Andanças de uma longa militância verde

Por José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP e colunista da Rádio USP

 03/08/2020 - Publicado há 4 anos
José Eli da Veiga – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Descarbonizar é diminuir a concentração atmosférica dos gases gerados pelas atividades humanas causadores do aquecimento global, entendidos como “de efeito estufa”. Principalmente por queda das emissões, mas também por incrementos de sua absorção por oceanos, florestas e solos. Por isso, nações podem programar uma equivalência entre esses dois fatores – chamada de “neutralidade climática” – como etapa prévia aos inevitáveis cortes absolutos nas megatoneladas de carbono ainda destinadas aos céus.

Até agora, são raríssimas as legislações nacionais com tal objetivo. Suécia, França e Reino Unido decidiram alcançar tal neutralidade em meados deste século. Quase todos os demais sequer assumiram prazos. Daí a formidável excepcionalidade da Costa Rica, empenhada em atingi-la já no próximo ano, bicentenário da independência.

Este já seria, por si só, motivo suficiente para a terra dos “ticos” merecer muito mais cobertura das mídias. Mas há ao menos três outros incentivos a conhecê-la, visitá-la e estudá-la: ter feito a única revolução do século XX com final feliz, não dispor de forças armadas e ser o país-sede da Universidade da Paz da ONU.

Liderada por “Don Pepe” Figueres, a revolução de 1948 derrubou a oligarquia, nacionalizou bancos e instituiu um regime democrático exemplar, cercado de ditaduras por todos os lados. “Don Pepe” aboliu seu próprio exército revolucionário, separou os poderes da República, garantindo um Judiciário independente e priorizou obsessivamente a educação.

Hoje, a Costa Rica é, de longe, o país mais próspero e de melhor IDH da região, com uma população majoritariamente de classe média. Então, talvez não seja mera coincidência o fato de um dos principais expoentes mundiais da atual luta climática ser sua filha, a antropóloga, economista e diplomata Christiana Figueres.

O descarbonário Alfredo Sirkis (1950-2020) ficou muito impressionado ao conhecê-la, no Parlamento europeu, em fins de 2011, às vésperas da décima sétima Conferência das Partes (COP 17), em Durban (África do Sul). Tiveram conversa “inspiradora”, com muitas convergências. A mais importante, sobre a necessidade de ser revisto, naquele momento, o significado das famosas “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, entre países mais e menos desenvolvidos.

Na vigência do Acordo de Quioto, de 1997, apenas os mais desenvolvidos estavam obrigados a reduzir suas emissões. Porém, mais certo seria acabar com a isenção aos menos desenvolvidos, aplicando-se aos mais desenvolvidos o princípio “poluidor-pagador”.

Muitos obstáculos a tal mudança precisavam ser enfrentados, para levar países emergentes – especialmente a China – a marcarem datas de início da redução em números absolutos de suas emissões. Na ocasião, Christiana Figueres disse: “Nossa grande dificuldade é não estarmos aqui tratando apenas de solucionar mais um problema ambiental, mas sim de toda uma nova revolução industrial”.

O livro Descarbonário, de Alfredo Sirkis (Editora Ubook, 507 págs.), revela muitas dezenas de histórias semelhantes às de Christiana e sua Costa Rica, em quatrocentas páginas de depoimentos autobiográficos, principalmente referentes aos últimos vinte anos. Quando o insubstituível ativista Sirkis concentrou sua longa militância verde no principal dos problemas ambientais, o aquecimento global.

É um caleidoscópio de experiências pessoais sintonizadas aos grandes desafios do mundo de hoje. A vida de Alfredo Sirkis foi toda pavimentada por experiências pessoais pautadas pelos imensos desafios da sustentabilidade. Por exemplo: quais as iniciativas ambientais podem ser tomadas pelo poder local para dar alguma sustentabilidade às cidades? E nas complicadas teias de interesses e poder do sistema de governança global, como fazer avançar acordos capazes de impedir a desertificação de muitas regiões da Terra neste século?

Os leitores serão cativados pelas andanças do autor, contadas de jeito saboroso, irreverente, sem inoperantes dramatizações. Um testemunho da sua vida e do seu tempo como poucos podem dar. Um grande presente de involuntária despedida, para nosso entretenimento, provocação e reflexão.

Ao começar a leitura, convém logo dar uma espiada no índice remissivo, com referências aos mais de quinhentos personagens das inúmeras histórias (ou “causos”, como diz o prefácio), narradas com fino talento jornalístico, já demonstrado em seus nove livros anteriores, dos quais o best-seller Os Carbonários foi o segundo. Outros quatro também são sobre suas lutas ambientalistas, com mais ênfase na ecologia urbana, tema ao qual se dedicou nas várias funções executivas exercidas na prefeitura do Rio, depois de vários mandatos de vereador e antes de ser eleito deputado federal.

A deplorar, só uma falha a ser facilmente corrigida em próxima edição. Com tantos os locais visitados em cinco continentes – e tão bem descritos pelo globe-trotter Alfredo Sirkis – um índice remissivo a lugares certamente turbinará tão bem-humorada introdução à luta pela descarbonização global. A rigor, uma obra de vocação paradidática, principalmente aos jovens propensos a engrossar movimentos como o atual “Fridays for Future”.

(Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico, em 31/8/2020. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/07/31/o-testamento-da-militancia-verde-de-alfredo-sirkis.ghtml)

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.