O rompimento da tubulação de esgotos na Marginal do Tietê, um acidente anunciado

Por Aristides Almeida Rocha, Professor Emérito da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

 22/03/2022 - Publicado há 2 anos
Aristides Almeida Rocha – Foto: FSP-USP

 

Em verdade, quando no dia 1º de fevereiro o popular “tatuzão” perfurava o solo para as obras de nova linha do Metrô e houve o rompimento da tubulação de esgotos na marginal do Rio Tietê, como biólogo e professor aposentado do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública logo fui despertado para uma reflexão, que durante mais de trinta anos procurava transmitir em minhas aulas.

Um acidente dessa natureza em geral induz à procura de algum culpado, à atribuição de incompetência, de “achismos” de toda sorte de leigos que aparecem nesses momentos, seja no intuito de aparecer, seja para alimentar o sensacionalismo ou despertar sectárias discussões políticas, esquecendo-se os especialistas de plantão de um passado que provocou permanente passivo ambiental na bacia hidrográfica na Região Metropolitana de São Paulo.

Durante 300 anos, desde a fundação da cidade de São Paulo, a vida se desenvolvia em função dos rios Tamanduateí, Tietê, Pinheiros e riachos como o Anhangabaú; com seus meandros, áreas de várzeas sujeitas a inundações, abundância de peixes e facilidade de navegação.

Entretanto, pretendendo-se modernizar a cidade e o riacho do Anhangabaú canalizado deu origem ao Parque do Anhangabaú e o advento da cultura cafeeira e a implantação dos trilhos da Estrada de Ferro São Paulo Railway transformaram a orla do Tamanduateí, que, aterrada, se transformou no Parque Dom Pedro II.

Com o crescimento da cidade, em 1888 cria-se a Repartição de Águas e Esgotos da Cantareira para levar água encanada às residências e tratar os esgotos sanitários, que passam a ser lançados in natura nos rios e várzeas, sujeitas a inundações sendo criadouros de mosquitos.

O presidente da província adota as ideias mercantilistas de aproveitamento dessas áreas, mediante aterros e loteamentos futuros, sem qualquer cuidado ambiental, mesmo porque os rios passam a ser utilizados como veículos transportadores de esgotos.

Na década de 1920 há um verdadeiro embate entre Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, engenheiro sanitarista, com verdadeira visão ecológica, e Francisco Prestes Maia, também engenheiro e urbanista com ideias de progresso, imediatistas.

Saturnino de Brito, em 1926, como presidente da Comissão Para a Melhoria das Águas do Rio Tietê, preconizava a preservação da orla do rio numa faixa variável de 1 km a 500 m e a construção de um lago na região onde hoje está a rodoviária e o estádio da Portuguesa de Desportos, que, armazenando águas durante os períodos de chuva, teria função regularizadora, evitando enchentes, podendo servir ao abastecimento, recreação e fins paisagísticos.

Entretanto, foi voto vencido, pois os arautos do progresso alegavam que o rio já era poluído, e assim Prestes Maia, eleito prefeito em 1938, conseguiu até 1945 quando deixou a prefeitura utilizar as áreas de várzea dos rios, com retificações, afundamento da calha dos rios e aterros dos terrenos da orla, abrindo avenidas como a 9 de Julho e 23 de Maio, e abrindo caminho para as marginais do Tietê e Pinheiros. Falava-se em transformar São Paulo na Chicago da América do Sul, com autopistas radiais favorecendo o trânsito dos automóveis. Essas obras, do ponto de vista da ecologia, se transformaram em verdadeiro desastre ambiental.

Alegava ele que as grandes capitais do mundo, tais como Viena, Paris, Londres e outras possuíam o seu anel. Mas, de modo cabotino, deixou de dizer que estava pulando etapas, pois essas cidades primeiro estabeleceram seu anel hidrográfico com o Danúbio, Sena, Tâmisa e em seguida o anel ferroviário para posteriormente implantar as avenidas radiais.

Nessas condições, as áreas de várzea foram sacrificadas, os rios transformados em canais que hoje podem ser considerados um verdadeiro “colar de esgotos” da cidade, em que pese todo o esforço para a sua despoluição. Priorizou-se um transporte particular em detrimento do público.

Então, quando hoje se faz referência ao acidente na Marginal do Tietê, se esquece que aquele chão é composto de material de aterro alheio ao que ali existia (os geólogos estão aí para explicar essa anômala situação) e pouco importa se o “tatuzão” estava ou não próximo da galeria.

Infelizmente perdemos o bonde da história (para usar um meio de transporte do meu tempo), por sinal outra relíquia apagada da cidade, num momento em que, como sempre, se pensava em modernizar a cidade.


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