“Descendente”: uma aula de consciência, resiliência e ancestralidade

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 18/11/2022 - Publicado há 1 ano

Falar sobre escravização de descendentes de africanos, no Brasil, é algo que, aparentemente, ficou em segundo plano. Agora, o mais importante é discutir os efeitos das desigualdades que persistem sobre quem, contemporaneamente, continua sendo marcado como cidadãos ou cidadãs de menor valor. Reconhecer a existência do racismo, da discriminação, das desigualdades baseadas em raça, cor, etnia e explicar como esses fatores são estruturantes na sociedade brasileira é o que possibilita a demanda por equidade e por justiça racial e de gênero. A escravidão ficou no passado, nos tempos do ontem, já que os tempos do agora trazem desafios que precisam ser enfrentados nos termos das políticas do momento presente, dos séculos 20 e 21.

Apesar de tudo isso, neste mês da Consciência Negra (que defino como o mês em que pessoas negras são “autorizadas” a falar sobre o que ocorre com elas, no Brasil,) eu gostaria de apresentar um pedaço da história da escravidão. Penso que esse episódio nos ensine algo sobre como construir nossas consciências, em diferentes partes do mundo.

O documentário Descendant (Descendente) apresenta a história e a luta de uma comunidade negra do Alabama para comprovar sua descendência direta dos últimos sequestrados, transportados para serem escravizados nos EUA. O sequestro e o tráfico de humanos foram proibidos em solo estadunidense, em 1808, e esse fato ocorreu em 1860.

A história foi contada de mães e pais para filhos, filhas, netas e netos explicando de onde vieram, quem eram seus ancestrais, o que teria ocorrido com cada um deles. Os mais velhos diziam que tinham sido sequestrados no Daomé, trazidos ao Alabama em um navio chamado Clotilda. Um fazendeiro escravagista apostou que seria capaz de trazer vidas humanas da África e os escravizar, mesmo após a proibição do tráfico. Teve como parceiro o capitão e construtor do navio Clotilda, que fez a viagem trazendo 115 vidas humanas. O navio Clotilda foi queimado e afundado para apagar os vestígios do crime federal cometido, cuja pena era a morte.

Essas e esses griots, guardiães da palavra, preservaram a história de seu povo, as tradições, a memória e a importância de defenderem que eram descendentes dos que foram trazidos em 1860. Finda a escravidão nos EUA, em 1865, compraram terras e construíram, ali, em Mobile, Alabama, uma comunidade chamada por eles Africatown.

Por isso, localizar os destroços do navio tumbeiro Clotilda tornou-se fundamental para corroborar a história contada, dando a eles o direito de reivindicar que a verdade sobre o que ocorreu naquele lugar fosse conhecida. Mas, também, para preservar Africatown das indústrias insalubres que se estabeleceram no local, arrendando terras dos descendentes das mesmas pessoas que, no passado, foram responsáveis pelo sequestro e escravização dos 115 africanos.

Esse documentário é uma aula de história sobre o modo como uma comunidade construiu estratégias para resistir, se organizar, manter a memória viva, reivindicar seus direitos, transmitir conhecimentos para seus descendentes e lutar por justiça. Também é o retrato da afetividade e do cuidado que circundava, mesmo em meio a tanta adversidade, a vida das pessoas de Africatown.

Alguns exemplos desse cuidado afetivo são retratados no documentário ao trazer a história de Cudjoe Kazoolu Lewis, um dos últimos sobreviventes do Clotilda, registrada em entrevista a Zora Neale Hurston, em 1927, tudo retratado no livro intitulado Barracoon: The Story of the Last “Black Cargo”, publicado, postumamente, em 2018. Cudjoe e outras mulheres e homens griots, foram figuras centrais, em sua comunidade, na solidificação dos laços e da vida, pós-abolição.

Eu nunca pensei, até conhecer a história de Africatown, que me interessaria por saber sobre um navio tumbeiro. O que de bom poderia advir dessas naus de Caronte que transportavam pessoas de suas vidas em liberdade para a morte em vida no cativeiro? O que haveria de positivo no vislumbre do modo como seres humanos foram expostos a formas tão brutais de violência nos porões dessas naus da morte?

Aprendi, ao ouvir as histórias de Cudjoe, e da comunidade de Africatown, que essas são importantes peças da história. Nesses navios, além do DNA que pode ligar povos a seus ancestrais, também é possível encontrar pequenas peças que contribuem para conhecer a história de onde vieram, miçangas, contas, panelas e outros objetos. Não se trata, portanto, de falar sobre a violência da escravização, puramente. Trata-se, como os residentes de Africatown reivindicam, de se saber de onde se veio, conhecer a própria história, superar as dores associadas a isso por meio da conquista do direito à verdade. Trata-se, sobretudo, do respeito à memória e à ancestralidade. Isso, aqui no Brasil, também tem sido realizado pelos povos tradicionais, pelos quilombolas e nas práticas culturais de origem africana e afro-brasileira que, felizmente, insistem em sobreviver nos quatro cantos de nosso país, apesar dos ataques que recebem.

Não se pode falar em consciência negra sem o respeito aos griots, guardiães da palavra, sem o respeito aos mais velhos e à ancestralidade, sem que mergulhemos em vidas fundamentadas nos valores que são os únicos capazes de nos manter juntos, mesmo em condições tão adversas ao resgate da memória histórica, tão duramente apagada, sobretudo no Brasil.

A organização, o coletivismo, a resistência, o respeito mútuo, a produção de conhecimento, o armazenamento do conhecimento, a divulgação da cultura, a reciprocidade, a autodeterminação, a resiliência, os cuidados com a comunidade, a maternagem, o fortalecimento mútuo, a autoconfiança e a espiritualidade são os valores que devem nos nutrir para que consigamos alcançar o respeito e a justiça com relação a nosso legado.


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