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A história do teatro Kabuki, gênero artístico surgido no Japão no século 17, e sua adaptação à sociedade atual, com aparições em espetáculos musicais e filmes, é analisada em artigo publicado pela revista Estudos Japoneses. No Kabuki, os atores em cena expressam arroubos de sentimento e atitudes visíveis na interpretação por vezes exagerada, em contraponto à discrição e à suavidade que estão entre as características da cultura japonesa. Apesar das mudanças ao longo do tempo, o texto aponta como aspectos do Kabuki que permanecem nos dias de hoje o ator e sua relação com o público, “o toque velado de transgressão e a inovação constante, corroborando o Kabuki como um teatro popular do seu início até a contemporaneidade”.
O artigo relata que o Kabuki começou com as apresentações de dança e música em público de Okuni, uma sacerdotisa japonesa do século 17, que se vestia imitando um homem. Atualmente, o Kabuki é um teatro para todos os públicos, que aos poucos se sofisticou como “teatro clássico japonês” e, no Ocidente, pela música diferente, a maquiagem carregada e os figurinos coloridos, é tido como um teatro “exótico”. O ocidental estranha o mie – a “pose” durante as peças, o momento em que o ator para por um instante em seu movimento, com a técnica que põe em evidência toda a expressividade – e o nirami, em que o olhar fixo de ambos os olhos do ator vira-se para o meio do rosto, tornando sua pose mais impactante.
Devido à associação entre prostituição e algumas atrizes do Kabuki, somente homens tinham a permissão de atuarem nesse tipo de representação teatral. A partir daí o Kabuki buscou um estilo próprio. O texto aponta que os ideogramas que formam a palavra “kabuki” significam “canto”, “dança” e “talento”, mas, no começo, partiu-se do verbo “kabuku”, que significa “ser excêntrico”, “desviar-se de uma norma”, “devassidão”.
A dança do Kabuki lembra o movimento rítmico dos trabalhadores nas plantações de arroz ou na pesca, ou seja, é produto da realidade de uma população. Um pouco desprestigiado no início do século 20, o Kabuki se recuperou após o fim da Segunda Guerra Mundial e, em 2016, a personagem virtual Hatsune Miku, um dos maiores ícones pop da música no Japão, participou de um show chamado Chôkabuki, ou o “SuperKabuki”.
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Kabuki hoje – para quem?
Com os meios de comunicação de massa revolucionando a cultura, “que futuro terá, então, o assim reconhecido teatro clássico japonês?”, questiona o artigo, ressaltando que “a chave para a sobrevivência é a transformação”, a “adaptabilidade”, “referindo-nos a esta característica do gênero kabuki: a de se transformar para continuar a existir”. A representação teatral aponta, na verdade, o limite entre a cultura-fonte e o ponto da cultura-alvo – esse é o instante em que as duas culturas se cruzam, é a representação real e total do Kabuki.
A participação de um personagem virtual no show SuperKabuki tem como público-alvo não apenas os estrangeiros, mas os japoneses que fazem de Hatsune Miku um ídolo tecnológico, tão famoso como foram os atores do Kabuki tradicional. Hoje, no Kabuki, observa-se o cruzamento de diferentes gerações e até de culturas. Um bom exemplo é o trabalho realizado por Kirk Nishikawa Dixon, um ator de Kabuki mestiço, um tabu para considerável número de japoneses, mas que acabou por divulgar o Kabuki aos estrangeiros. Atuou no filme The Lion (2014), em que aborda justamente a questão da “identidade híbrida de um ator dividido – ou multiplicado?” – em duas culturas, de acordo com o texto, “uma transgressão”.
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De acordo com o artigo, o surgimento dos onnagatas, nos séculos 17 e 18, homens representando papel de mulheres, também é considerado uma transgressão, no caso da cultura japonesa, mostrando que, conforme aponta o historiador norte-americano Andrew Gordon, “identidade de gênero, pelo conceito moderno, não está no corpo, mas é o resultado mutável da performance”. Por outro lado, os onnagatas só surgiram porque as mulheres foram proibidas de atuar, muito devido à ligação com a prostituição.
Hoje, a participação feminina no Kabuki vem sendo considerada, porém mantendo a posição dos onnagatas nas apresentações, assim como estão sendo aceitos atores sem tradição Kabuki. Alternando transgressão e adaptabilidade, é a relação de magia e encantamento do teatro Kabuki com o público que o torna atemporal, conclui o texto.
Artigo
SÁ, M. Teatro Kabuki – das origens à contemporaneidade. Estudos Japoneses, São Paulo, n. 38, p. 97-108, 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ej/article/view/148814.
Contato
Michele Eduarda Brasil de Sá – Professora da Universidade de Brasília (UnB).
michele_eduarda@ufrj.br
Margareth Artur / Portal de Revistas USP
A seção “Revistas da USP” é uma parceria entre o Jornal da USP e o Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi) que apresenta artigos de autores de diversas instituições publicados nos periódicos do Portal de Revistas USP.