Nos séculos 17 e 18, os capuchinhos europeus que seguiam para o Reino do Congo, na África – onde realizavam trabalhos missionários regulares –, saíam do porto de Lisboa, em Portugal, o que os obrigava a fazer escala no Brasil, que mantinha carreira regular com a África devido ao tráfico negreiro. Na então colônia portuguesa, eles podiam ficar instalados nos hospícios mantidos pela ordem em Recife e em Salvador. Alguns desses religiosos, aproveitando o tempo livre, à espera do embarque para o Congo, produziram relatos sobre o que viram no litoral brasileiro, que hoje constituem importantes fontes de informação sobre o Brasil daquela época.
Esses relatos são o tema do volume 6 dos Cadernos do IEB, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que acaba de ser disponibilizada gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP (www.livrosabertos.sibi.usp.br). Com 305 páginas, essa edição dos Cadernos do IEB traz seis artigos sobre os escritos de cinco capuchinhos italianos que passaram por Recife e Salvador entre 1649 e 1703: Dionigi Carli da Piacenza, Michelangelo Guattini da Reggio, Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, Girolamo Merolla da Sorrento e Antonio Zucchelli da Gradisca. A edição – que tem como título Recife e Salvador na visão dos capuchinhos italianos missionários no Reino do Congo (1667-1703): habitantes, costumes, escravidão, comércio, matéria médica, flora e fauna do Brasil seiscentista – é dos professores Nelson Papavero, do Museu de Zoologia da USP, e Dante Martins Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Abarcando temas tão diversos como a escravidão, costumes locais, comércio, matéria médica, flora e fauna, essas descrições representam um precioso testemunho sobre os habitantes e a natureza local, alinhando-se entre as raras fontes disponíveis sobre o Brasil seiscentista nos anos que sucederam a invasão holandesa”, escrevem Papavero e Teixeira, no texto de introdução do volume.
Escravos
O degradante trabalho escravo nos engenhos de açúcar -principal atividade econômica do Brasil na época, baseada nas grandes propriedades de terra, na mão de obra escrava, na monocultura e na produção voltada para o mercado externo – foi observado por Girolamo Merolla da Sorrento. “Para manter as engenhosas máquinas de açúcar é necessário ter muitos e muitos escravos, tanto para plantar e cultivar as canas como para prover suficiente lenha para o fogo contínuo que arde sob os vastos caldeirões ferventes dia e noite, assim como para outros misteres do tipo servil. Encontra-se mesmo quem possua para este fim até 500 escravos, cuja vida, dizem eles mesmos, é considerada bastante longa quando chega ao sétimo ano de serviço, situação ditada pelo grande trabalho e limitado sustento.”
Numa de suas cinco cartas publicadas nos Cadernos do IEB, Michelangelo Guattini da Reggio descreve a abundância de ouro no Brasil e a tributação imposta pela Coroa portuguesa – o “Quinto”, em que o minerador era obrigado a entregar 20% do ouro encontrado. “Corre por essa região um rio tão rico que, com seu tesouro, socorre as misérias de qualquer necessitado que lhe implore ajuda, pescando em tal caso naquelas areias preciosas tanto ouro que serve para livrá-lo de sua necessidade, embora a quinta parte do qual tenha de ser tributada ao seu rei. Uma vez providos em sua atual necessidade, não movem um pé para colher mais ouro, mesmo por todo o ouro mais precioso do mundo.”
Da passagem de Antonio Zucchelli da Gradisca no Brasil, em 1698, ficou um relato minucioso do modo de vida dos habitantes da colônia: “Os brasileiros nativos que vivem no interior dos sertões costumam ferver em uma caldeira de água uma escudela de mel – do qual têm grande abundância nos próprios sertões – e com esta bebida se conservam sãos, vigorosos e robustos, apenas sabendo que coisa seja uma enfermidade. Esta água da Bahia, apesar de não ser muito fresca, contudo é bastante boa e conserva a saúde. É mantida nas casas em bilhas de barro e só se bebe dois dias depois de trazida da fonte, porque – tendo em si um travo amargo – nesse tempo se purifica e fica perfeita. O pão ordinário e comum – que se come não só na Bahia, mas também em todo o Brasil – é a farinha de pau. Esta é feita com a raiz da ‘mandioca’, que cresce como um pequeno arbusto, mais longa e mais grossa que um nabo. Tritura-se como queijo ralado e depois se espreme o suco, por ser venenoso. Assim espremida, põe-se a secar ao sol, perdendo desta maneira toda qualidade venenosa. Uma vez seca, parece à vista serragem de madeira, apenas com a diferença de ser um pouco mais branca – este é o pão que se come no Brasil. De início eu custava a me acostumar, mas quando tinha um bom apetite, entretanto, parecia-me saborosa. Há quem coma este pão com colher e com a mão, bem como quem o adicione e ensope no caldo ou em outras coisas líquidas, onde, inchando, dá uma sopa – melhor dizendo, polenta – desta maneira tornando-se menos desagradável. O sal é transportado como lastro nos navios das frotas. O azeite também e outras coisas vêm, como já disse, de Portugal. Há poucas ovelhas, mas não lhes cresce a lã,
O volume 6 dos Cadernos do IEB Recife e Salvador na visão dos capuchinhos italianos missionários no Reino do Congo (1667-1703): habitantes, costumes, escravidão, comércio, matéria médica, flora e fauna do Brasil seiscentista está disponível no Portal de Livros Abertos da USP.