Iconoclastia identitária e os monumentos públicos: o que se quer reparar?

Por Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio e Roni Cleber Dias de Menezes, professores da Faculdade de Educação da USP

 02/07/2020 - Publicado há 4 anos
Roni Cleber Dias de Menezes – Foto: Arquivo pessoal

 

Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio – Foto: Arquivo pessoal

 

Recentemente, temos visto acontecer, em inúmeros lugares, a retirada, danificação ou destruição de monumentos públicos, mais especificamente de estátuas de personagens históricos que foram considerados, em algum tempo, merecedores dessa homenagem. À derrubada da estátua de Edward Colston em Bristol, Reino Unido (que foi jogada no Rio Avon), seguiram-se outros atos do mesmo tipo, como a pichação (com a inscrição “descoloniza”) de uma estátua do Padre Antônio Vieira em Lisboa.

O receio de novos atos do mesmo tipo fizeram Londres cercar com tapumes um monumento ao ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill (criticado, entre outras coisas, por ter determinado o bombardeio de Dresden na Segunda Guerra Mundial) e São Paulo colocar guardas para proteger a estátua de Borba Gato (o bandeirante caçador de índios) em Santo Amaro.

O que dizer de ações dessa natureza? De início, parece-nos que partem de uma avaliação distorcida da ideia de reparação histórica. Justa, ao nosso ver, quando relacionada à preservação das manifestações e patrimônio cultural de populações secularmente marginalizadas e à consequente adoção de políticas que valorizem a contribuição das mesmas para a formação da nacionalidade brasileira, a noção de reparação histórica possui outra ancoragem quando se refere ao patrimônio artístico, histórico e cultural.

 

Estátua de Edward Colston (1613-1721) derrubada por manifestantes em Bristol, Reino Unido (07/06/2020) – Reprodução/HUFFPOST UK

 

Para início de conversa, parece-nos que a invocação de princípios identitários para decidir que monumentos deveriam restar para os pósteros deixaria um número bem pequeno daqueles para “contar a história”. Complementarmente, embora haja dificuldades flagrantes, no caso dos monumentos em céu aberto, de se criar projetos educacionais que favoreçam a reflexão não apenas da atmosfera histórica a que se refere a obra, mas também do período e dos condicionantes que presidiram sua aprovação e ereção como monumento público, antes de derrubar estátuas nossa relação com tais “leituras físicas” do passado devem envolver a problematização das representações emanadas pelos monumentos, até porque é enganoso pressupor que a imagética que envolve este ou aquele monumento histórico seja imutável.

Não se trata, obviamente, de relativizar o papel deletério para a humanidade de certas figuras, porém, as acusações feitas a alguns personagens históricos atacados pela recente onda ignoram que tais sujeitos só podem ser compreendidos se tomados no caldo da subjetividade do tempo em que viveram, daqueles “presentes” em que habitaram. Exigir uma sensibilidade que é própria do ser humano contemporâneo, haurida não exclusivamente, mas em grande parte, depois da eclosão das revoluções burguesas de finais do século XVIII e do século XIX, é incorrer num raciocínio falso.

 

Estátua de Cristóvão Colombo (1451-1506) em Boston, EUA, é decapitada (09/06/2020) – Reprodução/AFP

 

Pois, quando decidimos qual estátua deve vir abaixo, qual monumento deve ser destruído, que critério invocamos? Obviamente, um critério moral, que pretende afirmar, além de toda dúvida, que a obra representa, em praça pública, diante de todos, algo vil e desprezível, digno de repúdio. Se esse é o juízo, no entanto, por que então a estátua foi erigida? Porque os homens de tempos passados eram vis e desprezíveis? Esse pode ser um argumento, e é usado não poucas vezes. Os homens de antes não apenas ignoravam a vileza de tais homenagens, mas eram, conscientemente, opressores e preconceituosos – contra os índios, os negros, as mulheres, contra o que é estrangeiro. Incapazes, seja pela limitação da consciência histórica, seja por sua natureza perversa, de agirem conforme a verdade, erraram. Hoje, nós vemos mais e melhor. Não apenas sabemos, mas revelamos aos outros esse erro, que é ao mesmo tempo intelectual e moral.

O problema desse argumento é que esse presente privilegiado em que vivemos – que nos faz, imaginamos, capazes do juízo mais acertado sobre as coisas passadas –, esse presente, cheio de certezas, passa. E seremos nós, num futuro que logo ali se converterá em presente, os julgados pelo dispositivo moral mais atualizado, mais up to date. E nós, que olhamos com asco e superioridade para o passado que esses monumentos que queremos banir representam, seremos então o objeto da crítica mais acerba. E as estátuas e monumentos que erguemos hoje serão derrubados e vandalizados.

Pode parecer horroroso aos ouvidos sensíveis, mas Zumbi ou Iemanjá são tão contingentes quanto Colston ou Vieira (não precisamos ir muito longe: o que acontecerá com o patrimônio cultural afro-brasileiro em um futuro “terrivelmente evangélico”, que parece ser o que se anuncia?).

 

Estátua do Padre Antônio Vieira (1608-1697) é pichada em Lisboa, Portugal (11/06/2020) – Reprodução/Sete Margens

 

Eis o vício do Bessewisser, do sabe-tudo-dita-regras, que comete o equívoco fundamental de considerar que, somente por viver no presente, conquistou um ponto de vista privilegiado sobre a realidade. Essa é a face mais virulenta do presentismo, para quem não existe passado nem futuro, e que ironicamente anda de mão dadas com o consumismo mais desenfreado – que precisa da destruição e da obsolescência para continuar funcionando.

Destruir o velho monumento, representante de velhas ideias, não está longe de destruir, simplesmente, o que é velho, por ser velho. Essa ilusão de perspectiva – o presente como ponto de vista privilegiado – gera a convicção de que o julgamento feito hoje, a partir dos critérios do tempo atual, é capaz de criar um discurso sobre a história que a retifica, justifica e ordena, e qualquer coisa que não se ajustar ao arranjo pode ser jogada fora – coisa velha e superada.

Em acréscimo, a explosão das demandas identitárias, que pleiteiam direitos (devidos) a cada expressão individual, por vezes se esquece de que a noção de diversidade e diferença precisa da noção de igualdade para que faça algum sentido, além do retórico. Pois o diverso só é concebível relacionado ao igual, e o igual é o que garante a comensurabilidade do reconhecimento que se exige.

Se às mulheres, negros, indígenas e população LGBTQI+ falta a concretude dos direitos (e falta), é porque tais direitos são vistos sendo usufruídos por homens brancos heterossexuais etc. Portanto, se há uma estátua de mercador de escravos ou bandeirante em praça pública, que marca um tempo outro, diferente do atual, faz-se necessária outra, ao seu lado (ainda que simbolicamente), que apresente o que hoje concebemos como juízo moral adequado da ação histórica. E não a supressão do que outros, em outros tempos, decidiram que era relevante ser monumentalizado.

 

Busto do dramaturgo, poeta e ator jamaicano Alfred Fagon (1937-1986) em Bristol, no Reino Unido. Atacado com alvejante entre a noite do dia 9 e a madrugada do dia 10 de junho, não se sabe ainda se poderá ser recuperado – Reprodução/BBC

 

Negar que uma comunidade humana, que determinada sociedade em determinado tempo possa escolher erigir um monumento para determinado personagem é retrospectivamente negar a essa comunidade – e ao passado – a autonomia para decidir, naquele momento e naquela situação, quais eram ou deviam ser seus modelos.

É de uma enorme presunção julgar assim o passado, partindo de premissas do presente que são, antes de tudo, essencialistas – o bom, o justo, o correto ad aeternum. Além de presunçoso, é uma contradição com o discurso, também defendido por quase todos os que se deleitam com estátuas destruídas, que tudo é histórico, que tudo é cultural.

Os que ergueram as estátuas de Colombo, Vieira, Colston e Borba Gato tinham o direito de fazê-lo. Tanto tinham como o fizeram. E o fizeram pelos motivos deles, não pelos motivos que, hoje, queremos usar para derrubá-las. Não foi porque Colombo deu a conhecer aos europeus um novo continente, engendrando as condições para a escravização e jugo das populações nativas, que sua estátua foi erguida; não foi pela tibieza de Vieira ao condenar a escravidão dos negros que sua estátua foi erigida; não foi nem mesmo por ele ter sido também um traficante de escravos que a estátua de Colston foi posta de pé.

Esses são argumentos do presente contra o passado. E se a sociedade é mesmo um pacto entre o passado, o presente e o futuro, entre os que já existiram, os que existem hoje e os que ainda não vieram ao mundo (expressão famosa atribuída a Edmund Burke, mas que podemos encontrar em muitos outros autores – Hannah Arendt, por exemplo), a destruição de um monumento, ainda que por piedosas intenções morais e vontade de melhorar o mundo, só resulta no pior: no escamoteamento daquilo que foi, daquilo que resultou da ação humana – por vezes desagradável e difícil, mas sempre humano, demasiado humano.

 

 


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