Resgatando os elos perdidos: um desafio para a sobrevivência da humanidade e do planeta Terra

Por André Francisco Pilon, professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP

 07/02/2023 - Publicado há 1 ano
André Francisco Pilon – Foto: ResearchGate GmbH

 

O mundo de hoje caracteriza-se pelo aumento de agravos relacionados ao meio ambiente, pelo comércio de produtos, muitos deles derivados da exploração predatória dos bens naturais, levando ao desmatamento e à desertificação; hegemonias geopolíticas travam disputas relativas à produção e ao consumo de petróleo e gás, enquanto calamidades climáticas, objeto de reiterados eventos científicos, tornam-se evidentes e são continuamente testemunhadas por pessoas comuns.

A própria ciência, manipulada e distorcida por todo tipo de interesses, coloca-se muitas vezes a serviço das agendas particulares de movimentos que se apresentam em nome da democracia, dos direitos humanos (que são universais e não apanágio de grupos) e outras fachadas, mas que não promovem a “liberdade, a igualdade e a fraternidade”, presos como estão aos respectivos guetos, levando à segmentação do tecido social, do qual dependem para sua existência.

O professor Sayer (Lancaster University) assinala que, apesar de sua onipresença, os estudiosos sociais e políticos frequentemente evitam o confronto com aspectos morais, preferindo estudar interesses, escolhas ou valores contingentes, desviando-se dos princípios universais que regem a existência humana compartilhada, que implica as relações entre as pessoas e entre elas e o mundo, consideradas suas peculiaridades no tempo e espaço.

Além das práticas discursivas ou comunicativas, a moral desempenha um papel crucial, ao gerar críticas e enquadrar demandas, sejam elas “progressistas” ou “reacionárias”; chama a atenção para as formas múltiplas, controversas e muitas vezes antagônicas pelas quais os atores sociais avaliam suas próprias ações e mediam demandas políticas, econômicas, sociais e culturais, envolvendo os paradigmas de crescimento, poder, riqueza e liberdade.

Face às crises contemporâneas e interseccionais envolvendo economia, meio ambiente, sociedade e política, muitos setores da sociedade clamam por uma mudança redentora, “implicando uma transformação fundamental dos valores sociais, de crenças e práticas (Lidskog, Standring & White), que não se confunde com as “correções tecnocientíficas” advogadas pelos conglomerados empresariais, que visam, principalmente, ao lucro.

O que está em crise é a própria noção de cultura, “agora reduzida a um sistema de códigos explícitos, descontextualizados e muitas vezes globalizados” (Olivier Roy, European University Institute). É uma deculturação global, onde os “processos” de comunicação fabricam um “devir autista”, na extensão do âmbito da “norma” promovida universalmente pelos detentores do poder político, econômico e cultural que domina o mundo.

Kevin Le Merle (Foundation for European Progressive Studies) chama a atenção para a lacuna existente entre a ética fundamental, o discurso político e as práticas resultantes, destacando a importância instrumental dos princípios éticos no campo carregado de valores do discurso climático, abrangendo a implementação prática dos princípios fundamentais da justiça climática redistributiva global nos resultados da política.

As desigualdades de renda, riqueza e oportunidade em todo o mundo, as circunstâncias desfavoráveis que impedem que as pessoas de nível socioeconômico mais baixo tenham condições de ir além das preocupações diárias pela sobrevivência, somam-se à indiferença dos mais aquinhoados, que, mergulhados no “mundo dos negócios”, permanecem indiferentes, desde que seus privilégios e situação socioeconômica prevaleçam.

Essas condições têm contrapartida nos aspectos culturais da vida cotidiana: a vitória ou a derrota em um campeonato internacional de futebol desperta uma comoção exacerbada, enquanto pouca mobilização pública, movimentos ou manifestação de massa ocorrem com a mesma intensidade envolvendo o meio ambiente, a violência, a guerra ou a fome (com exceção dos grupos que protestam em eventos internacionais relacionados).

A transição ecológica não depende apenas daqueles que consomem: há forte interdependência entre economia política de consumo opulento, modelos empresariais e práticas de consumo: “Poderosas tecnologias orientam o comportamento dos consumidores, levando-os a adotar as normas do consumo afluente, ativando as disposições adquiridas através da socialização do mercado” (Dubuisson-Quellier).

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, se um bilhão de pessoas adotar comportamentos ecologicamente corretos, as emissões globais de carbono poderiam cair 20%. Mas isso depende principalmente de viabilização política e econômica, priorizando, entre outras coisas, o planejamento urbano, o acesso fácil e barato à energia verde e a diferentes modalidades de transporte urbano e interurbano.

O transporte é responsável por cerca de 33% do total de CO2 produzido pelas grandes cidades. Edifícios e construções respondem por quase 40% das emissões globais de carbono relacionadas à energia em cidades e regiões adjacentes. O planejamento geral, as políticas urbanas contemporâneas têm consequências sobre nosso bem-estar, afetando a convivialidade, o desfrute do espaço público e o senso de pertencimento e conexão.

Apesar da perda sem precedentes da biodiversidade, da superexploração e do início de uma nova era de extinção em massa, do milhão de espécies de plantas e animais em extinção, exacerbada pela exploração da terra e do mar e agravada pelas mudanças climáticas e poluição, os sistemas naturais continuam a ser degradados, tanto diretamente pelas atividades humanas e “indiretamente” pela crise climática resultante.

Há uma dissonância entre o arcabouço legal, entre as convenções internacionais e as práticas de grupos políticos e econômicos que endossam o abuso da natureza por meio da extração devastadora de madeira, exploração mineira, produção química industrial e commodities para exportação; áreas indígenas e de preservação estão constantemente sob risco de invasões relacionadas a todos os tipos de interesses.

O “crescimento econômico”, em qualquer fórum – conferência acadêmica, debate de formuladores de políticas públicas, mesa-redonda de negócios – terá certamente seus próprios arautos e muitos irão trazer ideias para estimular, maximizar e fazer perdurar o que chamam de “desenvolvimento”, apesar de questões demográficas e estruturais básicas, das crises conectadas à mudança climática, à perda da biodiversidade e à poluição.

Aves reprodutoras estão ameaçadas; pesticidas e minúsculos contaminantes químicos (microplásticos) são encontrados no topo de montanhas remotas, na água do oceano a milhares de quilômetros de assentamentos humanos, no sal de mesa – e até mesmo nos órgãos dos seres humanos. Nas últimas décadas, o tempo de vida das abelhas produtoras de mel foi reduzido à metade, com graves consequências para o equilíbrio ecológico.

A agricultura produz emissões significativas de dióxido de carbono; também gera emissões de metano e óxido nitroso – potentes gases de efeito estufa com maior potencial de aquecimento do que o CO2. As emissões combinadas de metano das 15 maiores empresas de carne e laticínios do planeta são maiores do que as emissões de alguns dos maiores países do mundo, incluindo Canadá, Rússia e Austrália.

A reciclagem e a reutilização de materiais poderiam desempenhar um papel fundamental na limitação das emissões, uma vez que seus processos de produção são altamente intensivos em emissões. O processo climático poderia se proteger do lobby intenso das corporações de negócio e do brilho fugaz das manchetes do dia, que deveriam colocar o foco na vigilância dos acordos internacionais juridicamente vinculadores negligenciados.

Embora as nações mais ricas tenham recentemente chegado a um acordo para compensar financeiramente as nações mais pobres pelos danos ambientais sofridos até agora, é imperativo interromper a cadeia de eventos que provoca continuamente novos danos no presente e no futuro, o que difere de um simples seguro de carro ou de saúde, que cobre o infortúnio, mas não intervém sobre as causas a ele associadas.

Coordenar os esforços globais para lidar com a mudança climática, com a degradação da terra e do ecossistema e com a perda de biodiversidade por meio de soluções baseadas na natureza (programa ENACT de iniciativa oficial da presidência da COP 27), seria uma iniciativa suficiente e atualizaria a subsequente COP 28 e as futuras reuniões internacionais correlatas sobre o progresso na implementação dos compromissos assumidos?

O programa ENACT identificou e busca trabalhar com diferentes áreas prioritárias, a seguir indicadas:

(1) segurança alimentar e produtividade da terra;
(2) adaptação e redução do risco de desastres;
(3) oceanos e economia azul sustentável;
(4) resiliência urbana;
(5) infraestrutura verde-cinza;
(6) estratégias nacionais e subnacionais de mitigação;
(6) mobilização do investimento privado; e (7) saúde e clima.

Na última Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP 15), cerca de 200 países concordaram em travar e reverter a perda de biodiversidade até 2030. De acordo com o Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework, os países signatários comprometem-se a proteger pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas, incluindo territórios tradicionais e indígenas, acordo modesto, porém considerado histórico.

O apoio da Austrália, Brasil e México foi fundamental para a adoção do Acordo de Paris sobre alterações climáticas de 2015. Os três países estão entre os 15 principais emissores mundiais, e devem ser protagonistas centrais, juntamente com os demais países do mundo, face às coligações de negociação no âmbito do regime climático das Nações Unidas, que, agora, como então, exigem o envolvimento de todos os países do mundo.

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