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Altos níveis de ácido úrico no organismo podem levar a complicações no rim diabético, mesmo que o excesso de açúcar no sangue (hiperglicemia) esteja controlado, aponta pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP. A diminuição da excreção de ácido úrico no diabetes seria um componente importante da “memória metabólica”, ativando os mecanismos que causam fibrose e perda da função renal, mesmo após o tratamento convencional da doença. Os resultados do trabalho são descritos na tese de doutorado de Antonio Anax Falcão de Oliveira, que recebeu menção honrosa na categoria Ciências da Saúde do Prêmio Tese Destaque USP 2018.
O objetivo da pesquisa foi entender, a partir de um modelo animal, algumas alterações renais persistentes após o tratamento do diabetes. “Estudos epidemiológicos feitos nas décadas de 1980 e 1990 mostram que quando o diabético é tratado de forma intensiva desde o início da doença, há uma grande diminuição do risco de complicações microvasculares, como a nefropatia ou doença renal. Já os que permanecem inicialmente hiperglicêmicos e são então submetidos ao tratamento intensivo não experimentam o mesmo benefício”, diz a professora Ana Paula de Melo Loureiro, orientadora do trabalho. “Há uma elevada ocorrência de doenças renais em diabéticos, o que gera um enorme sofrimento e gasto com tratamento.”
No estudo, o diabetes foi induzido em ratos para imitar os efeitos de períodos curtos e longos sem tratamento. “Um grupo ficou com hiperglicemia por quatro semanas e outro por 12 semanas. Em seguida, ambos foram tratados pelo tempo correspondente ao período em que não receberam cuidados, ou seja, quatro e 12 semanas”, explica o autor da tese. “Após o tratamento, foram examinados todos os parâmetros convencionais de controle do diabetes e da função renal, como níveis de glicemia, hemoglobina glicada, massa relativa do rim, proteínas na urina e dano tubular. Em todos os casos, os indicadores estavam normais, sem indícios de nefropatia.”
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A pesquisa procurou marcadores do comprometimento da função renal a partir da análise de vias que levam às complicações do diabetes. “Os parâmetros avaliados de estresse oxidativo, por exemplo, se normalizaram após o tratamento, demonstrando não ser importante de indução de danos persistentes no diabetes controlado”, afirma o pesquisador. “Entretanto, quando são focalizados os componentes de uma importante via fibrogênica, um conjunto de moléculas que leva ao enrijecimento do tecido (fibrose) e perda da função renal, foram detectados proteínas e intermediários metabólicos que permanecem alterados mesmo quando os parâmetros convencionais do diabetes e da função renal são estabilizados. A permanente ativação dessa via pode aumentar o risco de dano ao tecido renal.”
A proteína AMPK fosforilada, que bloqueia a fibrose, está diminuída durante o diabetes. Quando o tratamento foi aplicado após quatro ou 12 semanas, não houve normalização do nível renal dessa proteína. “Já o TGF-β, proteína que exerce papel central na indução da fibrose, permaneceu aumentado nos animais com hiperglicemia e após o tratamento tardio (12 semanas)”, relata Falcão de Oliveira. “Alterações dos níveis de AMPK fosforilada podem levar a alterações dos níveis da proteína PGC 1-α, importante para a geração de energia pelas células (função mitocondrial). Verificou-se a diminuição dos níveis de PGC 1-α após o período mais longo de diabetes, sem normalização com o tratamento.”
Dois metabólitos associados ao processo de fibrose foram analisados. “O fumarato, um intermediário do ciclo de Krebs (via metabólica importante para a geração de energia pelas células), já foi apontado como um metabólito que aumenta a atividade do TGF-β. No estudo, o perfil de alteração dos níveis renais de fumarato se assemelhou ao do TGF-β, mantendo-se aumentado nos animais hiperglicêmicos e quando o tratamento é tardio”, destaca o pesquisador. “O ácido úrico, que durante o período de hiperglicemia tem a sua excreção renal diminuída, resultando em aumento no sangue, é apontado como inibidor da atividade de AMPK”.
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Ácido úrico
Na análise dos níveis de ácido úrico no sangue e na urina dos animais foi verificado aumento dos níveis sanguíneos e diminuição dos níveis urinários desde o período mais curto de hiperglicemia, alterações que persistiram após os dois períodos de tratamento. “Há a possibilidade de que o ácido úrico aumentado persistentemente no organismo dos animais, mesmo após o controle do diabetes, leve à diminuição da forma ativa da AMPK (fosforilada), favorecendo o aumento dos níveis de TGF-β e toda a via fibrogênica”, observa Falcão de Oliveira. “O ácido úrico proporcionaria uma espécie de ‘memória metabólica’ que induziria à formação de tecido fibroso nos rins (efeito fibrogênico).”
Segundo a professora da FCF, os resultados da pesquisa apontam para a necessidade de maior investigação dos efeitos do ácido úrico aumentado em pessoas com controle do diabetes. “O trabalho reforça a importância do controle precoce da glicemia, e também do ácido úrico”, ressalta. Para o pesquisador, “o ácido úrico é uma peça importante para explicar a ‘memória metabólica’ no rim diabético, ajudando a entender por que os pacientes de diabetes tratados mantêm o risco aumentado de complicações microvasculares”.
A tese de doutorado A memória hiperglicêmica no rim diabético: marcas metabólicas, moleculares e epigenéticas foi defendida em 10 de fevereiro de 2017. O trabalho recebeu menção honrosa na categoria Ciências da Saúde do Prêmio Tese Destaque, concedido pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da USP. Os dados do estudo foram publicados no artigo Sustained kidney biochemical derangement in treated experimental diabetes: a clue to metabolic memory, escrito por Antonio Anax Falcão de Oliveira, Tiago de Oliveira, Larissa Bobadilla, Camila Garcia, Carolina Maria Berra, Nadja de Souza-Pinto, Marisa Medeiros, Paolo Di Mascio, Roberto Zatz & Ana Paula de Melo Loureiro, publicado na revista Scientific Reports (7:40544. DOI: 10.1038/srep40544).
Mais informações: e-mails antonioanax@usp.br, com Antonio Anax Falcão de Oliveira, e apmlou@usp.br, com a professora Ana Paula de Melo Loureiro