduo interessado em cultura”, explica o professor.
A depressão na história
Doença, loucura, melancolia e depressão são palavras cujos significados e percepções são historicamente construídos, mutáveis. Refletem e evidenciam uma vasta gama de “formas de pensar” durante a história e possibilitam que nos aprofundemos naquilo de mais íntimo e curioso no ser humano: a mente.”
Com a evolução da medicina e também da filosofia, a percepção acerca das doenças mentais sofreu modificações. O conceito de loucura data da antiguidade, estando, no entanto, associado a questões místicas. Assim, o livro começa resgatando tempos bíblicos e mitológicos em que a loucura e a melancolia (designação antiga de depressão) estavam ligadas às superstições: ser louco e melancólico era visto uma punição divina. São múltiplas as histórias de reis e heróis que se afastaram dos deuses, ou os desafiaram, e como castigo ficaram loucos.
Apesar de toda a crença mitológica, é na Grécia que surge a observação da natureza e difusão do conhecimento. Hipócrates, considerado o pai da medicina, cria a teoria humoral segundo a qual a vida é um equilíbrio entre quatro humores: bile, fleuma, sangue e bile negra. O desequilíbrio entre esses humores é o que acarreta a doença. Cada um dos fluidos está ligado a um humor, sendo coléricos, fleumáticos, sanguíneos e melancólicos, respectivamente. A predominância da bile negra é o que caracteriza o ser melancólico. Embora simples, a teoria hipocrática é importante para substituir a superstição pela biologia.
A idade média ocidental já caracteriza um período de poucos estudos acerca da psiquiatria e o crescimentos das crenças religiosas sobre a loucura, em especial, no cristianismo. A Igreja Católica é a responsável pela dissociação da mente e do corpo, o que influencia o entendimento sobre as doenças mentais. A loucura e a melancolia se associam a possessões demoníacas, em que “os demônios entravam na mente dos homens e os tornavam loucos, espreitavam o leito dos moribundos para roubar-lhes a alma”. A melancolia também é relacionada aos setes pecados capitais, em que a “acídia” (que pode significar ócio e preguiça) é a causa das tristezas profundas.
Contudo, no mundo árabe, durante o mesmo período, o conhecimento médico acumulado durante a Grécia Antiga foi profundamente estudado. Com o surgimento da religião islâmica, em que, após o profeta Maomé, toda a crença e conhecimento antes fragmentado é reunido em uma única religião, os estudos gregos são resgatados e passados adiante.
O renascimento marca a busca pela retomada do conhecimento perdido, entretanto a concepção religiosa sobre as doenças mentais ainda não são abandonadas. Influências sobrenaturais continuam sendo consideradas causas da loucura e da melancolia, mas algumas teorias de que o corpo poderia influenciar a mente já começam a aparecer. É apenas após o iluminismo que as teorias religiosas começam a entrar em declínio, dando espaço a teorias racionalistas. Surge então a anatomia.
É durante o iluminismo que o médico William Cullen emprega pela primeira vez o termo “neurose”, e classifica a melancolia como “uma alteração da função nervosa, e não, como outrora se pensava, dos humores”. No século 19, pela primeira vez, o termo “depressão” surge com um sentido mais próximo ao atual, enquanto o termo “melancolia” poderia estar associado a qualquer tipo de loucura. Por volta de 1860 a palavra começa a aparecer nos dicionários médicos, e surgem tratamentos mais “humanizados” aos loucos. O médico Philippe Pinel classifica a melancolia como doença e destaca a predisposição desses pacientes a cometerem suicídio.
O século 20 é marcado por diversas teorias e classificações em torno das doenças mentais. Se desde o século 19 já surgia o conceito de “purificação”, caracterizada pela limpeza social em busca do aperfeiçoamento da espécie humana, é no século 20 que vemos estas ideias sendo difundidas. Teorias como a da evolução, de Charles Darwin, são adaptadas para justificar atitudes de higienização, o chamado “darwinismo social”. Com esses ideais em voga, diversas pessoas consideradas inferiores são denominadas “degeneradas” – pobres, negros, homossexuais, deficientes, entre outros, inclusive os pacientes com doenças mentais. O nazismo é o episódio mais extremo, quando os considerados degenerados são isolados e até mortos.
Diagnóstico de transtornos mentais
A necessidade de uniformizar e, principalmente, adequar os tratamentos às doenças mentais, fez surgir, em 1952, o primeiro Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria.
A classificação das desordens mentais já aparecia na sexta versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-6) da OMS, porém, somente após o DMS essas doenças receberam um tratamento específico. De acordo com o especialista, as primeiras versões do DSM ainda eram um pouco limitadas. A versão mais atual e, portanto, a trazida no livro de Cordás e Schumaker, é o DSM-5, publicado em 2013.
Matheus Schumaker ressalta que a opção por uma abordagem histórica feita no livro ajuda a atingir um número maior de pessoas, não apenas acadêmicos. “O mundo acadêmico é muito fechado, e queríamos produzir para um público mais amplo. Para isso fizemos mais um panorama geral do que uma pesquisa acadêmica definida e profunda”, afirma.