Cidades do agronegócio nasceram como grande negócio urbano

Tese premiada mostra como o grande capital urbano mina o direito à cidade em jovens municípios do Centro-Oeste

 12/12/2019 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 16/12/2019 as 17:18
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Arte de Beatriz Abdalla/Jornal da USP sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens

Cidades do agronegócio nasceram como grande negócio urbano

Tese premiada mostra como o grande capital urbano mina o direito à cidade em jovens municípios do Centro-Oeste

12/12/2019

Texto: Silvana Salles

As pesquisas sobre as cidades do Centro-Oeste costumam vincular o espaço urbano destas localidades às atividades do campo. Descrevem os fluxos entre municípios e consideram a produção, beneficiamento e escoamento de commodities em escala regional. São estudos sobre cidades jovens, emancipadas nos anos 1970 e 1980. Tomando um caminho diferente, uma tese premiada, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, indica que os negócios que fomentaram a urbanização desses municípios não são os do campo, mas sim os da produção da própria cidade.

As pesquisas sobre as cidades do Centro-Oeste costumam vincular o espaço urbano destas localidades às atividades do campo. Descrevem os fluxos entre municípios e consideram a produção, beneficiamento e escoamento de commodities em escala regional. São estudos sobre cidades jovens, emancipadas nos anos 1970 e 1980. Tomando um caminho diferente, uma tese premiada, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, indica que os negócios que fomentaram a urbanização desses municípios não são os do campo, mas sim os da produção da própria cidade.

Para propor esse modelo explicativo, a geógrafa Lívia Maschio Fioravanti analisou o caso do município de Primavera do Leste, no sul do Mato Grosso. Descrita pelos moradores da região como uma cidade bonita, planejada e próspera, ela fica a pouco mais de três horas de viagem de Cuiabá, ou 238 quilômetros de distância pelas rodovias BR-364 e BR-070 – existe outro caminho possível, um pouco mais longo, que dá acesso também ao Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a atual população estimada é de 62.019 habitantes.

A geógrafa Lívia Maschio Fioravanti trabalha com o conceito de direito à cidade desde a graduação – Foto: Reprodução/ResearchGate

Lá, o processo de urbanização começou em 1979, a partir do projeto de uma construtora privada, e a ocupação foi estimulada por políticas da ditadura militar. Primavera do Leste virou município em 1986, ano do decreto que a emancipou da vizinha Poxoréu. “Eu comecei a me orientar buscando o que Primavera do Leste tinha de particular em relação aos traços mais gerais da urbanização brasileira, o que caracterizava especificamente tanto Primavera do Leste quanto outras cidades que são comumente conhecidas como cidades do agronegócio”, conta a pesquisadora.

Vista aérea de Primavera do Leste em 1986 – Foto: Acervo histórico do Instituto Memória

Segundo Glória da Anunciação Alves, professora do Departamento de Geografia da FFLCH e orientadora de Lívia no doutorado, o grande negócio urbano de Primavera do Leste já nasceu conectado à bolsa de valores e ao financiamento de terras. O capital que produziu a cidade nos seus primeiros anos não era aquele de uma pessoa que constrói uma casa, vende e utiliza o dinheiro para construir outra. Os atores eram outros: “são pessoas que captam dinheiro na bolsa, fazem empréstimos, grandes financiamentos. O vínculo não é com o dinheiro da soja, é dentro das formas urbanas como os empreendimentos são feitos hoje nas grandes metrópoles”, explica a orientadora.

Lívia recorreu ao trabalho de campo, a entrevistas com agentes do mercado imobiliário e à pesquisa nos cartórios de imóveis para levantar informações sobre como se deu a formação, a fragmentação e a constituição da propriedade privada localmente, resultando na consolidação dos diferentes loteamentos de Primavera do Leste. Ela, então, procurou articular as características do processo de urbanização com suas implicações sociais.

Pioneiros e excluídos

A primeira característica importante citada na pesquisa é a formação de um mercado imobiliário altamente concentrado e excludente. Vale dizer que a força da propriedade privada nas jovens cidades do Centro-Oeste não encontra paralelo com a história das cidades mais antigas do Brasil, já que esta modalidade de propriedade da terra só surge no Brasil a partir de 1850.

As diferentes cores cobrindo os setores de Primavera do Leste indicam as empresas que concentram o mercado imobiliário local – Mapa: Willian Alcântara e Lívia Fioravanti (2016)

Para se ter uma ideia, em Primavera do Leste menos de dez famílias controlam todo o mercado. “Quem chegou lá nas décadas de 1970 e 1980 tem um grande domínio sobre o espaço. Então, temos poucas famílias e poucas empresas que controlam praticamente toda a dinâmica do mercado imobiliário”, diz a geógrafa. “Essa configuração gerou relações sociais ligadas ao empreendedorismo e à meritocracia que até hoje reverberam na cidade”, completa a autora da tese.

Uma dessas reverberações é um certo culto ao pioneirismo. “Os pioneiros são vistos na cidade como exemplos a serem seguidos. Muitos deles estão vivos ainda hoje e são vistos como pessoas cujo ideal e cujo progresso devem ser perseguidos por grande parte da população”, conta a pesquisadora.

Ocorre que nem todo mundo que chegou ao Centro-Oeste nas décadas de 1970 e 1980 virou grande proprietário de terras. No entanto, no ideário dominante na cidade sequer se considera que, numa economia capitalista, nem todos podem enriquecer. “(Estes) não são vistos como pioneiros. São culpabilizados pela própria situação porque não conseguiram empreender e ganhar dinheiro”, diz ela.

Placa de inauguração de parque coloca logo da prefeitura junto com logo de empresa de família pioneira – Foto: Diego Eifler/Prefeitura Municipal de Primavera do Leste

Direito à cidade e desigualdades

Enquanto os novos condomínios dos bairros nobres e médios de Primavera do Leste já nascem com energia, água encanada, rede de esgoto, pavimentação, muros e grades, em áreas com fácil acesso a serviços e comércio, a população de baixa renda vive em loteamentos distantes, às vezes localizados em distritos industriais.

Casa de alto padrão no centro da cidade de Primavera do Leste, MT, localizada ao norte da BR-070 e a oeste da MT-130 – Foto cedida pela pesquisadora Lívia Fioravanti

Rua sem pavimentação e tratamento de esgoto localizada no Jardim Universitário, a leste da MT-130 – Foto cedida pela pesquisadora Lívia Fioravanti

“Por acaso, os grandes proprietários rurais das terras onde se produz soja também eram donos das terras (urbanas). São os que fazem e regulam os loteamentos, decidem quem pode morar”, afirma Glória, lembrando que a possibilidade de morar em Primavera pressupõe a posse de algum capital para ser investido. Quem não tem, aqueles que “não podem morar”, são os que “ficam na parte mais invisibilizada da cidade, que é a periferia, que é a população de baixa renda, que não tem água, que faz gato para ter luz quando pode. Elas (essas pessoas) são deixadas de lado, mas sempre na tentativa de expulsá-las. Elas não têm direito nenhum nessa cidade”, diz a professora.

Abrigando uma parcela da população mais pobre, loteamentos como Pioneiro, São José, Serra das Flores, Cristo Rei, São Genoato e São Cristóvão são  frequentemente deixados de lado nos discursos que se referem a uma Primavera do Leste rica e próspera – Mapa: Adaptado de Fioravanti e Alcântara (2017)

A atenção a essas desigualdades vem de uma abordagem que Lívia já havia utilizado no mestrado, baseada no conceito de “direito à cidade”, do filósofo e sociólogo marxista Henri Lefebvre. “O direito à cidade para Henri Lefebvre é um projeto de realização de um mundo novo. O direito à cidade seria a possibilidade da apropriação das riquezas socialmente produzidas. Riqueza no sentido geral, falando de cultura, de arte, de saúde, habitação, mobilidade para todos e não só para alguns”, explica Glória.

Casa e conjuntos de cortiços no Parque Eldorado em Primavera do Leste – Fotos cedidas pela pesquisadora Lívia Fioravanti

Da ponta mais vulnerável, Lívia diz que, embora não haja entidades e movimentos sociais organizados em Primavera do Leste, é possível observar a luta pelo direito à cidade nas ações cotidianas dos mais pobres, que fazem o que podem para usufruir da prosperidade local. Ela lembra de uma situação que aconteceu na cidade depois de já ter finalizado e depositado a tese de doutorado.

“Tínhamos 90 famílias que moravam em casas essencialmente de lona e papelão à beira da BR-070. Essas famílias foram removidas recentemente e o que mais se ouvia falar na cidade é que elas não trabalhavam, não tinham uma boa índole, enfim. Então, há um preconceito”, conta a geógrafa. “Muitas vezes os agentes hegemônicos tentam esconder essa população mais pobre criando loteamentos específicos para elas, mas nem tudo é possível de ser planejado. Essa população de baixa renda morava bem num eixo de importante circulação da cidade”, reflete.

Número de beneficiários do Bolsa Família por setor evidencia desigualdade de renda em Primavera do Leste – Fonte: Mapa adaptado de Fioravanti e Alcântara (2017) com dados da Secretaria de Assistência Social (2016)

Lívia também dá o exemplo da própria permanência das pessoas em situação de rua, mesmo com tentativas do poder público de retirá-las das praças. Muitas dessas pessoas são trabalhadores braçais empregados temporariamente pelo agronegócio. “Encontrei casos de pessoas que trabalham no agronegócio em algum momento da colheita em que precisa de mais mão de obra, ou na época da limpeza de terreno, ou para abertura mesmo de terreno. Muitos deles acabam não tendo uma residência fixa”, conta a geógrafa.


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