O desastre “nada natural” na Lagoa da Conceição e o Direito

Por Fernanda Dalla Libera Damacena, professora da Universidade de Caxias do Sul, e Tatiana Tucunduva Philippi Cortese, pesquisadora do USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP

 15/06/2021 - Publicado há 3 anos
Fernanda Dalla Libera Damacena – Foto: Arquivo pessoal
Tatiana Tucunduva P. Cortese – Foto: IEA-USP
Em 25 de janeiro de 2021, a barragem da lagoa de evapoinfiltração (LEI) da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) rompeu, despejando toneladas de sedimentos (areia) e matéria orgânica. Esse rompimento da barragem causou a inundação de área urbanizada na Servidão Manoel Luiz Duarte e fluiu em direção à Lagoa da Conceição.

As casas localizadas na Servidão foram atingidas pelos efeitos do rompimento, sendo atingidas 80 pessoas com prejuízos financeiros e perdas materiais e comprometendo a segurança dessas edificações, uma vez que o plano diretor do município classifica a área como “Turística e Residencial”, com elevado número de pousadas e residências uni e multifamiliares.

Houve mortandade de peixes logo depois da ocorrência do evento e diversas mobilizações vêm acontecendo na região da Lagoa da Conceição desde então. A mídia local repercutiu bastante os fatos e exige esclarecimentos por parte da Casan. É importante ressaltar a importância cênica, cultural, recreativa, esportiva e ambiental da Lagoa. Estes atrativos compõem toda a estrutura social e econômica do bairro, que apresenta diversos restaurantes, hotéis, pousadas, comércio e locais para a prática de esportes náuticos na natureza.

A região era utilizada como local de lançamento do efluente tratado pela Estação de Tratamento de Esgotos da Lagoa da Conceição, sendo parte constituinte do Sistema de Esgotamento Sanitário da região e denominada Lagoa de Evapoinfiltração (LEI). Esse rompimento do corpo hídrico artificial ressalta a necessidade urgente de discussão objetiva sobre o tratamento e, principalmente, a destinação final de efluentes domésticos, em Florianópolis.

Usualmente, a destinação final de efluentes tratados se dá através de infiltração no solo/evapotranspiração, ou pelo lançamento em corpos hídricos receptores, artificiais ou naturais (rios, lagos, mares) com volume e vazão suficientes para depurar a carga de poluentes orgânicos lançada. O fato é que a ilha de Florianópolis não conta com elementos hídricos dessa monta, de modo que a construção de estruturas para tal fim, ainda que ocupem áreas naturais (como o sistema de dunas Lagoa-Joaquina), devem, rigorosamente, obedecer dimensionamento rigoroso, bem como monitoramento e manutenção constantes, ainda mais quando a atividade (de utilidade pública) se desenvolve em Área de Preservação Permanente e no interior de unidade de conservação municipal (sem contar as características ecológicas ímpares do ecossistema de dunas local e o adensamento humano nas proximidades).

Portanto, a respeito da ETE da Lagoa da Conceição é inevitável o enfrentamento direto deste problema, sendo necessário sopesar alternativas técnicas e locacionais disponíveis para a continuidade da atividade e, ao mesmo tempo, tornar claras as responsabilidades técnicas das partes envolvidas e as medidas operacionais que serão realizadas para a eventual ocorrência de episódio como o deflagrado.

O que é certo: o rompimento não tem causas naturais. Tudo o que vimos e vivenciamos é fruto de vulnerabilidades, somadas às ameaças naturais relacionadas ao aumento do volume pluviométrico, exaustivamente anunciado pela Defesa Civil. O episódio soma-se a diversos desastres acontecidos em Santa Catarina, cada vez mais recorrentes e periódicos, e com graves prejuízos, especialmente a uma parcela expressiva e mais vulnerável da população.

Repita-se: a narrativa que atribui as dezenas de desastres ocorridos em Santa Catarina ao natural não é verdadeira! No máximo as ameaças naturais participam na deflagração dos acontecimentos que ao longo do tempo foram abordados sem a devida atenção, necessário monitoramento e aplicação de medidas corretivas.

Muito precisa ser esclarecido em relação aos procedimentos voltados ao gerenciamento de riscos, existência ou não de um plano de contingência, ou mesmo de medidas mitigatórias, sistema de alerta e comunicação do risco.

O caso da Lagoa da Conceição e suas vulnerabilidades há tempos é discutido pela sociedade civil e precede em muito a ocorrência do evento. O evento lança luz a um dos principais fatores potencializadores dos desastres, que é o descumprimento ou a insuficiência da legislação ambiental, destacadamente, o gravíssimo problema do tratamento de efluentes e a ocupação irregular de Áreas de Preservação Permanente.

Com vista a prevenir essa espécie de evento, a Lei Federal nº 12.608 de 2012, que instituiu no Brasil a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, e representa uma das legislações que compõem a estrutura normativa do Direito dos Desastres no País, traz, expressamente, no âmbito de suas disposições gerais, uma perspectiva obrigacional direcionada ao poder público em matéria de desastres, qual seja: “é dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre (artigo 2o)”.

Em complemento, a legislação inova ao trazer, no mesmo ponto da lei, duas orientações bastante relevantes. A primeira pode ser observada pela redação do artigo 2º, § 2º, que observa o desastre como um problema coletivo. Logo, poder público, iniciativa privada e sociedade devem, conjuntamente, buscar alternativas para o gerenciamento dos riscos e de desastres. Essa perspectiva contribui para a superação da tradicional alegação de que determinadas questões demandam altos valores. Sabe-se que a busca por soluções de questões complexas como o problema do saneamento básico demanda uma quantidade considerável de recursos, mas essa não pode ser a justificativa para a não ação, que também é uma forma de assumir riscos.

Um segundo ponto que merece destaque no âmbito do gerenciamento de risco de desastres no Brasil é o de que “a incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco” (artigo 2º, § 3º). Essa previsão traz para a legislação de proteção e defesa civil não apenas o princípio da prevenção, mas o da precaução, que importante papel tem, diante de riscos em relação aos quais não se tem suficiente conhecimento ou mesmo ausência de consenso científico. Logo, uma leitura simplista da lei permite afirmar que no Brasil nem a falta de recursos, muito menos a incerteza são motivos para omissão ou ação deficitária.


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