O Plano SP como algoritmo

Por Dalton de Souza Amorim, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Adriana Santos Moreno e Domingos Alves, ambos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP

 13/11/2020 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 01/12/2020 as 14:09
Dalton de Souza Amorim – Foto: IEA/USP
Adriana Santos Moreno – Foto: arquivo pessoal
Domingos Alves – Foto: arquivo pessoal
O Plano São Paulo, ou Plano SP, foi lançado pelo governo paulista em 27 de maio para “atuação coordenada […] com o objetivo de implementar e avaliar ações e medidas estratégicas de enfrentamento à pandemia […].” Tecnicamente é um algoritmo, mas também um modelo de realidade. Como algoritmo, “premia” municípios que seguem recomendações; como modelo, supõe como funciona a pandemia para contê-la.

O Plano SP mostrou-se péssimo preditor da pandemia de covid-19. Ribeirão Preto, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde, ingressou na “fase vermelha”, em 10 de junho, com 100,4 novos casos/dia, 3,4 novos óbitos/dia e 91 leitos de UTI ocupados; e ingressou na “fase amarela”, em 7 de agosto, com 311,9 novos casos/dia, 8,9 novos óbitos/dia e 167 leitos de UTI ocupados (respectivamente, 3,1 vezes, 2,6 vezes e 1,8 vez pior). É inaceitável como plano de “enfrentamento à pandemia”.

O Plano SP resulta em ações que agravam a pandemia e confundem a população: protocolos internacionais usam “fase vermelha” para 25 novos casos/dia por 100 mil habitantes — Ribeirão Preto tinha 43,8 no início da “fase amarela”. Algoritmos são escolhas conscientes de parâmetros e pesos. Incapaz em sua versão original de conferir classificação favorável a cidades, foi alterado diversas vezes, diminuindo exigências. Nunca foi plano de contenção, mas de flexibilização da atividade econômica apesar da pandemia.

“Quem se importa?” Comentários à boca pequena são próximos a argumentos da eugenia. Duas teses falsas e cruéis são apresentadas para defender o plano: inevitabilidade e imunidade de rebanho. Comparações mostram que a tese da inevitabilidade é flagrantemente falsa. Araraquara, a 90 km de Ribeirão Preto com 250 mil habitantes, teve 56 óbitos até 16 de outubro (237 óbitos/milhão). A gestão da pandemia pelos prefeitos que levam a sério “a inviolabilidade do direito à vida” (artigo 5° da Constituição Federal) de fato mostra um número inevitável de óbitos. Taxas de óbito acima de mil por 1 milhão de habitantes não são apenas evitáveis: são deploráveis.

Imunidade de rebanho, no contexto da pandemia, de certa maneira corresponde a um gestor declarar: “Deixei tanta gente morrer que quase não tem mais quem seja contaminado”. É uma autodeclaração de incompetência. Para o cientista americano William A. Haseltine, a “imunidade de rebanho é um outro nome para assassinato em massa”. Assim deveria ser tratada.

Há solução? Sim. A principal é a revisão imediata do Plano SP. Precisamos de um plano real de contenção da pandemia. Não o fechamento de tudo, mas mudança dos indicadores: deve haver controle efetivo do número de novos casos. A economia é consequência. A falsa dicotomia entre economia e saúde resulta nesse modelo ruim. O jornal britânico Financial Times mostrou que má gestão da pandemia causa maior prejuízo à economia.

A aposta subjacente era que, à espera da vacina, haveria progressão lenta de novos casos. E que o investimento para minimizar óbitos (leitos) seria redução suficiente de danos. Modelo equivocado. Sem ênfase no controle de novos casos (há comparações com a semana anterior sem considerar o patamar), o número tem sido tão alto que, mesmo com menor letalidade, a mortalidade causa vergonha.

Em 16 de outubro, a mortalidade no Peru, segundo pior país do mundo nesse indicador, era de 1.014 óbitos/1 milhão de habitantes (1M); no Brasil, 719/1M; Ribeirão Preto, 1.132/1M, Campinas, 1.183/1M; e Santos, 1.566/1M. Entre 12 de setembro e 2 de outubro, a mortalidade no Estado de São Paulo avançou 9,42% e, em Ribeirão Preto, 16,7%. Esses números não estão nos relatórios do Plano São Paulo.

Nos lugares onde há controle real — Vietnã, Hong Kong, Nova Zelândia, Austrália, China, Senegal; países grandes e pequenos, muito ou pouco populosos, ricos e pobres —, foi seguido o protocolo “Tris”: testagem, rastreamento e isolamento com suporte. Em maio, o imunologista americano Anthony Stephen Fauci repetia: “Test, test, test”. Solução simples. A economia desses países está bem. Ao Estado de São Paulo não falta ciência, tecnologia ou infraestrutura. Falta visão. Modelo ruim, algoritmo ruim, pandemia fora de controle.

Os óbitos acumulam-se à porta dos gestores municipais e estaduais. Faltam muitos meses para a vacinação em massa. Quem vai se desculpar com as famílias?

Está na hora de as instâncias encarregadas de proteção da sociedade cumprirem seu dever.

Artigo publicado originalmente na edição da Folha de S. Paulo de 12/11/2020

 


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