Pandemia, autocuidado e saúde mental nas redes sociais

Por Camila Assunção Crumo, mestranda em Sociologia do Consumo e Sociologia Digital na FFLCH/USP

 12/04/2021 - Publicado há 3 anos
Camila Assunção Crumo – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Um dos trunfos da lógica consumista contemporânea é a transfiguração do individualismo em preservação da saúde mental. O pulo do gato consiste em igualar as fragilidades psicossociais causadas pelo funcionamento predatório de um capitalismo que individualiza a responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso em um contexto de competição esmagadoramente desigual, com o impulso egoísta de desfrutar de seu prazer independentemente do efeito que isso possa ter sobre outras pessoas.

A atribuição de propriedades terapêuticas ao consumo abafa qualquer discussão. Afinal, não se critica algo que “faz bem” à saúde. Esquece-se, assim, o caráter socialmente determinado dessas “necessidades”, alimentadas cada vez mais pela ânsia de mimetizar o que se vê nas luminescentes telas de celulares.

As redes sociais, hoje presentes no cotidiano de boa parte da população, funcionam como uma espécie de vitrine da vida que vale a pena, centrada na estética e no prazer. Especialmente nas redes imagem-centradas, como Instagram e TikTok, os influenciadores desfilam seus hábitos, opiniões e, sobretudo, produtos que consomem.

Os feeds dessas mídias funcionam, então, não só como catálogos, mas também como bússolas da vida ideal, saudável, a vida leve, cheia de belas paisagens, peles hidratadas, pratos exóticos e ambientes cools. Neles, o termo “autocuidado” aparece inúmeras vezes associado ao consumo de produtos de preços exorbitantes, destinados ao cultivo de algo muito importante nesse universo intrinsecamente estético: a beleza. Enquanto isso, “saúde mental” vira hashtag dos registros de viagens e passeios.

Em condições normais de temperatura e pressão, tal fenômeno já geraria uma série de problemas estruturais, como a destruição de áreas naturais até então preservadas e sem capacidade para receber visitação em massa, tal como vem acontecendo em diversas praias do litoral norte de São Paulo. Um prejuízo ambiental irrecuperável. Mas em tempos em que o País está sendo assolado de forma ímpar por um vírus altamente transmissível e capaz de gerar danos graves a quem o contrai, tratar a própria saúde mental – frequentando restaurantes ao menor sinal de relaxamento das restrições, por exemplo, ou viajando nos feriados prolongados decretados para substituir covardemente as medidas sanitárias imprescindíveis, porém impopulares –  acarreta um impacto social cruel: a ameaça à saúde física das pessoas mais vulneráveis, justamente aquelas que precisam trabalhar para viabilizar esse consumo.

Sempre que você se hospeda em um hotel que alega seguir “todos os protocolos de segurança”, camareiras terão que sacudir o lençol e recolher o lixo do banheiro com restos de excrementos. No interior dos restaurantes, os funcionários terão de passar o dia expostos a clientes que, obviamente, comerão sem máscaras. Nesses e em outros casos, pessoas são colocadas em risco em prol de seu suposto cuidado com a saúde mental, mantida à base de curtidas nas redes sociais.

Há ainda quem tente justificar a coisa toda com base no “altruísmo”, já que estariam fazendo a economia “girar”, salvando empregos. Engana-se, porém, quem acredita que seu consumo individual heroicamente salvará os negócios. A economia precisa de gente para progredir, pessoas vivas e saudáveis, o que depende de políticas públicas, como expansão de crédito e renda básica para a população. Pouco ajuda nisso o tratamento peculiar de sua saúde mental.

O disfarce do egoísmo em cuidado de si, mesmo que perfumado de responsabilidade socioeconômica, relaciona-se diretamente ao menosprezo das fragilidades de outrem. Seria melhor que o investimento em saúde mental – algo que, de fato, deve ser intensificado em uma pandemia – fosse direcionado a um especialista que ajudasse os afetados a lidarem com a incansável necessidade de colecionar validações digitais. Afinal, a busca por curtidas só reforça, em vez de aliviar, o peso da ilusão de que somos os únicos responsáveis por nossos sucessos e fracassos.


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