A literatura e o outro

Por Ariovaldo Vidal, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP

 09/06/2020 - Publicado há 4 anos
Ariovaldo Vidal – Foto: Anzélio Cesar Vidal
Na semana retrasada, fomos surpreendidos por mais uma atitude (talvez devesse dizer mais um golpe) do atual governo contra as Humanidades: o corte das bolsas de iniciação científica do CNPq para nossa área. Ou melhor, as bolsas não foram cortadas, pois elas serão oferecidas desde que os jovens alunos pesquisem temas que não são de sua área, o que torna o fato mais grave, pois significa uma tentativa de esvaziar o sentido de nosso trabalho.

Não é fácil nem produtivo (no melhor sentido) argumentar contra uma política pragmática ou oportunista (de desprezo à cultura), em nome de valores que não estão no universo dessas figuras que, mesmo falando em alta tecnologia, veem o mundo com a estreiteza do balcão de secos & molhados; confesso mesmo que nem eu seria das pessoas mais autorizadas a argumentar nessa direção (prefiro lembrar as várias e importantes considerações de colegas da faculdade neste mesmo jornal). Afinal, quanto vale para essa mentalidade o trabalho de ensinar ao aluno o sentido que uma metáfora possa ter num verso; o sentido que um verso possa ter num poema; o sentido de um poema numa obra; e a obra como testemunha de um tempo (de um país) de fezes e maus poemas. Enfim, mudemos de assunto.

No semestre passado, tive oportunidade de participar de um evento ocorrido no prédio de Letras da faculdade, comemorativo aos 60 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Coreia do Sul, coordenado pela professora Yun Jung Im, docente responsável pela área de Estudos Coreanos da FFLCH, com a presença de algumas dezenas de estudantes de língua e literatura coreanas da faculdade, mostrando o trabalho que a professora Yun tem feito.

O evento contou com a participação do Instituto de Tradução Literária da Coreia e a presença de três escritores que estão fazendo a atual literatura coreana: o poeta Kim Ki-taek, autor de Chiclete (7Letras, 2018), apresentado num belo texto pela professora e colega de departamento Viviana Bosi, além da leitura muito boa de alguns poemas pelos alunos presentes; o romancista Kang Byoung Yoong, autor de Pepino de alumínio (Topbooks, 2018), cujo romance foi apresentado também por uma aluna do curso e, posteriormente, discutido pelo jornalista da TV Globo Álvaro Pereira Júnior, que, como bom jornalista, resolveu fazer a apresentação na forma de uma entrevista com o autor; e finalmente, Park Min-gyu, romancista e contista premiado, cabendo a mim apresentá-lo. Trata-se de um autor ainda não publicado por aqui, mas tive acesso a dois contos traduzidos, um deles pela própria professora Yun, e outro por um grupo de estudantes supervisionados pela professora.

Além dos dois contos mencionados, tive acesso também a um depoimento de Park Min-gyu sobre sua obra, fazendo parte de um caderno organizado pela professora e pelo instituto mencionado, distribuído aos presentes. Nele, Park Min-gyu fala de algumas cenas e seres que o levam a escrever, coisas vistas no dia a dia ou mesmo em imagens da mídia. Se tiver que resumir essas imagens, ao lado de uma ou outra situação de beleza, o que mais sobressai no depoimento são imagens de um mundo violento: violência do Estado contra o povo, das instituições contra os indivíduos, e da pessoa contra a pessoa.

Fica claro no depoimento que o que o faz escrever é ainda a capacidade, mesmo depois de tudo que vimos e presenciamos até aqui, de estranhar o mundo, de não o aceitar como suportável e denunciar o absurdo. E, por fim, escrever a partir do maior dos absurdos, o fato de estar neste mundo exercendo a “profissão de terráqueo” sem saber por que nem para quê.

Para comentar brevemente os dois trabalhos, o primeiro dos contos chama-se “Ah sim? Sou girafa”, que conta a história de um estudante de colégio técnico e trabalhador informal de meia-idade – “zanzando de bico em bico” –, cujo emprego principal consiste em ficar empurrando as pessoas para dentro do vagão do metrô. No começo, o “empurrador” estranha a prática e se sente constrangido em ter de apertar as costas das pessoas; mas seu “treinador” lhe ensina como resolver o problema: “Não pense naquelas pessoas como pessoas. Pense que são coisas como carga. Entendeu?”, o que acaba ajeitando a situação; ademais, o supervisor faz um discurso aos empurradores, mostrando que eles “eram o cerne da economia nacional”.

Como o hábito naturaliza tudo, o empurrador foi aprendendo bem o ofício. No início, ria sem parar quando via um rosto amassado contra o vidro da porta; depois, foi deixando de achar graça e começou a ficar incomodado com a cena. Um dia, um idoso é ejetado com força para fora do trem, assim que a porta se abriu: era seu pai. Quando o pai se recompõe ajeitando o nó da gravata, mesmo sem conseguirem olhar-se nos olhos, ocorre um momento epifânico ligando pai e filho: “E, por um átimo, por um tempo tão curto que daria apenas para ajeitar a gravata, uma corda passou por entre nós atando-nos num nó que jamais iria se desfazer”.

A partir de então, o narrador começa a referir-se ao pai com uma série de imagens poéticas, que contrastam com a prática desumana do trabalho: primeiro, ao empurrar o pai num vagão muito lotado, diz que “naquele momento, quase que inaudível, algo como um sopro discreto pareceu vazar do seu tórax”. Quando a mãe fica doente, no hospital o pai olha para o filho em silêncio: “Era uma expressão oca, escura – como um avestruz que de repente perdera os movimentos de uma perna no meio da pradaria”. Novamente, ao empurrar o pai na manhã fria de outono, veio-lhe a ideia de um “ganso selvagem, que de repente solta um choro no vento frio da manhã e se vai”. Finalmente, ao forçá-lo (cada dia mais magro) para dentro de um vagão lotado, diz que teve de “suportar a onda de toda a humanidade, e a toda hora me dava de cara com o papai que mais parecia um ramo de alga flutuando sobre ela”.

Numa manhã de inverno rigoroso, o pai pede ao filho que não o empurre e deixe para colocá-lo no próximo trem; o filho atende ao pedido. Entretanto, depois desse episódio o pai desaparece, e o narrador não o encontra mais, mesmo saindo a campo para saber de seu paradeiro em todos os lugares possíveis. Se já havia aparecido a atmosfera insólita no desaparecimento do pai de maneira inexplicável, irrompe desta vez propriamente o fantástico com a volta do pai.

Certa manhã de primavera, depois de seu turno e enfastiado com a vida que levava – “Por que raios levamos essa vidinha… num lugar desses” –, está sentado num banco próximo à estação olhando para o céu com a cabeça tombada para trás, sentindo a terra girar, quando surge seu pai, vestindo um terno alinhado e transformado numa girafa, a que ninguém em volta presta atenção. Tocado pela presença paterna, começa a chorar e a dar notícias para o pai, pedindo que ele volte para casa, pois a situação iria melhorar, agora que um “um tal de Moody’s” subiu um degrau de “nossa categoria de credibilidade”. O pai (a girafa), entretanto, olha-o com a mesma pupila cinzenta do homem “frágil” que “vivera almoçando marmita pontualmente dia após dia”. Como o elefante gauche de Drummond, a girafa surge aos olhos do narrador com uma impressão tímida e de placidez, mas desinteressada, “num mundo enfastiado” e “que já não crê nos bichos”.

Mas é no segundo conto, chamado “Kasêutera”, que esse caráter insólito e irônico se radicaliza. O título do conto faz referência a um bolo de massa leve que se assemelha ao pão-de-ló. Trata-se de um jovem e solitário narrador, que agora se põe a tecer comentários sobre a importância da geladeira para a vida humana, pois com ela, de fato, o homem encontrava uma maneira de preservar a vida. O único problema, conforme o narrador, é ter de suportar o barulho que a geladeira faz, tão barulhenta que o narrador tem certeza de que ela era um hooligan na vida passada que voltou como geladeira para esfriar a cabeça. A referência não é gratuita: trata-se do episódio da final da Liga dos Campeões de 85, em que um dos mais belos espetáculos do esporte mundial acabou em barbárie. A referência antecipa muito do tema do conto.

Obcecado pelo barulho da geladeira, começa a estudar os princípios e a história da refrigeração, chegando a uma conclusão importante: “Graças à geladeira, pela primeira vez na história, a humanidade vence a luta contra o apodrecimento. Foi uma vitória fantástica”. Mais do que isso, diz que o século XX não é o século da Guerra Fria e, sim, o século da refrigeração, chegando a outra conclusão importante: visto do ângulo da geladeira, como este mundo é contaminado!

Se o primeiro conto era uma mistura de lirismo e fantástico, este segundo segue outro registro de estilo, misturando desta vez fantástico e satírico. De fato, toda a primeira parte do conto, tecendo vários comentários sobre a importância da geladeira, já cria a atmosfera insólita e satírica que se acentua a partir de agora. Diz então o narrador que tudo depende do modo como se usa a geladeira, e que, a partir daquele momento, ele iria utilizá-la “de maneira mais nobre”, como um “dever para com a humanidade”.

O propósito e a importância do fato estavam resolvidos; mas o problema era o critério de seleção das coisas a serem preservadas. Pede alguns conselhos: o dono da cervejaria que frequenta sugere experimentar de tudo; a locatária da quitinete, que ele deveria preservar somente as coisas preciosas; o jovem bibliotecário, que pelo bem da humanidade deveria aprisionar lá os males do mundo, começando pelos Estados Unidos; o dono da loja de discos, que ele deveria guardar um elefante. No final das consultas, resolve “tacar [na geladeira] tudo o que pudesse se tornar mau ou tudo o que fosse precioso”. Sendo assim, escolhe como primeira coisa a preservar As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, o que diz muito do estilo do conto; e ao depositar o livro num gesto ritualístico, diz que para o bem da humanidade, Gulliver estaria preservado por um longo tempo.

Depois de guardar algumas obras preciosas, até mesmo o barulho da geladeira se torna um som agradável. Certo dia, ele percebe uma mudança insólita e vê, literalmente, que a refrigeração é algo maravilhoso. Coincide com a visita do pai, que vem contar que estava atolado em dívidas, que o filho herdaria essa dívida contraída com os amigos do country club, e seria melhor portanto vender tudo que pudesse.

O narrador chega à conclusão de que essa coisa chamada “pai” é um mal para a humanidade e, sem titubear, resolve colocá-lo na geladeira; a mãe, que aparece logo em seguida, tem o mesmo destino. E começa então a encher a geladeira de muita coisa: quase dois milhões de desempregados, algumas centenas de moradores de rua, congressistas, o próprio presidente, o alto escalão da polícia, diretores de fábricas, universidade, metrô, empresa de jornal, McDonald’s etc. E tudo com o mesmo critério do início: ou era algo precioso a ser guardado, ou “um mal do mundo”. A segunda categoria acaba pesando bem mais.

Na última noite do ano e do século, o narrador vai tarde para casa, depois de beber bastante com dois amigos na cervejaria, lugar a salvo de sua geladeira. Já quase meia-noite, abre a geladeira e vê que ela havia se transformado em algo caótico como o próprio mundo, sem conseguir distinguir mais uma coisa da outra. Com o frio da madrugada entrando pelas frestas e o pensamento às voltas com um mundo que não parava de se reproduzir e produzir destruição, o narrador já cansado acaba caindo num “sono longo e lindo [que] avançou pelo hemisfério norte do meu cérebro”, com camelos no deserto “olhando os meteoros que caíam desenhando grandes caudas”.

O último dos segmentos é o de número 7, equivalendo ao primeiro dia do novo século, em que também descansaria esse pequeno deus satírico, que tentou reordenar o caos na sua pequena máquina do mundo refrigerada. Acorda com uma sensação de algo novo, mas que não fazia sentido: percebeu que a geladeira não fazia mais barulho nenhum: “Meu coração despencou. O que aconteceu com o mundo? China? América? E os meus pais! Eu puxei a porta da geladeira para abri-la”. E encontra a geladeira vazia. Mas no centro havia uma fatia do bolo que dá título ao conto, que o narrador apanha com cuidado como se “estivesse lidando com um mundo [que] se tornou uno”. O bolo, “quente, macio e perfeitamente quadrado”, de “aroma doce e delicado […] era um gosto capaz de perdoar todas as coisas”. E para a própria surpresa, enquanto mastigava o bolo macio e quente, começa a chorar.

Se na leitura do outro conto a poesia de Drummond nos ajudou a perceber o vínculo do narrador com a girafa, talvez aqui também seu poema “Um boi vê os homens” pode nos ajudar a entender o vínculo do narrador com a fatia de bolo (e o animal): ao morder a massa doce, ela não desperta nele nenhuma cadeia de memória involuntária e, sim, o choro, como algo que apontasse para o início de tudo e, no mesmo passo, lhe trouxesse a sensação de ter descoberto novamente “os segredos do feno”, como diz o boi no poema. Há uma nostalgia funda nessa imagem de um narrador melancólico (a sátira é prova disso) e nostálgico da inocência perdida. O resto não é silêncio: é reunião de ministros.

Voltando ao evento de onde partimos, um momento especial estava reservado para o fim. Ao final de sua breve fala – pois simpaticamente Park Min-gyu dissera que estava quase afônico por ter bebido muito no dia anterior –, o escritor disse aos presentes, vendo tantos alunos brasileiros interessados na cultura e literatura coreanas: “Quando eu terminar de falar, vocês vão me aplaudir, mas sou eu que devo aplaudir vocês”. E assim se fez: Park Min-gyu aplaudiu os presentes e foi muito aplaudido por todos.

De fato, foi emocionante ver aquelas dezenas de jovens interessados em outra literatura e outra cultura, que dão sentido à sua vida, sem qualquer apelo de mercado, e felizes pela oportunidade de se encontrarem com alguns de seus autores queridos, num evento propiciado pela literatura – esse lugar sempre privilegiado para o encontro com o outro que, afinal, somos nós.


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