Mover, mudar, migrar – por que atletas se deslocam pelo mundo afora?

Katia Rubio – EEFE

 12/12/2016 - Publicado há 7 anos

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esportes (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira - Foto: Marcos Santos - USP/Imagens

Katia Rubio é professora associada da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) e membro da Academia Olímpica Brasileira – Foto: Marcos Santos – USP/Imagens

Terminados os Jogos Olímpicos, e a chamada década do esporte, muitas questões ainda ficam pendentes de discussão e mesmo de deliberação. Quem esperava por uma grande virada no sentido da visibilidade para todas as modalidades olímpicas, e a real profissionalização da estrutura do esporte e de atletas, experimenta o gosto amargo da frustração pelas promessas e planos não cumpridos.

E mais uma vez os atletas, o principal legado olímpico, vivem a eterna luta pela sobrevivência, ainda que grande parte do público veja apenas o espetáculo protagonizado por eles e quase não tenha ideia do que se passa nos bastidores e na estrutura do esporte.

Nelson Mandela escreveu no período pós-apartheid que o esporte é provavelmente o meio mais eficaz de comunicação no mundo moderno, ignorando tanto a comunicação verbal como a escrita, alcançando diretamente bilhões de pessoas em todo o mundo. Não há dúvidas de que o esporte é uma via legítima e viável para a construção de relações de amizade entre nações.

O poder a que se referia Mandela advém do entendimento do esporte como uma linguagem universal, compartilhada por pessoas de diferentes nações na execução de gestos modulados por regras respeitadas em todo o mundo. O esporte é capaz dessa mobilização tanto pela objetividade da execução perfeita de gestos técnicos, ensaiados à exaustão por pessoas habilidosas, como pela subjetividade do significado dessa perfeição, tanto para quem executa, como para quem assiste.

Ideal de ego e objeto de identificação de novas gerações, o atleta contemporâneo transita em um mundo dominado pela comunicação gerada por grandes conglomerados de mídia e também pelas redes sociais. Suas realizações profissionais são reproduzidas gerando em torno de si uma imagem heroica comum a poucos seres humanos.

Nelson Mandela escreveu no período pós-apartheid que o esporte é provavelmente o meio mais eficaz de comunicação no mundo moderno, ignorando tanto a comunicação verbal como a escrita, alcançando diretamente bilhões de pessoas em todo o mundo.

Essa porção pública da vida do atleta mistura-se e dilui-se com a esfera privada de onde emergem as emoções pouco ou nada expostas, como o medo, a solidão e a depressão, sentimentos associados ao isolamento social e ao distanciamento das referências familiares e dos amigos.

Contribui para esse cenário a dimensão temporal da vida esportiva que não obedece ao calendário de outros profissionais, uma vez que as temporadas competitivas duram alguns meses, a depender do Estado ou do país de atuação. Some-se a esse quadro a necessidade de se buscar trabalho ao final de cada temporada, uma vez que são raros os clubes ou times que dão algum tipo de estabilidade para seus “funcionários”.

A necessidade de trabalho promoveu nas duas últimas décadas um processo de deslocamento e migração de atletas que já não mais se preocupam com a bandeira que defendem, mas com quem efetivamente paga seus salários. Movidos pelo desejo se ser atletas, jovens deixam suas casas em busca de uma oportunidade profissional em um mundo mobilizado pelo resultado a qualquer custo.

O processo migratório no esporte ocorre em paralelo ao processo de profissionalização do esporte olímpico a partir do início da década de 1980. Nos países onde a gestão do esporte foi conduzida de maneira profissional, o acesso à profissionalização de atletas não apenas foi facilitado como também se tornaram importantes mercados de trabalho, atraindo estrangeiros dos diferentes continentes.

A necessidade de trabalho promoveu nas duas últimas décadas um processo de deslocamento e migração de atletas que já não mais se preocupam com a bandeira que defendem, mas com quem efetivamente paga seus salários.

Ao se olhar para o Brasil, pode-se observar fenômeno semelhante, onde as diferenças regionais levaram atletas de Estados carentes de políticas para o desenvolvimento esportivo a locais específicos para a prática especializada, em busca de condições de treino, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. O deslocamento provocado pela premência das condições materiais para o desenvolvimento da carreira esportiva desencadeia um processo de adaptação, socialização e aculturação dentro de diferentes padrões, nem sempre de fácil assimilação.

A comida, o clima, os códigos linguísticos característicos levam o atleta migrante e se sentir um estrangeiro dentro do próprio país, dificultando assim a adaptação e, por vezes, comprometendo o desempenho de sua função atlética. Quando esse deslocamento é vivido para fora do país há ainda o agravante da falta de domínio da língua e de outros códigos culturais, que envolvem também a discriminação e o preconceito seja pela pigmentação da pele ou pelo fato de ser “o outro”, o “de fora”, o “estrangeiro”.

No passado, o atleta amador era aquele que não tinha treinadores nem treinamento em sua atuação esportiva. A ênfase dada à prática esportiva não remunerada, privilégio da burguesia europeia de finais do século 19, foi mantida pela maioria dos dirigentes do movimento olímpico contemporâneo.

Entretanto, o esporte de alto rendimento se converteu em algo tão qualificado do ponto de vista técnico que seus praticantes destacados e dedicados ficaram mais próximos, por seu extrato social, da classe trabalhadora, que era mantida distante do esporte, do que da burguesia dirigente. Por isso a denominação dos atletas profissionais de “trabalhadores do esporte”, por ter como contrapartida à sua prática profissional, salários que variam do mínimo para a subsistência às inimagináveis regalias milionárias.

Migração, deslocamento, diáspora, busca de identidade e eterno retorno são temas recorrentes no discurso de atletas que partiram de suas cidades natais, ainda muito jovens, em busca de oportunidade para desenvolver uma habilidade identificada como fora da média. Se a busca da perfeição é um dos agentes mobilizadores para essa ação, o enfrentamento do desconhecido e das dificuldades, assim como a derrota, são também elementos presentes na vida desses Olimpianos.


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