I feel fine – ou… e assim nasceu a Beatlemania

Entre 1963 e 1965, os Beatles se tornaram um fenômeno inédito, enfileirando sucessos e arrebatando fãs por todo o planeta

 24/04/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 08/05/2020 as 0:02
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Os Beatles no auge da carreira – Fotomontagem: Vinicius Vieira

Foi por pouco, muito pouco mesmo – e quase que o mundo foi pelos ares. E 1963 nunca teria acontecido. A Guerra Fria, instalada no planeta desde o fim da Segunda Guerra, estava dando sinais claros de que sua temperatura ia, gradativamente, aumentando naqueles incipientes anos 1960. E quase chegou a seu ponto de ebulição em outubro de 1962 – isso, depois da construção do Muro de Berlim, um ano antes, durante 15 dias, o mundo viveu sobressaltado com a possibilidade de uma guerra atômica. Era a chamada Crise dos Mísseis, quando a União Soviética teve a questionável ideia de plantar foguetes com ogivas nucleares em Cuba. E o então presidente americano John Kennedy ameaçou retaliar à altura. Mas os soviéticos piscaram, levaram seus mísseis de volta para casa e todos respiraram aliviados. E 1963 pôde seguir seu curso normal. Melhor para os Beatles.

Afinal, aquele seria o ano da grande transição, quando os tempos de inferninhos hamburgueses e shows em clubes empoeirados de Liverpool ficariam definitivamente para trás. Com o lançamento do LP Please, please me, os rapazes cabeludos entraram em uma curva ascendente que parecia sem volta. As dez músicas do disco de estreia eram uma completa novidade no cenário musical britânico, com uma bem equilibrada mistura de rock, R&B e vocais vigorosos a três vozes. Isso, sem se falar que metade das composições era criação de Lennon&McCartney, como a faixa-título, Love me do e Ask me why, algo inédito à época, já que pouquíssimos artistas de primeira linha se aventuravam em compor e interpretar suas músicas. Mas os Beatles não estavam preocupados com isso. Pelo contrário.

Capa de Please, Please Me, de 1963, álbum de estreia dos Beatles – Foto: Wikipedia

Seu grande desafio era criar cada vez mais canções autorais, escrevendo músicas até em guardanapos de restaurantes – hoje, algumas dessas composições têm um lugar de destaque na prestigiosa British Library. E, além de interpretá-las, John e Paul não se importavam em oferecer suas criações para outras bandas ainda desconhecidas. Foi assim que uma tal de Rolling Stones, dando seus acordes iniciais no palco, ganhou seu primeiro sucesso, I wanna be your man, uma autêntica música beatle. E Mick Jaegger e Keith Richards ficaram tão impressionados com a velocidade com que John e Paul a compuseram que decidiram que eles mesmo podiam escrever suas canções.

E esse furor criativo vai render, em finais de 1963, o segundo disco da banda: With The Beatles, com clássicos instantâneos como She loves you, All my loving e It wont be long, além de covers como Please Mr. Postman e Roll over Beethoven. Mas, quando esse LP chegou às lojas, o Reino Unido já estava à mercê daqueles rapazes: os Beatles estavam em toda parte, e ocupavam espaço na vida dos jovens londrinos da cabeça aos pés – literalmente. Ainda se acostumando com aquela novidade toda – bem diferente da postura roqueira importada dos Estados Unidos –, garotos copiavam (ou tentavam copiar) o corte de cabelo, mesmo contra a vontade de pais sisudos – e de algumas escolas, que chegaram a expulsar alunos por causa disso. E usavam a botinha com elástico lateral e sem cadarço que eles calçavam, inventada para a rainha Vitória, lá no século 19, mas que acabou popularizada pelos quatro integrantes da banda. Tanto, que passou a ser chamada de “bota beatle” – ou “bota chelsea”, uma referência ao bairro londrino cool onde era vendida.

Os Beatles durante show no London Palladium – Foto: The Beatles Bible

Mas não era só isso. Praticamente todo o cenário cultural britânico estava tomado pela onda beatle. Eles tinham um programa de rádio na BBC – Pop Go The Beatles –, uma revista mensal – The Beatles Book –, apareciam em programas de TV sistematicamente – um deles, que se tornou uma transmissão clássica, ao vivo do London Palladium, causou uma sensação nunca antes vista – e seu fã-clube já estava batendo os 80 mil sócios. A fama da banda já tinha cruzado o Atlântico, com seus discos sendo lançados nos Estados Unidos – com outros títulos e uma seleção própria de músicas, coisa que durou alguns anos. Isso, sem se falar nas turnês, que não paravam. A situação chegou a tal ponto que, em 2 de novembro (guardem esta data), o londrino Daily Mirror, ao falar de uma das várias apresentações da banda, cunhou uma expressão que resumiu aquela loucura toda e entrou para a história: “Beatlemania”. Os rapazes estavam cheios de si. Tanto, que dois dias depois John Lennon não se fez de rogado e, durante uma apresentação no Royal Variety Performance, falou: “Os que estão nos lugares mais baratos, atrás, podem bater palmas. Os dos lugares mais caros só precisam sacudir suas joias”. A rainha-mãe, sentada na parte da plateia para os endinheirados, riu. Os filhos da classe operária tinham chegado ao paraíso.

Invasão britânica e almas de borracha

Se as coisas na vida profissional iam muito bem, na vida pessoal a situação era a mesma – para desespero de algumas fãs, que teimavam em se jogar em cima deles durante os shows e até tentar cortar mechas de seus cabelos. Afinal, os Beatles eram rapazes comprometidos. John estava casado desde 1962 com a artista plástica Cynthia Powell e, em 8 de abril de 1963, nasceu seu primeiro filho, John Charles Julian. Ringo já namorava a cabeleireira Maureen Cox e se casaria com ela em 1965, e Paul acabara de entrar em um “relacionamento sério” com a atriz Jane Asher, que duraria até ele conhecer, em 1967, a fotógrafa americana Linda Eastman. O último solteiro era George, mas não por muito tempo: em 1964 ele começou a namorar a modelo Patti Boyd (que mais tarde o trocaria por Eric Clapton, o melhor amigo do beatle). Brian Epstein, o empresário zeloso, achava que a divulgação desses relacionamentos poderia atrapalhar a carreira dos rapazes e afastar as fãs. Nada, convenhamos, mais equivocado.

Os Beatles com o empresário Brian Epstein (à esquerda) – Imagem: AP Images

O sucesso dos Beatles era – com a licença do clichê – estrondoso. Não havia festa, programa de TV, vernissage ou qualquer rega-bofe em que eles não estivessem presentes. Eles eram a cereja do bolo das noitadas londrinas. E não só eles. Com a fama se espraiando, os Beatles acabaram abrindo caminho para novos artistas, principalmente de sua terra natal. De repente, Liverpool virou celeiro de roqueiros e possíveis astros pop, como a cantora Cilla Black – que logo teria seu próprio programa na televisão – e o grupo Gerry and the Pacemakers. Uma curiosidade: quem acompanha a Premier League inglesa já deve ter ouvido a torcida do Liverpool entoar You’ll never walk alone, uma espécie de hino informal do clube. A canção, oriunda de um obscuro musical americano, ganhou fama na voz de Gerry Mulligan e sua banda. Só para constar: Paul torce (ou torcia) para o Everton, o outro clube de Liverpool.

Mas 1964 estava apenas começando e os Beatles se preparavam para conquistar o mundo. Depois de um show pouco inspirado em Paris, em janeiro – deu tanta coisa errada, como um amplificador quebrando várias vezes, que eles suspeitaram de sabotagem –, uma notícia os animou: I want to hold your hand havia pulado da posição 43 para o primeiríssimo lugar nas paradas americanas. Era hora de conquistar a América.

Depois de os Estados Unidos exportarem para o mundo a ideia do rock and roll e seus menestréis, como Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e Roy Orbinson, agora a mão tinha se invertido. E os Beatles seriam os primeiros a iniciar aquilo que ficaria conhecido como The British Invasion. E essa primeira invasão britânica foi apoteótica. “Todos os discos dos Beatles estavam subindo nas paradas e a recepção que tiveram ao chegarem ao aeroporto de Nova York foi uma loucura. Os Estados Unidos tinham se rendido aos Beatles”, relembram os autores Marie Clayton e Tim Hill.

Os Beatles com Ed Sullivan, apresentador do programa de maior audiência da TV norte-americana – Foto: Wikimedia Commons

A banda chegou a Nova York no dia 7 de fevereiro e, dois dias depois, tinha um compromisso e tanto: iria se apresentar no programa de Ed Sullivan, a maior audiência da TV americana. Foram assistidos por 73 milhões de espectadores, coast to coast. E foi só o começo de uma correria desenfreada. Dia 11 se apresentaram em Washington, dia 12 fizeram dois shows em Nova York e, quatro dias depois, estavam de novo com Ed Sullivan – para serem assistidos, desta vez, por 70 milhões de pessoas. A América era deles, pelo menos por enquanto.

Mas 1964 estava longe de acabar e os Beatles sabiam disso. Porque havia muito trabalho a ser feito na volta para a Inglaterra, e o primeiro deles era começar a rodar seu filme de estreia, A Hard Day’s Night – que no Brasil ganhou o apelativo título de Os reis do iê-iê-iê. Em forma de documentário aloprado, o filme mostra as peripécias dos Beatles entre um show e outro, procurando captar o clima de beatlemania. Mas com um fiapo de história. E daí? Os fãs adoraram e, rapidamente, os Beatles já eram homenageados com prêmio dado pelo Duque de Edimburgo e com estátuas de cera no museu da Madame Tussaud. E não paravam de trabalhar, com mais uma turnê pelos Estados Unidos e shows e mais shows – daí, dizem, o título do primeiro filme, “A noite de um dia difícil”, em frase atribuída a Ringo. Na verdade, muitos dias difíceis.

Cena do filme Help!, de 1965, estrelado pelos Beatles – Foto: Wikimedia Commons

Mas alguma coisa estava ficando estranha. George Bernard Shaw escreveu certa vez que há duas tragédias na vida: uma, não obter tudo o que seu coração deseja. A outra é a obter. E os Beatles, em pouco tempo, tinham conquistado muita coisa, à base de trabalho duro, noites insones e períodos intermináveis em estúdios de gravação. Mas pareciam incomodados. Não à toa, em dezembro de 1964, eles lançaram seu novo álbum, Beatles for Sale, em que aparecem meio sorumbáticos na foto de capa. Talvez eles se sentissem assim mesmo, um produto à venda, ainda que com uma certa dose de cinismo. O disco é um tanto desigual, eles retomam os covers que tinham abandonado – a versão de Words of love, de Buddy Holly, é linda –, mas aponta alguns caminhos: John se aproxima do folk, inspirado em Bob Dylan, e prefere o violão à guitarra, e George, mesmo mantendo sua guitarra de 12 cordas, caminha para aquilo que viria a ser chamado de folk-rock e que, no ano seguinte, seria a base criativa de bandas como a americana The Byrds, uma das mais importantes do rock americano.

Mas talvez o ponto de transição tenha se dado mesmo em 1965. Logo no começo do ano, eles começam a rodar seu segundo filme, Help!, e o tom das canções indica algumas mudanças. Há um pouco mais de introspecção – a música-título já denuncia isso –, mais intimismo e existencialismo, além de rock dos bons. Os Beatles estão se soltando. A trilha sonora é uma coleção de sucessos musicais, mas o filme não é aquilo que se poderia chamar de memorável. Divertido, é verdade, mas desconectado e ainda mais doido que o primeiro – talvez o fato de os Beatles estarem, na maioria das vezes, entupidos de maconha e quererem aproveitar a filmagem para curtirem a vida adoidado explique um pouco. Ou muito.

De qualquer forma, os fãs mais uma vez adoraram e ainda ficaram muito orgulhosos quando, em 26 de outubro, eles foram condecorados pela rainha Elizabeth com a Ordem do Império Britânico. Para os rapazes de Liverpool, talvez fosse o ápice de tudo o que vinham fazendo, ainda mais depois de terem, em agosto, conhecido seu ídolo Elvis Presley. Comenta-se que o encontro não foi lá grande coisa, mas saciou o desejo dos quatro e também valeu como uma medalha.

Os Beatles com a Rainha-Mãe do Reino Unido – Foto: The Beatles Bible

Mas a questão musical continuava na linha de frente. Para longe de prêmios, medalhas e ovação, eles queriam ser ainda mais criativos, diferentes do que vinham fazendo. Então, fizeram Rubber soul.

Os Beatles já haviam produzido grandes álbuns até aqui e toda a fama e reconhecimento eram mais do que merecidos. Mas com Rubber soul eles avançaram algumas casas, subiram para outro patamar. O disco, com clássicos como Michelle, Drive my car e Nowhere man, é de uma sofisticação e qualidade inéditas. Os arranjos vão ainda mais longe – pela primeira vez, George toca cítara – e as letras também vão se tornando cada vez mais sérias e profundas. Eles estavam preparando o grande salto. Por mais que muitos achem este seu melhor disco, talvez Rubber soul seja, na verdade, um sorbait, algo para limpar e preparar o paladar para pratos musicais ainda mais elaborados. O primeiro deles já viria em 1966, com o sugestivo título de Revolver. Estava engatilhado o começo daquilo que se conheceria mais tarde como “cultura pop”.

 

O texto acima é o segundo da série de cinco artigos “50 Anos do Fim dos Beatles”, publicada pelo Jornal da USP. Leia no link abaixo o primeiro texto da série.

 

 

 


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