O que foi o 8 de janeiro?

Por Bernardo Ricupero, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

 08/01/2024 - Publicado há 4 meses
Bernardo Ricupero – Foto: DCP/FFLCH

 

No dia 8 de janeiro de 2023 o Brasil foi surpreendido por um ataque, quando autonomeados patriotas invadiram e vandalizaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF).

A surpresa não foi, entretanto, motivada pelo próprio ataque. O líder dos “patriotas”, Jair Messias Bolsonaro, mesmo quando eleito presidente, em 2018, colocou em dúvida os resultados eleitorais, defendendo que já havia obtido mais da metade absoluta dos votos no primeiro turno do pleito. De maneira mais direta, converteu as comemorações pela Independência, nos 7 de setembro de 2021 e de 2022, em verdadeiras celebrações golpistas, nas quais milhares de seus apoiadores clamavam por “intervenção militar já”.

Ou seja, a razão da surpresa foi o timing do ataque. Em outras palavras, Bolsonaro não conseguiu criar condições para dar o golpe quando ainda era presidente.

Até porque os EUA deram sinais inequívocos de que não tolerariam a ruptura democrática, chegando a enviar ao Brasil o conselheiro de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, e manifestando apoio às urnas eletrônicas, cuja lisura era cotidianamente colocada em dúvida por Bolsonaro. Já no final do seu mandato, também o establishment econômico e social deixara claro que não embarcaria na aventura golpista, lançando uma “Carta aos brasileiros” em defesa da democracia na simbólica data de 11 de agosto de 2022. Diante desse quadro, a cúpula militar, adulada pelo capitão reformado nos quatro anos em que esteve à frente do governo, preferiu não aderir à quartelada.

Tais condições contrastam com 1964. No contexto da Guerra Fria, o apoio dos EUA ao golpe militar foi inequívoco, chegando a enviar, na famigerada “Operação Brother Sam”, uma esquadra ao litoral brasileiro. Também a burguesia conspirou, de maneira evidente, contra o governo João Goulart no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e no Instituto Brasileiro de Ação Democrático (Ibad). E instituições como a Igreja Católica tiveram papel importante na mobilização pela intervenção militar, ajudando a organizar as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que reuniram centenas de milhares de pessoas.

Em compensação, o 8 de janeiro brasileiro é semelhante a um outro putsch frustrado, o 6 de janeiro norte-americano, que em 2023 acabara de fazer seu primeiro aniversário. Em ambos os casos, Donald Trump e Jair Bolsonaro não conseguiram, ou talvez nem quisessem, ter o apoio dos grupos que tornariam possível realizar a ruptura que pareciam buscar. Fica-se até com a impressão que mais do que realizar o golpe estavam interessados em encená-lo.

As semelhanças são tamanhas que não faltou quem sugerisse que os tupiniquins, mais uma vez, imitam os ianques. De maneira sugestiva, o colunista do The New York Times, Ross Douthat, defendeu que o 8 de janeiro brasileiro seria “ato de pura performance” sem maiores compromissos com “as realidades do poder”.

Em outras palavras, diferente da referência famosa, a história já não se repetiria como farsa, depois de ocorrer como tragédia, mas simplesmente cairia numa espiral farsesca. Se os revolucionários de 1848, criticados por Marx, teriam procurado encenar a obra dos revolucionários de 1789, mas sem o heroísmo ou a ilusão do heroísmo de outrora, os bolsonaristas como que teriam se contentado, em tempos pós-modernos, em posar para selfies que emulariam seus ídolos trumpistas.

A análise é engenhosa. No entanto, é falsa. Falsa principalmente no que tem de reconfortante, ao sugerir que fenômenos como o trumpismo e o bolsonarismo são pura aparência.

Cai assim, por motivos opostos, no mesmo erro das interpretações sobre a “crise da democracia”, que imaginam que a democracia deveria voltar ao seu funcionamento “normal”, como se tal coisa fosse possível ou mesmo desejável. Não é difícil, porém, perceber que não foi a “resiliência das instituições” que salvou a democracia no 8 de janeiro ou antes da tentativa do golpe frustrado.

Até porque, paradoxalmente, foi crucial para o desfecho, até agora feliz, uma “anomalia institucional”: o protagonismo do Judiciário. Mais especificamente, tiveram particular peso certas ações tomadas pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, algumas delas, como a abertura do inquérito das fake news, tomadas no “arrepio da lei”. Isto é, mecanismos semelhantes aos que contribuíram para desestabilizar a democracia com a Operação Lava Jato ajudaram, pouco depois, a salvá-la.

Sinal adicional da dificuldade de retomar a “normalidade democrática” é a conturbada relação do terceiro governo Lula com o Congresso. Ela indica que o “presidencialismo de coalizão” já não funciona como antes ou, no limite, pode até mesmo deixar de funcionar. Em resumo, parlamentares, capitaneados pelo chamado Centrão, não querem abrir mão das prerrogativas, principalmente orçamentárias, que amealharam, ironicamente, durante o governo do suposto outsider Bolsonaro.

Talvez devamos, assim, buscar as razões da crise para além das aparências ou das instituições. Até porque, como indicam os EUA, onde corre-se o risco de se voltar a eleger Trump presidente, ela persiste. Nesse sentido, apesar da derrota do 8 de janeiro, estamos longe de termos recuperado a “estabilidade democrática”. Mas tal assunto foge ao escopo deste artigo…

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