Zuza, o homem no tempo (ou os muitos tempos dentro do homem)

Apresentador de “Playlist do Zuza” e autor de pesquisas fundamentais sobre a música brasileira deixou legado de conhecimento e de postura aberta ao novo

 05/10/2020 - Publicado há 3 anos

Por Gustavo Xavier

Zuza Homem de Mello: o produtor e apresentador de Playlist do Zuza, da Rádio USP, estava se preparando para voltar a gravar o programa, após a parada forçada pela pandemia Arte: Jornal da USP

 

Ouça pelo menos um pequeno trecho das músicas abaixo, na sequência indicada. Em seguida, começaremos nossa conversa e nossa homenagem a Zuza Homem de Mello, que morreu dia 4, aos 87 anos.

Dinorah Dinorah, de Ivan Lins e Vitor Martins, interpretada por Ivan Lins e Erasmo Carlos

Segredos da Levitação, de André Abujamra, interpretada por André Abujamra

Que será, de Marino Pinto e Mário Rossi, interpretada por Dalva de Oliveira

Imagino que, ao ouvir as músicas listadas acima, você se sentiu dentro de um caleidoscópio sonoro, formando desenhos absurdamente contrastantes e lindos dentro de seu ouvido. Essa foi uma sequência musical do programa radiofônico Playlist do Zuza, veiculado desde março de 2017 na Rádio USP de São Paulo (93,7 MHz), na Rádio USP de Ribeirão Preto (107,9 MHz) e na Rádio Batuta – a emissora de internet do Instituto Moreira Salles. Um clássico de Ivan Lins, seguido pela estranheza de André Abujamra e, depois, a interpretação de Dalva de Oliveira para um sucesso dos anos 50.

Certa vez, encontrei Zuza, com sua esposa e produtora Ercília Lobo, no estacionamento. Tinham acabado de gravar mais um programa. Saudei-os e comentei sobre sequências como essa, tão loucas e maravilhosas. Ele deu aquela risada rouca e confirmou:

– É isso mesmo! O ouvinte sai de uma música e, quando pensa que vai ouvir algo parecido com a anterior, vem um chute na bunda! É assim mesmo que é bom!

Era esse presente que ele trazia aos ouvintes a cada semana. Trazia movimento, surpresa, contraste, enfim: vida. Sair de uma bossa nova, ir para uma música experimental, cair num bolero e dar a volta por um concerto de piano depois de passar pela esquina de um regional de choro eram o feijão-com-arroz nas tardes de sexta-feira, em seu Playlist do Zuza.

Numa de suas participações como entrevistado do programa Via Sampa, da Rádio USP, ele deixou claro o frescor que procurava. “No meu programa, eu faço questão de colocar muitas músicas que são verdadeiras surpresas. Porque o ouvinte escuta aquilo e diz: ‘Como é possível que uma música dessas passou despercebida? Como foi que passou ao largo dos hits da época?’ E isso acontece até hoje. Há uma quantidade de canções maravilhosas, gravadas hoje em dia, e que pouca gente conhece. Isso eu faço questão absoluta de colocar no Playlist do Zuza.”

Ouça no link abaixo programa especial da Rádio USP de São Paulo (93,7 MHz) e da Rádio USP de Ribeirão Preto (107,9 MHz) em homenagem a Zuza Homem de Mello, transmitido no dia 5 de outubro de 2020.

Esse espírito aberto e jovial foi rapidamente sentido em seus primeiros contatos na Rádio USP. Havia algumas sugestões de nomes para seu programa. Mas quando ele ouviu “Playlist” logo se animou. Era o termo mais atual. Essa mesma postura permeou suas escolhas de repertório, que incluíam artistas recentes, aos quais ele dedicava muita atenção.

O músico e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Ivan Vilela confirma. Mesmo sendo alguém que escreve desde há tantas décadas, tendo visto todas as grandes transformações da música brasileira, Zuza continuou buscando novidades. “Agora, no final da vida, ele estava atento aos movimentos jovens de novo”, ressalta. E se colocava em posição de aprendiz com tranquilidade. “Era curioso. Toda palestra que eu fazia sobre cultura caipira e sobre viola, estava ele lá na primeira fileira. Era uma pessoa que tinha um interesse em continuar aprendendo coisas com as quais ele não lidava, em beber nas fontes novas. Um cara muito bacana, nesse sentido, muito vivo”, afirma Ivan.

O professor Ivan Vilela – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Essa abertura marcante por tudo o que se referia à música também foi lembrada pelo violeiro Chico Lobo, recordando a apresentação que fez com o português Pedro Mestre, em Évora, Portugal, na qual receberam Zuza como convidado de honra. Chico conta que Zuza fez questão de chegar antes do horário, só para poder conversar, e que se mostrou muito curioso para saber sobre a relação entre as violas brasileira e portuguesa. “Um homem da idade dele sempre com aquela sede de conhecer. Ele estava de férias e fez questão de ir ao show. Ele não queria só assistir ao show, ele queria conversar. Perceber o interesse dele foi impressionante. E deu para entender por que Zuza Homem de Mello teceu, com tanta importância, seu nome na história da música brasileira.” Chico Lobo sintetiza a marca deixada por Zuza nesse encontro: “Ele me mostrou que, para o conhecimento, não tem idade. No caso dele, a curiosidade e o interesse pela música eram tão grandes que ele sempre queria conhecer mais, e isso é uma lição de vida”.

Ivan Vilela localiza a importância de Zuza no cenário da crítica musical: “Diferentemente da maioria dos críticos de sua geração, ele era músico. Então, tinha uma consistência muito grande na argumentação. E deixa muitas lições. Não só do trabalho como pesquisador, que foi muito bom, mas também essa coisa de olhar para os jovens e não viver só no universo que ele já dominava”.

Um de seus livros, escrito com o historiador e produtor musical Jairo Severiano, recebeu o título de A Canção no Tempo. São dois volumes, que abordam o período que vai de 1901 a 1985. Para quem veio descortinando a música popular no Brasil desde há tantas décadas, chegar com esse grau de interesse aos artistas de todas as épocas é revelador de sua amplitude de escuta. Blubell, Pélico, Banda Silibrina, Xênia França, entre outros artistas da nova geração, eram anunciados com entusiasmo por Zuza. Em reportagem publicada no Jornal da USP, em 2018, Zuza atesta: “A preparação do programa vem de uma seleção de tudo que ouço e já ouvi nas últimas seis décadas”. Ele é o próprio “homem no tempo”. O Zuza de todos os acordes.

Nos meandros dos encontros

A jornalista Heloisa Granito é produtora do programa Via Sampa, da Rádio USP. Seu pai, Miguel Granito, sempre leu muito e tinha predileção por livros de história da música. E, dentre estes, Zuza Homem de Mello era seu autor preferido. Tanto admirava o jornalista e pesquisador que chegava a colecionar recortes de jornais em que Zuza aparecia destacando algum tema musical. Por isso, Heloisa cultiva a mesma admiração, inspirada em seu pai, falecido em 2013.

A jornalista Heloisa Granito, produtora da Rádio USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Certa manhã de trabalho, Heloisa ia passando pelo hall de entrada da Rádio USP quando se deparou com ninguém menos que o próprio Zuza Homem de Mello, acompanhado por sua companheira e produtora Ercília Lobo. Ele preparava a estreia do programa que apresentaria. Por produzir o Via Sampa, Heloisa sempre recebeu muitos artistas, vários admirados por ela. Mas aquilo era demais. Ao ver Zuza sentado no sofá da entrada, teve que engolir seu lado tiete e agir como se fosse a coisa mais natural do mundo falar com alguém de quem era completamente fã. Por fora, a naturalidade de uma produtora experiente. Por dentro, a emoção se irradiando. “Durante todo o tempo que eu convivi com ele, tive esse problema. Às vezes isso até me atrapalhava a mente”, ri Heloisa, ao relembrar. “Porque é um ícone, né?” Por ter falecido antes, Miguel Granito não teve a oportunidade de levar, ele mesmo, seus livros para serem autografados por Zuza. Mas Heloisa levou e guarda as dedicatórias ali registradas carinhosamente. “Meu pai adoraria saber que eu estava trabalhando próxima ao Zuza.”

Outro que se tornou especialmente próximo foi o sonoplasta Benê Ribeiro. O famoso RRRRibeiro – com a língua estralando na boca de Zuza durante as gravações do programa. “Só de pensar que eu trabalhava com Zuza Homem de Mello, para mim era pura satisfação”, reflete. Zuza também trabalhou com edição de som e desenvolveu enorme sintonia com Ribeiro. “Uma vez, gravando o Playlist, enquanto tocava uma música ele me disse: ‘Sabe Ribeiro, eu olho para você trabalhando e me vejo. Vejo você aí modulando, fazendo essas mixagens e vinhetas para mim, e é como se eu estivesse fazendo. É como se os seus dedos fossem os meus’.”

Ribeiro conta que, em várias ocasiões, depois da labuta para montar as vinhetas trazidas, eles ouviam o resultado final e Zuza se emocionava. “O Zuza gostava muito do que fazia”, resume Ribeiro.

Outro traço de quem conviveu com ele era a maneira gentil de lidar com as diferenças. O músico Ivan Vilela resume: “Ele deixa um legado não só de bons trabalhos, mas de muita elegância também. Elegância no jeito de escrever, de contar as coisas. E elegância na maneira de agir diante das adversidades, das diferenças. Mesmo tendo diferenças de pontos de vista com outros pesquisadores, ele era de uma gentileza, de uma educação! Sempre sorrindo. Uma figura notável. Vai deixar uma saudade imensa para a gente”.

Benê Ribeiro passou com Zuza alguns dos momentos mais apreciados pelo homem apaixonado por rádio e por música. Tão apaixonado que, nos últimos dias, transbordou de alegria ao acertar a retomada das gravações do seu Playlist, após a parada forçada pela pandemia. Ribeiro reúne as suas impressões desse amigo que o rádio lhe trouxe:

Um crítico de música perfeccionista, um cara perfeito. Tranquilo, muito observador, dava muito valor à nossa música e era muito preciso nas suas análises”.

O jornalista e crítico de música Tárik de Souza – Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Zuza Homem de Mello, que nasceu em 1933, fez de tudo. Ou melhor, fez de tudo o que envolvesse música. Escreveu – em 1956 já começava a assinar colunas em jornais -, tocou contrabaixo, estudou incansavelmente – inclusive em instituições renomadas como a Juilliard School of Music, em Nova York, nos Estados Unidos -, foi engenheiro de som em programas de TV, atuando também nos grandes festivais dos anos 60, escreveu diversos livros de referência, passando a ocupar cadeira na Academia Paulista de Letras.

Tárik de Souza, além de jornalista e crítico musical, também editou livros de Zuza: o já citado A Canção no Tempo, que dividiu em dois volumes, e A Era dos Festivais – Uma Parábola. Ele lista outros livros, sublinhando a importância deles: Eis Aqui os Bossa Nova, Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção e as compilações Música com Z – Artigos, Reportagens e Entrevistas e Música nas Veias – Memórias e Ensaios. Tárik, que foi prefaciado por Zuza em seu livro Sambalanço, a Bossa que Dança, sintetiza: “São fabulosas lições de jornalismo musical, de alguém que sempre amou o que fazia”. E relembra uma das ocasiões de seus encontros: “Tive a honra de ser amigo e trabalhar com o enciclopédico Zuza Homem de Mello. Anos atrás, o Zuza promoveu uma série de shows e encontros e me convidou para ser um dos entrevistadores e curadores. Para tanto, fui recebido em sua casa em Indaiatuba, à beira da represa, onde convivi com ele e sua família, além de conhecer seu espetacular acervo, uma casa inteira repleta de gravações raras e preciosas”.

Parte desse acervo precioso esteve presente em seu Playlist do Zuza. E era no Playlist que, sempre ao final, ele fazia sua voz acompanhar acordes com cor de pôr do sol. E dizia: “É… tá na hora de dizer tchau. Meu prezado ouvinte, obrigado pela audiência”.

Nem é preciso dizer que quem agradece somos nós.

 

Da alegria do retorno à tristeza da partida

Por Marcia Blasques

No dia 28 de setembro, Zuza me mandou um áudio por WhatsApp. Estava ansioso para retomar as gravações do Playlist do Zuza, programa que apresentava na Rádio USP desde 2017. Os programas inéditos estavam suspensos desde meados de março, por conta da pandemia.

Ele ainda não sabia, mas há algumas semanas vínhamos conversando internamente na Rádio sobre a possibilidade desse retorno – ainda a distância, pela necessidade de manter a segurança sanitária de todos os envolvidos. Também era claro para nós que, independente de como fôssemos resolver o assunto, era fundamental garantir a interação bem-humorada entre Zuza e Ribeiro, nosso sonoplasta responsável pelo programa.

Com esse desenho prévio em mente, respondi para Zuza que poderíamos, sim, retomar as gravações. A alegria e a animação dele transbordavam pelo áudio, e fechamos a data do retorno para o dia 13 de outubro. Embora a situação ainda estivesse longe da ideal – se dependesse de Zuza, ele estaria presencialmente no estúdio no dia seguinte –, deixamos tudo acertado.

O domingo, 4 de outubro, amanheceu cinzento, com uma garoa fina e gelada. Mal sabia eu que aquele clima melancólico acabaria se mostrando bem adequado ao meu estado de espírito quando acessei o jornal e li a notícia do falecimento de Zuza Homem de Mello. O dia 13, com a promessa de ser tão especial, de repente se tornou uma data qualquer, mais uma entre tantas outras dessa quarentena que parece não ter fim.

Zuza deu o tom dos finais de tarde das sextas dos últimos três anos na Rádio USP. O Playlist do Zuza era feito para colocar o ouvinte no clima do fim de semana com boa música e boas histórias. Para homenagear músicos consagrados e mostrar músicos desconhecidos. Certamente agora nosso happy hour já não será mais o mesmo. Apesar disso, só tenho uma coisa a dizer depois desse tempo de convivência tão rica: obrigada, Zuza.

Marcia Blasques é diretora de redação do Jornal da USP e da Rádio USP.


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