TESOUROS DA USP

Fotomontagem: Moisés Dorado

Os múltiplos usos sociais dos acervos da USP

Exemplos do empenho da Universidade em preservar, restaurar, divulgar e gerar conhecimentos com as coleções sob sua guarda

25/09/2020
Textos de Claudia Costa, Leila Kiyomura e Luiz Prado
Diagramação de Moisés Dorado

Eles poderiam estar perdidos para sempre: obras de arte, cerâmicas amazônicas milenares, fotografias antigas, os primeiros mapas a descrever o Brasil, ainda no século 16, manuscritos originais de grandes escritores, exemplares de animais extintos. Ao longo das últimas oito décadas, acervos de valor inestimável foram entregues aos cuidados da USP, que, através de seus pesquisadores, tratou, recuperou, preservou, exibiu em público e estudou esses tesouros. O resultado – também inestimável – pode ser parcialmente verificado na forma de ensino consistente, formulação de teorias que explicam com mais exatidão o mundo natural e as sociedades humanas, produção de pesquisas de impacto internacional e a possibilidade de contemplar peças que enriquecem, inspiram, emocionam e deslumbram o coração e a mente.

Na reportagem a seguir, o Jornal da USP apresenta seis acervos da Universidade, abrigados no Museu de Arte Contemporânea (MAC), no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), no Museu Paulista (MP), no Museu de Zoologia (MZ), no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM). Pequena parcela das centenas de coleções mantidas pela USP, eles são exemplos do empenho com que a Universidade acolhe patrimônios públicos, evita sua perda e dá a eles um uso social, beneficiando toda a sociedade.

Além de servir para o ensino e a pesquisa, acervos da Universidade são exibidos ao público em mostras gratuitas. Acima, a exposição Museus e Acervos da USP, realizada em 2019 na Reitoria da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo  – Fotos: Cecília Bastos/USP Imagens

Parte dessas riquezas foi atingida nesta semana, quando teve início o leilão do acervo oriundo do falido Banco Santos, previsto para se estender até 2 de outubro. Em 2005, por decisão judicial, a USP ficou como fiel depositária de 18 mil objetos daquele acervo, que foram distribuídos entre o MAC, o MAE, o MP e o IEB. Agora, com o leilão, essas peças estão prestes a deixar os museus da Universidade e se transferir para o setor privado. Só na primeira noite de leilão, no dia 21 passado, foram arrematadas obras como a tela The Founding #6m, do artista plástico norte-americano Frank Stella, e um esboço do quadro Operários, de Tarsila do Amaral – até então em posse do MAC -, entre outras. 

Confira a seguir os múltiplos usos sociais dos acervos da USP.

Museu de Arte Contemporânea (MAC)

“O mais importante é o valor cultural das obras”

O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP recebeu em 1963 – ano de sua fundação – a missão de cuidar de um acervo composto de algumas das obras mais cobiçadas da arte moderna e contemporânea, criadas por artistas como Amedeo Modigliani, Pablo Picasso, Joan Miró, Wassily Kandinsky e Di Cavalcanti, antes sob a guarda do antigo Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Ao longo das décadas seguintes, ele ampliou esse patrimônio e hoje possui mais de 10 mil peças, entre pinturas, gravuras, fotografias, esculturas e instalações – uma das maiores coleções de arte da América Latina.

Em 2005, por decisão judicial, a esse acervo foram incorporados 2.008 objetos oriundos do extinto Banco Santos. Entre esses objetos estavam obras de artistas do Brasil e do exterior – como o norte-americano Frank Stella, a paulista Tarsila do Amaral e o carioca Cildo Meireles – e um lote com cerca de mil fotografias. Desde então, o museu se dedicou a preservar, pesquisar e divulgar esse material.

A tela The Founding #6m, do artista norte-americano Frank Stella – Foto:

Nos 15 anos em que cuidou das obras vindas do Banco Santos, o MAC realizou nada menos que 17 exposições gratuitas com essas peças. Uma delas, Coleção, Ciência e Arte, aconteceu em 2014 no Centro Universitário Maria Antonia da USP. Outra,  intitulada Coleções sob Guarda Provisória do MAC USP, ocorreu entre janeiro e março de 2010 e apresentou 103 trabalhos de artistas como Miró, Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Amílcar de Castro. Já a mostra Fotógrafos da Cena Contemporânea, em cartaz entre 2011 e 2013, reuniu 63 imagens feitas entre 1954 e 2003.

Nos 15 anos em que ficou com as obras do Banco Santos, o MAC realizou 17 exposições com elas."

Para realizar essas exposições, o MAC teve um árduo trabalho. Antes de serem entregues à USP, as peças do Banco Santos estavam depositadas num galpão localizado às margens do rio Pinheiros, em São Paulo. Numa das enchentes do rio, a água alcançou o galpão e atingiu as obras. Estas também estavam infestadas de fungos, bactérias e excrementos de ratos e baratas. Foi preciso mobilizar uma equipe de especialistas para se dedicar exclusivamente a esse acervo, como conta a diretora do MAC, professora Ana Magalhães. “Criamos um banco de dados para catalogação das obras recebidas e fizemos procedimentos de higienização e conservação de todas elas, algumas em estado muito crítico”, diz Ana.

Foto do artista plástico russo Aleksandr Rodchenko (1891-1956) – Reprodução

Foto do artista norte-americano Man Ray – Foto: Reprodução

O artista húngaro George Brassaï – Foto: Reprodução

Segundo a diretora, todo o espaço do MAC foi repensado para acolher as obras. Uma área de 1.700 metros quadrados recebeu mapotecas para a guarda adequada do material. “A partir daí, as obras passaram pelo mesmo tipo de tratamento de vistoria, inventariação, atualização catalográfica e curadoria que se realiza com o acervo do museu como um todo.”

A diretora do MAC destaca as dificuldades que a equipe do museu teve para tratar as cerca de mil fotografias recebidas. “Os laboratórios de restauro do museu não possuíam especialistas na conservação e no restauro de fotografias, o que exigiu treinamento dos conservadores do MAC e eventuais contratações externas.”

O MAC não tinha especialistas na conservação e no restauro de fotografias, por isso teve que dar treinamento e fazer contratações.”

A professora do MAC Helouise Costa, especialista em história da fotografia, confirma a importância do lote de fotos. Segundo ela, o conjunto oferece um raro panorama da história da fotografia desde o século 19 até o início do século 21. “Ele não tem paralelo em nenhuma instituição museológica no Brasil”, afirma Helouise.

Ainda segundo Helouise, as fotos são importantes também pela diversidade geográfica. Elas foram produzidas por fotógrafos do Brasil, França, Alemanha, Estados Unidos e Japão. Além disso, contemplam diferentes segmentos, como fotoclubismo, moda e fotojornalismo, entre outros.

“Desde que recebeu essas fotos, o MAC integrou a coleção às suas atividades de pesquisa, ensino e extroversão (divulgação). As pesquisas, inclusive sobre a procedência das obras, mobilizaram também alunos de graduação e de pós-graduação da USP em diferentes atividades, numa experiência muito rica de ensino e aprendizagem”, ressalta Helouise. “Para o museu, o mais importante sempre foram o valor cultural e artístico da coleção e as possibilidades de produção de conhecimentos que ela oferece.”

Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE)

“Patrimônio público não pode ser privatizado”

O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP guarda um tesouro com cerca de 1,5 milhão de itens. São acervos de arqueologia brasileira e das Américas, da África, do Mediterrâneo e do Oriente Próximo e também coleções de etnologia, que abrangem a cultura material de coletivos indígenas vivos.

De acordo com o professor Paulo Antonio DeBlasis, diretor do museu, o principal resultado das pesquisas feitas a partir desse acervo é a geração de “conhecimentos sobre as culturas ou civilizações que viveram no passado remoto em território brasileiro”.

A pesquisa do acervo do MAE desempenha vários papéis sociais, como a geração de conhecimentos sobre civilizações antigas e atuais.”

Segundo o professor, esse saber desempenha uma série de papéis sociais. Em primeiro lugar, alimenta o interesse histórico em perceber que havia civilização e cultura na América antes da chegada dos europeus. Além disso, contribui para aumentar o conhecimento sobre as civilizações atuais.

“Olhar para o passado e ver como, ao longo dos últimos 10 mil anos, as populações vêm fazendo com as espécies nativas é uma perspectiva que só a arqueologia permite”, exemplifica DeBlasis, que concentra suas pesquisas na região litorânea de Santa Catarina. “Lá nós temos culturas de 8 mil, 9 mil anos, que nos ensinam a lidar com esses ambientes costeiros, com a produtividade da pesca, por exemplo.”

O professor Paulo DeBlasis, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, na ala dedicada às obras vindas do Banco Santos – Foto: Cecília Bastos – USP Imagens

Entre a miríade de exemplares de cultura material abrigados no museu encontram-se 3.248 objetos arqueológicos e etnográficos que pertenceram à coleção do Banco Santos. Parte das peças sob responsabilidade do MAE correspondem a artefatos de diferentes regiões da Amazônia e, conforme informações do museu, evidenciam “importantes formas de ocupação desse território pelas populações indígenas desde períodos remotos”.

Conforme explica DeBlasis, uma boa porção da coleção é mantida em uma reserva visitável, que guarda o acervo ao mesmo tempo em que o expõe ao público. Ela também é usada em aulas e alimenta teses e dissertações desenvolvidas no MAE.

Peças do Banco Santos evidenciam a ocupação da Amazônia por populações indígenas desde períodos remotos.”

Uma dessas pesquisas é realizada atualmente pela doutoranda Erêndira Oliveira, que investiga a iconografia de cerâmicas amazônicas encontradas ao longo do rio Solimões. Erêndira estuda os desenhos pintados e modelados em urnas funerárias para compreender que ideias eles expressam. O intuito é mapear o que eles podem revelar sobre o entendimento de mundo dessas sociedades do passado. A pesquisa dá continuidade ao mestrado de Erêndira, que está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

Exemplares do acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP relacionado ao mundo mediterrâneo antigo – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Para DeBlasis, a legislação que protege os materiais arqueológicos e etnográficos dificulta a retirada da guarda da coleção das mãos do MAE. A comercialização de artefatos arqueológicos é proibida e controlada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Também existem restrições para o comércio de peças etnográficas produzidas com partes de animais silvestres, como plumarias, com a fiscalização feita pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais).

O professor revela, entretanto, que já está reunindo documentação para fazer uma estimativa dos gastos que o museu teve para manter o acervo. “É muito importante que esses acervos fiquem em instituições públicas, como os museus, porque assim ficam disponíveis para o grande público”, pontua DeBlasis. “Eles se tornam um patrimônio público, o que esses objetos efetivamente são, todos eles. Não devem ser privatizados”, diz.

Museu Paulista (MP)

“Preservação e curadoria geram custos permanentes”

Os 6.156 objetos e documentos oriundos do Banco Santos que foram destinados ao Museu Paulista (MP) da USP se referem principalmente à história. Entre esse material estão cartas de d. Pedro II e livros raros, como um exemplar da Bíblia impresso em 1493, em Nüremberg, na Alemanha, e um livro de madeira com letras escritas à mão em alfabeto batak, do sudeste asiático.

Chama a atenção dos pesquisadores do museu um lote de fotografias do século 19 e início do século 20, que retratam personalidades como Lampião, morto em 1938, a atriz francesa Sarah Bernhardt (1844-1923) e o cientista também francês Louis Pasteur (1822-1895). Algumas foram obtidas através de uma técnica rara, que usava pigmentos de carvão sobre papel. Essas fotos são utilizadas em cursos de graduação e pós-graduação e são objeto de estudos de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. “Graças a esse acervo, o Museu Paulista contempla hoje todas as técnicas fotográficas praticadas desde o surgimento da fotografia, em meados do século 19”, afirma a professora Solange Ferraz de Lima, ex-diretora e atual coordenadora da Comissão de Extensão e Cultura do Museu Paulista – também conhecido como Museu do Ipiranga.

O Museu Paulista da USP – Foto: Divulgação Museu Paulista / Jose Rosael

Mas não foi fácil deixar as fotos em condições de serem estudadas. Segundo Solange, o Museu Paulista montou um “verdadeiro pronto-socorro” para receber os documentos, em 2005, porque eles estavam em péssimo estado de conservação. “Contratamos equipes, reservamos duas grandes salas no edifício para a quarentena dos papéis, desenvolvemos um sistema de catalogação e notação específico, higienizamos e embalamos tudo”, conta a professora. Todo esse processo teve custos de R$ 1,3 milhão, que ainda não acabaram. “Os documentos seguem sendo cuidados, os trabalhos de preservação e curadoria geram custos permanentes”, diz Solange.

O Museu Paulista montou um ‘pronto-socorro’ para receber o acervo do Banco Santos, que estava em péssimas condições.”

A decisão judicial que determinou a entrega desse acervo para leilão contrariou a professora Solange e outros pesquisadores do Museu Paulista. Para Solange, trata-se de dinheiro público investido na restauração e conservação de um patrimônio com uma importante função social – o ensino e a pesquisa – que agora pode ser destinado a um fim privado e particular. A professora questiona: “Quem perderá, de fato, com a saída dessa coleção da USP de volta para o colecionismo privado?”. E ela mesma responde: “Em última instância, a sociedade, que deixará de ter acesso a esse acervo, que garantimos gratuitamente nos últimos 15 anos”.

O professor Paulo Garcez, chefe do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista, considera que a instituição deve ser ressarcida pelo gasto feito com a recuperação e conservação dos documentos. “Há empresas privadas que fazem essa guarda no Brasil. Seria possível verificar o custo da metragem do espaço utilizado para a salvaguarda numa empresa privada, devolvendo o valor para o Estado”, ele sugere. E continua: “Não podemos ser designados como fiéis depositários do acervo, gastar dinheiro público com ele e, no fim, beneficiar a iniciativa privada”.

Não podemos servir como fiéis depositários de um acervo, gastar dinheiro público com ele e, no fim, beneficiar a iniciativa privada.”

Garcez descreve a complexa trajetória dos documentos no Museu Paulista, desde sua chegada à instituição. “Quando uma coleção entra sob nossa salvaguarda, toda uma cadeia curatorial é acionada”, afirma o professor.

Essa cadeia tem várias etapas. Elas exigem ações de conservação e restauro – incluindo pesquisas científicas nessas áreas, documentação e catalogação e, finalmente, a divulgação através de exposições e publicação de artigos, catálogos, teses e livros. Há ainda as atividades educativas e a difusão nas redes sociais. “Tudo isso gera novos e importantes conhecimentos sobre gestão de bens culturais, museologia e arquivística, por exemplo.”

O Museu Paulista conserva atualmente um acervo que soma 450 mil peças – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Alunos de graduação de outras unidades da USP fazem estágios no museu, atuando nas várias etapas da cadeia curatorial, destaca ainda o professor. “O museu se torna então uma formação complementar importante, capacitando profissionais para o mercado.”

Fundado em 1895, o Museu Paulista foi incorporado à USP em 1963. Atualmente, possui acervo com cerca de 450 mil itens.

Museu de Zoologia (MZ)

Coleção zoológica abriga “coisas que ainda não se conhecem”

Situado no bairro do Ipiranga, em São Paulo, o Museu de Zoologia (MZ) da USP é uma unidade de ensino, pesquisa e extensão que abriga um dos maiores acervos zoológicos da América Latina. São cerca de 11 milhões de exemplares preservados, utilizados em pesquisas conduzidas no museu. Aulas de graduação e atividades abertas para a sociedade em geral também se beneficiam desse patrimônio gigantesco.

De acordo com dados do próprio museu, cerca de 650 artigos científicos são produzidos anualmente ao redor do mundo a partir de suas coleções. Em 2019, o corpo docente da instituição foi citado em 3.701 trabalhos, uma média de 218 citações por professor. Em cinco anos, o conjunto de citações chegou a quase 16 mil.

Cerca de 650 artigos científicos são produzidos por ano no mundo a partir das coleções do Museu de Zoologia da USP."

O volume de peças abrigado no museu é organizado em coleções, algumas delas as maiores do mundo. É o caso da coleção de moluscos, que reúne cerca de 1 milhão de espécimes, a maior da América Latina. O maior acervo do planeta de répteis e anfíbios sul-americanos também pertence ao Museu de Zoologia, com 120 mil répteis e 140 mil anfíbios, o que o torna uma das seis maiores coleções herpetológicas existentes. Segundo informações divulgadas pelo museu, a coleção é referência incontornável para qualquer pesquisador que realize trabalho de revisão sobre répteis e anfíbios da região neotropical, área que abrange América do Sul, América Central, Caribe e parte do México.

Pesquisa em andamento no laboratório de ictiologia (estudo de peixes) do Museu de Zoologia da USP – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

O Museu de Zoologia também guarda o maior e mais completo acervo mundial de aves brasileiras, com aproximadamente 105 mil exemplares, 20 mil amostras de tecido, 3,5 mil esqueletos, 2 mil ninhos e 3 mil ovos. A coleção é costumeiramente escolhida por pesquisadores como local para o depósito dos exemplares-tipo de novas espécies. Outra coleção que também impressiona é a de peixes, a principal do Brasil, com mais de 100 mil lotes.

“As únicas instituições que realmente catalogam e registram a vida no planeta são os museus de história natural”, afirma o professor Mário César Cardoso de Pinna, diretor do Museu de Zoologia. “Sem esses acervos, nós virtualmente não sabemos o que existe na Terra, porque ainda não terminamos de catalogar todas as espécies que existem no planeta.”

Uma coleção biológica é uma fonte de dados novos. Sem isso, não conseguimos estudar a biodiversidade do planeta.”

O professor explica que as coleções do Museu de Zoologia não contêm apenas espécies já catalogadas, mas exemplares coletados em trabalhos de campo, tanto no Brasil como no exterior, à espera de pesquisadores para identificá-los. Um processo que pode levar anos e também trazer descobertas para a ciência.

“Os acervos dos museus de história natural são acervos de coisas que ainda não se conhecem”, aponta Pinna. “Uma coleção biológica é realmente uma fonte de dados novos. Sem isso, não conseguimos estudar a biodiversidade do planeta.”

O diretor do Museu de Zoologia da USP, professor Mário César Cardoso de Pinna, ao lado na coleção ictiológica  – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Um exemplo de pesquisa orientada por Pinna que se valeu do acervo do Museu de Zoologia é a tese de doutorado de Fernando D’Agosta. O pesquisador reuniu todo o conhecimento disponível sobre a diversidade e a distribuição dos peixes da Amazônia. “Nós liberamos a primeira lista completa de peixes amazônicos, que saiu no boletim do Museu Americano de História Natural”, comenta o professor. Como ele explica, uma das contribuições do estudo é permitir que outros pesquisadores encaixem novas espécies nesses padrões de distribuição já mapeados. O trabalho pode ser acessado na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

A formação do acervo do Museu de Zoologia da USP remonta ao final do século 19 e ao surgimento do Museu Paulista (MP). Em 1890, o empresário Francisco Mayrink doou ao governo do Estado de São Paulo a coleção de história natural que adquirira de Joaquim Sertório, um rico proprietário de terras. Ela deixaria o Museu Paulista no início dos anos 1940, com a construção do prédio do então recém-criado Departamento de Zoologia da Secretária de Agricultura, Indústria e Comércio do Estado. A incorporação pela USP e o nome atual, Museu de Zoologia, viriam em 1969.

Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)

“Quem perde é a sociedade brasileira”

“A USP recebeu, cuidou, restaurou e deu visibilidade a um imenso patrimônio cultural, recuperando-o para a sociedade.” É assim que a diretora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, professora Diana Gonçalves Vidal, se refere ao tratamento dado aos objetos oriundos do extinto Banco Santos que, sob a guarda da Universidade desde 2005, foram enviados a leilão por determinação judicial neste mês.

O Complexo Brasiliana, onde se encontram a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Entre esses objetos estão as 7.004 peças deixadas aos cuidados do IEB, incluindo 380 mapas históricos – vários datados de entre os séculos 16 e 19 –, 3.400 matrizes de xilogravuras e 1,7 mil volumes de literatura de cordel. Assim como aconteceu com as obras destinadas a outros museus da USP, essas peças sofreram com a inundação do galpão onde se encontravam antes de serem entregues à Universidade, provocada pelo transbordamento do rio Pinheiros, em São Paulo. Elas tinham sido prejudicadas também pela ação de ratos e baratas. “Era preciso tomar medidas urgentes de ‘salvamento’, e foi o que fizemos”, lembra Diana. Os gastos com o tratamento adequado dessa coleção – que exigiu higienização, restauro e acondicionamento correto – alcançam R$ 900 mil, em valores não atualizados de 2011, segundo a professora.

Mapas que mostram o Brasil, datados de entre os séculos 16 e 19, foram digitalizados e estão disponíveis gratuitamente na internet."

O IEB chegou até mesmo a digitalizar os mapas, que se encontram disponíveis para consulta on-line gratuita. Mesmo assim, de acordo com Diana, não se pode ficar sem os originais, que guardam informações fundamentais como autor, local, data e técnica de confecção. “Esses mapas mostram como o Brasil foi representado desde sua descoberta, por isso têm enorme importância para o estudo da configuração territorial do Brasil e da América do Sul”, destaca Diana, citando outros documentos preciosos, como mapas náuticos e uma série de mapas-murais impressos em oficinas europeias nos séculos 17 e 18.

Mapas da coleção do Banco Santos em exposição no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – Foto: IEB-USP

Os volumes de literatura de cordel ganham destaque por sua relação com a oralidade, explica Diana. Eles são importantes como fonte de pesquisas sobre folclore e cultura popular brasileira. “Essa coleção de literatura de cordel faz com que o acervo do IEB seja voltado não apenas para a preservação de arquivos de intelectuais e artistas, mas também para a preservação da cultura popular.”

Para recuperar as xilogravuras, foi criada uma técnica que representou uma evolução na conservação de obras de arte."

Já as matrizes de xilogravuras – “de uma beleza fantástica”, segundo Diana – levaram os pesquisadores do IEB a conceber uma técnica inédita de preservação de materiais, desenvolvida em parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), órgão do governo federal instalado na Cidade Universitária, em São Paulo. De acordo com essa técnica, a esterilização das peças foi feita por meio de irradiação de cobalto-60, um isótopo produzido artificialmente em reatores nucleares. Utilizado na indústria de alimentos mas considerada, na época, imprópria para o tratamento de obras de arte, o procedimento foi bem-sucedido e recuperou as xilogravuras deterioradas. “Isso representou uma grande evolução na conservação de obras de arte no Brasil e até foi tema de uma dissertação de mestrado no Instituto de Física da USP.”

Escolares em visita a exposição no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – Foto: IEB-USP

Diana ressalta que os objetos oriundos do Banco Santos foram objeto de estudos de pesquisadores, que sobre eles escreveram artigos, fizeram exposições, compuseram teses e promoveram palestras. “Isso gerou conhecimentos imensuráveis”, ressalta.

Agora, a professora lamenta que, depois de todo o trabalho desenvolvido, as obras tenham que ser levadas a leilão. “A Universidade perde, mas, principalmente, quem perde é a sociedade brasileira”, afirma Diana. “O material chegou deteriorado e ficou na Universidade em condições adequadas de guarda. É uma pena que tudo isso vá embora, desprezando tudo o que foi feito.”

Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM)

"Entregamos nossa floresta para a Universidade"

Quando Guita e José Mindlin viram, em 2006, o projeto da Brasiliana USP – a biblioteca que reuniria o acervo formado pelo casal ao longo de oito décadas –, ficaram admirados. “Nós estamos vendo nascer o sonho de nossas vidas, que é a alegria de dividir com os brasileiros a sabedoria da leitura”, disse José Mindlin. “Nós vamos e os livros ficam. Daí a nossa decisão de confiar a Brasiliana à Universidade de São Paulo.”

Fachada do conjunto arquitetônico da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

O sonho e as sementes que viram se transformar em floresta atravessaram o tempo. Guita morreu em 2006 e José Mindlin, em 2010. Mas a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP guarda a infinitude de suas vidas através dos livros. Numa das muitas conversas que teve com o Jornal da USP, Mindlin disse ternamente: “Entregamos nossa floresta para a USP”. E, ao falar sobre o projeto saindo do papel, observou: “Eu queria ser dez anos mais moço para acompanhar de perto essa transformação, mas, de onde eu estiver, vou estar apreciando esse nosso projeto, que é só um projetinho diante do que a USP vai realizar”.

Desde o início, a BBM oferece exposições, cursos e seminários, além de acesso ao acervo através da internet, com download gratuito.”

Hoje um órgão ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da  USP, a BBM abriu suas portas ao público em março de 2013. “Desde a sua inauguração, a biblioteca mantém um programa regular de exposições, palestras, seminários, cursos, lançamentos de livros, encontros literários e até apresentações musicais”, afirma o diretor da BBM, professor Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, docente do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Além disso, recebemos pesquisadores para explorar o seu acervo e fazemos parcerias com várias instituições afins, no Brasil e no exterior.”

O bibliófilo José Mindlin, que doou sua biblioteca para a USP – Foto: Cecilia Bastos / USP Imagen

O principal meio de divulgação do acervo da BBM, segundo Zeron, é a BBM Digital, plataforma que permite acesso on-line aos livros digitalizados do acervo. “Milhares de obras da coleção estão disponíveis em formato digital e com download gratuito”, diz o diretor.

A biblioteca possui também um braço editorial, o selo Publicações BBM, que edita a Revista da BBM e livros sobre o acervo. “Outros meios de divulgação que usamos para divulgar o acervo para um público mais amplo são as exposições físicas e virtuais, o blog da BBM e os perfis da biblioteca nas redes sociais Facebook, Instagram e YouTube”, orienta Zeron.

Centenas de milhares de usuários consultam o acervo on-line da BBM por mês, do Brasil, Portugal, Estados Unidos, França e Espanha.”

Com esses recursos, a BBM caminha no ritmo da sociedade atual para divulgar os livros que passaram pelo filtro dos leitores Guita e José Mindlin. “O acervo da biblioteca tem sido intensamente consultado, tanto os exemplares físicos – vários deles muito raros – como os digitais, que são acessados por centenas de milhares de usuários a cada mês”, afirma o diretor. “Há pesquisadores estrangeiros que vêm ao Brasil especialmente para consultar itens do acervo da BBM. Os documentos da BBM Digital são requisitados por pesquisadores de vários países, principalmente de Portugal, Estados Unidos, França e Espanha.

Guita e José Mindlin: uma história entre livros – Foto: Jorge Maruta / USP Imagens

As raridades da BBM são incontáveis. Há os relatos de viajantes do século 16, como Hans Staden, André Thevet e Jean de Léry, as obras de missionários jesuítas, como a Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil, de José de Anchieta, datada de 1595, e primeiras edições de livros como Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, de 1792, e A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, de 1844. Manuscritos e provas tipográficas de obras como Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, Vidas Secas, de Gracialiano Ramos, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, também fazem parte da coleção.

Carlos Zeron destaca que a importância da BBM se deve, antes de tudo, à relevância do seu acervo. “A coleção reunida por Guita e José Mindlin e generosamente doada à USP, um gesto singular que deve ser enaltecido, constitui uma referência dentre as bibliotecas brasileiras”, diz. “E ela está à disposição de toda a sociedade.”


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.