A criação literária como forma de resistência de mulheres negras

Pesquisa apresentada em artigo se baseou em depoimentos de escritoras negras contemporâneas de língua portuguesa

 08/03/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 10/03/2019 as 14:00

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As escritoras negras “tiveram ainda de enfrentar a recusa do gosto pautado numa estética literária branca e uma cultura europeizada” – Foto: rawpixel via Pixabay / CC0

A revista Crioula nos traz, no artigo de Ianá Souza Pereira, um tema pouco conhecido: uma reflexão sobre a criação literária de escritoras negras no contexto das literaturas de língua portuguesa. A partir do depoimento e da análise de obras literárias de escritoras negras, Pereira aborda a escrita como a ação política e a resistência dessas mulheres, “que agem política e ideologicamente para descolonizar a história e as mentes de leitores, movimentando o espaço literário e seu discurso hegemônico”. Estudando quatro escritoras negras contemporâneas e de língua portuguesa, as brasileiras Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro, e as moçambicanas Lília Momplé e Paulina Chiziane, o artigo põe em pauta o contexto político, cultural e histórico em que se observa a pobreza, a condição dos negros, a submissão da mulher, o racismo e o fato de mulheres negras se sentirem e serem tratadas como objeto, na medida em que seus corpos são hipersexualizados e superexpostos nas mídias de hoje.

Aqui se cita Virginia Woolf, escritora americana que questionava a dificuldade da produção literária feminina em um mundo dominado pelos homens, mas, na realidade, para as escritoras negras os entraves são maiores: “Surgem aí os obstáculos levantados pelas próprias escritoras depoentes sobre a condição dos negros em sociedades dominadas por brancos  que arquitetam, na verdade, os mecanismos materiais, econômicos, sociais e políticos do mundo atual”.

Mulheres negras, nas sociedades capitalistas, são as mais oprimidas e inferiorizadas socialmente. Aí é gerado um círculo vicioso: mulheres brancas e homens negros, a depender da situação, agem como opressores, pois, de acordo com Bell Kooks, autora e ativista femininista, “os homens negros podem ser golpeados pelo racismo e pela classe social, mas seu gênero lhes permite oprimir e explorar mulheres. As mulheres brancas, mesmo pobres, têm os privilégios da branquitude e podem atuar como opressoras de pessoas negras, mas à mulher negra não resta outra forma que não a de explorada”.

As mulheres negras dos contos de Conceição Evaristo são: “insubmissas […], desobedientes, inconformadas e independentes” – Foto: StockSnap via Pixabay / CC0
As escritoras negras, além de terem de enfrentar o racismo, “tiveram ainda de enfrentar a recusa do gosto pautado numa estética literária branca e uma cultura europeizada”, mas nem por isso esmoreceram, pois são “mulheres que se fizeram livres para e com a escrita”. Essa é a força de mulheres que sempre sofreram a privação, a rigidez de executarem trabalhos físicos pesados, muito mal pagos, “impostos pelo simples fato de serem mulheres e negras, que alimentam, cuidam e limpam” as casas e famílias de outros e ainda de suas próprias. “Ler essas mulheres e estudar seus textos literários é garantir-lhes o direito básico de existirem como mulheres e como escritoras”, salienta Pereira.

As mulheres negras dos contos de Conceição Evaristo são: “insubmissas […], desobedientes, inconformadas e independentes. Já o livro Malungos e Milongas, de Esmeralda Ribeiro, tem como objetivo “fazer ressoar entre negros e não negros a importância da solidariedade entre seres humanos”. Nos contos de Lilia Momplé estão presentes o colonialismo na África e a miséria de sua população. A obra As Andorinhas, de Paulina Chiziane, “aproxima o leitor do passado soterrado do colonialismo em África e da luta por sua libertação”, e é um convite para se pensar “sobre acontecimentos que favoreceram todos os senhores herdeiros das injustiças da história”.

Concluindo, enfatiza-se a importância de conhecermos a literatura de mulheres negras para se constatar que ela é um antídoto contra a rejeição e a marginalidade instituídas pela “literatura ‘oficial'”. Essas mulheres escrevem assumindo-se “protagonistas” contra os estereótipos determinados para o corpo feminino negro, valorizando postura e pensamentos críticos diante da realidade herdada, e isso, sem dúvida, mostra “o posicionamento político das escritoras”.

PEREIRA, I. Contos, depoimentos e memórias de escritoras negras brasileiras e moçambicanas. Revista Crioula, v. 1, n. 22, p. 14-38, 2018. ISSN: 1981-7169. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1981-7196.crioula.2018.15325.

Disponível em: http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/153258. Acesso em: 08 jan. 2019.

Ianá Souza Pereira – Psicóloga e doutoranda do Instituto de Psicologia da USP.

Margareth Artur / Portal de Revistas USP

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