Edição crítica delineia a trajetória de “Raízes do Brasil”

A obra de Sérgio Buarque de Holanda é apresentada com todas as anotações e correções numa publicação organizada pelos professores Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro. Lançada pela Companhia das Letras, a publicação faz uma retrospectiva do “historiador lendo e corrigindo a si mesmo”

 09/11/2016 - Publicado há 7 anos
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Páginas da primeira edição de Raízes do Brasil anotadas e corrigidas por Sérgio Buarque de Holanda – Imagem: Reprodução

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A trajetória de um livro que, ao longo das leituras, das correções e do aprendizado do próprio autor, foi se transformando em um clássico. É essa história mutante de Raízes do Brasil, escrita e revista em cinco edições por Sérgio Buarque de Holanda, que a edição crítica, organizada pelos professores Lilia Moritz Schwarcz, da USP, e Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, propicia aos leitores. A publicação, lançada pela Editora Companhia das Letras, é uma homenagem ao crítico, historiador e sociólogo e aos 80 anos de uma obra que, lançada em 1936, se renova ao longo do tempo.

“Se os autores mudam, também os livros podem se alterar. Até mesmo os ‘clássicos’. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é um dos exemplos mais evidentes de um livro feito de voltas e reviravoltas, muitas delas fundamentais”, argumentam Lilia e Monteiro na apresentação da edição. “Estamos diante de um texto que não descansa, que foi várias vezes revisto, aumentado e recortado por seu autor, sempre em diálogo com seus diferentes contextos de publicação. Além do mais, foi lido a partir de perspectivas distintas pelas muitas gerações que aprenderam a entender o Brasil com Raízes nas mãos e que foram lhe adicionando novos sentidos e interpretações.”

É esse texto sob a crítica e leitura atenta do próprio autor que surpreende o leitor. Nas suas 520 páginas, é possível acompanhar o livro nas mãos do pesquisador e o seu pensamento percorrendo cada parágrafo. Um exercício de reflexão que pode ser observado no exemplar de Raízes do Brasil, na sua primeira edição, de 1936, que pertenceu ao autor. O livro está todo rabiscado por Sérgio Buarque de Holanda. O leitor pode conferir as imagens das páginas datilografadas. Ver também a letra do historiador anotando, acrescendo e fazendo cortes. Um trabalho minucioso para compor o texto da segunda edição, publicada em 1948.

Nascimento de um clássico

Os organizadores, Lilia e Monteiro, observam que obras fundamentais para pensar o País não surgem prontas e acabadas. “Dar vida a elas é, de alguma maneira, restituir-lhes sua história, seu processo e diálogo com o tempo, isto é, com o seu próprio tempo. Esta edição crítica de Raízes do Brasil, contendo agora as variantes do texto, permite compreender que tal ‘nascimento’ de um clássico durou pelo menos três décadas.”

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Capa da Edição Crítica de Raízes do Brasil, que comemora os 80 anos da obra – Imagem: Reprodução

Para a publicação de Raízes do Brasil – Edição Crítica, foi desenvolvido um trabalho de equipe para pesquisar as edições anteriores e observar as mudanças e os acréscimos em cada uma delas. “Nós estamos reunidos em torno dessa edição há três anos”, contou Lilia Schwarcz, em entrevista à jornalista Silvana Salles, do Núcleo de Divulgação Científica da USP. “O autor mudou nomes e alterou cerca de 200 parágrafos.” A análise das correções e alterações foi feita por Maurício Acuña, doutorando em Antropologia Social da USP e da Universidade de Princeton, e Marcelo Diego, doutorando em Espanhol e Português da Universidade de Princeton. “Os pesquisadores foram de parágrafo em parágrafo comparando as cinco edições e vendo as alternâncias. É um livro bastante democrático.  O leitor também pode conferir e descobrir elementos que não encontramos. O trabalho foi de crítica genética, no sentido de buscar os termos, variações, parágrafos importantes que alteravam radicalmente a  interpretação do livro. A mudança entre a primeira e a segunda edição é quando o livro vai ganhando essa vocação mais democrática. O autor também vai consertando passagens históricas. Na primeira edição, o sociólogo tinha uma impressão positiva do bandeirante e, na última, ele já não tinha a mesma opinião” (ouça abaixo a íntegra da entrevista de Lilia Schwarcz).

Os esclarecimentos sobre a pesquisa do processo de criação, os mecanismos do pensamento do autor e os caminhos da obra estão no texto de Maurício Acuña e Marcelo Diego, integrado na publicação. “Nesta edição, o texto apresentado no corpo da página reproduz fielmente a lição da quinta edição de Raízes do Brasil, de 1969, a última revista pelo autor e, portanto, expressão última de seu pensamento. Trata-se de um texto único e íntegro, ou seja, que reproduz apenas uma variante e de modo contínuo, sem cortes e sem interpolações.”

Carta ao poeta

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Sérgio Buarque de Holanda – Foto: Imagens Arquivo central/Siarq

A resposta de Sérgio Buarque de Holanda à interpretação do poeta Cassiano Ricardo, que leu o polêmico quinto capítulo de Raízes do Brasil, “O homem cordial”, na edição de 1936, e interpretou a cordialidade como a “técnica da bondade”, também é destacada nesta Edição Crítica, que traz também vários textos relacionados à obra. A carta ao poeta integrou todas as edições posteriores. “Nela, o autor esclarecia que a cordialidade tinha tanto a ver com a bondade quanto com a inimizade. O homem cordial era o contrário do homem polido, por ser avesso aos rituais e por cultivar um alto grau de intimidade nas relações políticas, que assim se tornavam aparentemente mais próximas, ainda quando fundamentalmente assimétricas”, observam os organizadores na apresentação. “A sentença de morte dada ao homem cordial, incorporada no livro de 1956, em sua terceira edição, ganhava um sentido especial no momento em que o desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek convidava a imaginar a modernização do País, reclamando a renovação de suas práticas políticas. Mas se o homem cordial era apenas um defunto, ele logo se tornaria um fantasma, voltando ainda muitas vezes para assombrar os vivos.”

Sérgio Buarque de Holanda protestou até a última edição contra a interpretação errônea do capítulo “O homem cordial”. E repetia os mesmos argumentos da carta a Cassiano Ricardo. Afirmava que a palavra cordial, em seu verdadeiro sentido, se relaciona a coração. “Como além disso se acreditou, mal ou bem, que o coração é a sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos.” O historiador termina a resposta assinalando: “Cabe-me dizer-lhe ainda que também não creio muito na tal bondade fundamental dos brasileiros.  Não pretendo que sejamos melhores, ou piores, do que outros povos. Mas qualquer discussão sobre este tópico envolveria divagações em volta de critérios subjetivos, sem resultado plausível”.

Arma para abrir caminho

O crítico literário Antonio Candido, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, no prefácio da quinta edição, de 1969 – publicado na Edição Crítica com outros ensaios sobre Raízes do Brasil –, conduz os leitores à compreensão do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda. Ele assinala que Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., são os três  livros chaves que “parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”.

Antonio Candido - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Antonio Candido: textos do professor sobre Raízes do Brasil estão na Edição Crítica – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em outro texto, datado de 1986, o professor pondera: “Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1969: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa de povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso”.

Os organizadores Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz  acrescentaram na edição crítica um conjunto de nove posfácios escritos por especialistas para homenagear os 80 anos de Raízes do Brasil e o seu autor Sérgio Buarque de Holanda. São ensaios que trazem os ecos e ressonâncias da obra desde a sua primeira edição.

O texto de Conrado Pires de Castro, professor de Sociologia na Universidade Federal de Lavras, em Minas Gerais, considera a eterna juventude de um clássico, como assinala no título do artigo. “É um livro que deixa os olhos livres para mirar questões desconcertantes, despreocupado com soluções a serem apresentadas sem qualquer hesitação.”

Alfredo Cesar Melo, doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, considera que o argumento de Sérgio Buarque de Holanda faz eco às ideias de Gilberto Freyre. Porém, sem a defesa entre celebratória e nostálgica de um Brasil mestiço e tropical, presente em Casa Grande e Senzala. “Para Sérgio Buarque de Holanda, a sociedade brasileira não deveria ser louvada nem condenada, mas pensada dentro dos moldes realistas (sem malícia, sem alegria), como incontornável ponto de partida para qualquer processo de transformação social.” E conclui: “Para ser moderno, o Brasil não precisa deixar de ser Brasil, do mesmo modo que, para se lançarem ao Novo Mundo, os portugueses não precisaram negar suas mais valiosas tradições”.

Raízes do Brasil – Edição Crítica, de Sérgio Buarque de Holanda, organizada por Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, Editora Companhia das Letras, 520 páginas, R$ 94,90.

Ouça no link abaixo a íntegra da entrevista dada por Lilia Schwarcz à jornalista Silvana Salles, do Núcleo de Divulgação Científica da USP, sobre a edição crítica de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.


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