Poesia de Adélia Prado torna cotidiano universal, político e social

Ganhadora dos Prêmios Camões e Machado de Assis, escritora extrai momentos epifânicos do dia a dia

 Publicado: 05/07/2024

Texto: Luiz Prado

Arte: Brenda Kapp*

“O que caracteriza a poesia da Adélia é uma dimensão política e social”, diz o professor da USP Augusto Massi – Foto: Divulgação Biblioteca Nacional

Em junho, a poeta, romancista, contista, professora e filósofa Adélia Prado foi consagrada, em menos de uma semana, com dois grandes reconhecimentos por sua contribuição às artes. O primeiro deles foi o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL). O outro foi o Prêmio Camões, principal láurea do mundo lusófono, que é subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) do Brasil, e pelo governo de Portugal.

Na declaração elogiosa emitida pelo júri do Prêmio Camões, Adélia é descrita como autora “de uma obra muito original, que se estende ao longo de décadas, com destaque para a produção poética”. O júri continua, situando-a como “herdeira de Carlos Drummond de Andrade, o autor que a deu a conhecer e que sobre ela escreveu as conhecidas palavras ‘Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo’. O comentário termina afirmando que Adélia é “há longos anos uma voz inconfundível na literatura de língua portuguesa”.

Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Estado de Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935. Realizou o Magistério em 1953 e tornou-se professora. Em 1966, já casada e mãe de cinco filhos, iniciou a graduação em Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, que atualmente integra a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).

Antes de seu primeiro livro, atuou por 24 anos como professora e publicou alguns poemas em jornais locais. A estreia oficial na literatura se daria em 1976 com o livro Bagagem. A publicação da obra teve influência de Carlos Drummond de Andrade, que recebera dois anos antes alguns poemas enviados pela própria Adélia. Impressionado, Drummond sugeriu o material para os editores.

Em 1978, Adélia publicaria seu segundo livro, O Coração Disparado, com o qual recebeu o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL). No ano seguinte, deixou a sala de aula para se dedicar exclusivamente à carreira artística e estreou na prosa com Solte os Cachorros. Em 1980, dirigiu em sua cidade a montagem teatral de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, realizada pelo grupo amador Cara e Coragem.

O romance Cacos Para Um Vitral seria publicado também em 1980 e em 1981 sairia a coleção de poemas Terra de Santa Cruz. De 1983 a 1988, Adélia atuou como chefe da Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, período em que publica o romance Os Componentes da Banda (1984) e o livro de poemas A Faca no Peito (1988). Foi nessa época também, em 1987, que Fernanda Montenegro levou aos palcos o espetáculo Dona Doida, baseado em poemas da autora.

O início da década de 1990 começou para Adélia com a publicação de Poesia Reunida (1991) e seguiu com o romance O Homem da Mão Seca (1994). Em 1996, aconteceu a estreia do espetáculo Duas Horas da Tarde no Brasil, adaptação da obra da autora realizada por sua filha Ana Beatriz Prado e Kalluh Araújo. O conjunto de poemas Óraculos de Maio e o romance Manuscritos de Felipa vieram em 1999, este último adaptado como o monólogo Dona de Casa, por José Rubens Siqueira, em 2000.

No século 21, Adélia publicou os contos de Filandras (2001), a novela Quero Minha Mãe (2005), o livro infantil Quando Eu Era Pequena (2006), a coleção de poemas A Duração do Dia (2010) e mais um infantil, Carmela Vai À Escola (2011). Seu livro inédito mais recente é Miserere, de 2013. Em 2014, foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural pelo governo brasileiro e em 2015 foi publicada nova edição de Poesia Reunida.

Em dezembro de 2023, a autora anunciou o trabalho em um novo livro, provisoriamente chamado O Jardim das Oliveiras, após dez anos do que chamou de “deserto criativo”. Além disso, Adélia também é ativa nas redes sociais, onde faz leituras de seus poemas e se comunica com o público através de seu perfil no Instagram.

 

Uma poeta universal, política e social

Considerada a maior poeta brasileira viva, Adélia trouxe para suas palavras o cotidiano, a religiosidade e as questões do ser mulher em uma cidade interiorana. Em uma primeira leitura, temas simplesmente prosaicos, mas que ganham articulação densa, com questões universais para além dos limites geográficos, sociais e afetivos de Divinópolis.

O professor Augusto Massi – Foto: Arquivo FFLCH – USP

Quem faz essa análise é Augusto Massi, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Massi tem um envolvimento com a obra de Adélia que vai além da pura curiosidade acadêmica, alcançando uma dimensão pessoal. Em sua biblioteca, o professor guarda livros autografados, primeiras edições e recortes de jornal com fotografias da poeta.

Massi conta com orgulho que foi o primeiro jornalista a desembarcar em Divinópolis para conversar com Adélia, sendo responsável por uma matéria que ganhou primeira página na Folha de S. Paulo e arrancou elogios dos colegas de redação. Desse primeiro contato surgiram outros e a relação se estreitou, como revela a correspondência trocada com a escritora por ocasião de outros textos que publicou sobre ela. Toda essa bagagem tornou Massi figura natural para assinar o posfácio da edição de 2015 de Poesia Reunida.

“O que caracteriza a poesia da Adélia é uma dimensão política e social”, comenta o professor. Para Massi, é importante fugir dos lugares-comuns que classificam a escritora apenas como uma poeta do cotidiano. “Ela abriu um público novo para a poesia. Quando surge, Bagagem é um grande acontecimento. Aparecia de um lugar inesperado uma voz com comunicação direta com as pessoas. E Adélia era uma poeta preparada, que estreou tarde, teve a qualidade de esperar sua poesia amadurecer.”

Esse tipo de comunicação com o grande público, sublinha Massi, não é algo trivial ou que se encontra em qualquer poeta. “E não só porque Adélia estava falando de uma bandeira feminista ou da religiosidade, temas que atravessam toda sua obra. Eu diria que é porque a questão de estar no mundo, cercada das coisas, transcende a ideia do cotidiano e das pequenas coisas. É o contrário, na verdade. Ela está discutindo as grandes coisas.”

 

Elaboração poética resultante não dos versos de uma dona de casa, explica o professor, mas de uma mulher formada em Filosofia e politizada, que foi militante em Divinópolis, trabalhou em centros de cultura ligados ao Partido dos Trabalhadores e foi próxima da Teologia da Libertação. É assim, por exemplo, que seu catolicismo não surge repressivo, mas libertário, aponta Massi. Uma espécie de franciscanismo que pode ser encontrado em vários momentos da poesia brasileira, como em Manuel Bandeira ou Murilo Mendes.

É decisivo para Massi resgatar o caráter público da obra de Adélia, tensionando a presença do cotidiano em sua obra e a maneira como a poeta o constrói. “Quando falamos de Drummond ou Bandeira, por exemplo, não falamos desses aspectos, não os definimos simplesmente pelo cotidiano. Contudo, em todo grande poeta o cotidiano está lá. Se ele bastasse, entretanto, todo mundo teria condições de ser um grande poeta. A operação de Adélia é transformar o cotidiano. Seu olhar o recria em uma dimensão social e pública. Ela transforma o cotidiano em um momento de beleza e poesia.”

A base é o cotidiano, mas não o olhar, analisa o professor. Interessa para Adélia o que passa despercebido e pode se tornar epifânico, iluminando a rotina. Assim, a esfera do comum é projetada para um plano de excepcionalidade, de mistério e lirismo. E também importa a dimensão trangressora e questionadora, como aparece no tratamento dado à religião.

Aqui também um diálogo complexo, em chave invertida. A Igreja, em sua obra, torna-se dessacralizada pelo cotidiano. “As coisas não estão separadas”, comenta Massi. “É como se ela gostasse de rebaixar o tema para uma linguagem que todos entendem, uma preocupação própria da religião cristã, de atingir a todos, uma dimensão social. Mas, por outro lado, há momentos nos quais Adélia também dialoga com uma poesia que seria sagrada e espiritual, momentos em que indaga a Deus. Ela não é uma católica acomodada.”

Uma poeta do diálogo

Esse redimensionamento do rotineiro para o plano universal e do sagrado para o cotidiano acontece na obra de Adélia a partir de um tratamento formal às vezes pouco aparente, mas fundamental para sua poética. Massi recorda que a poesia brasileira sempre deu muita importância para a forma. Poetas como Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, por exemplo, utilizavam muito bem o verso livre, mas também sabiam fazer poemas metrificados. Adélia, à primeira vista, não demostra as mesmas preocupações. Mas o professor salienta que existe, sim, um trabalho formal relevante em seu escritos.

Mas como Adélia é transgressora, lembra Massi, ela também questiona Drummond. Sendo mulher, ela assinala uma diferença. Em Com Licença Poética, refere-se ao poeta, mas firma posição ao dizer que é desdobrável. “Ela é uma mulher corajosa, que tem esse diálogo e ao mesmo tempo quer marcar a diferença.”

Um silêncio

Ela descalçou os chinelos
e os arrumou juntinhos
antes de pôr a cabeça nos trilhos
em cima do pontilhão,
debaixo do qual passava um veio d’água
que as lavadeiras amavam.
O barulho do baque com o barulho do trem.
Foi só quando a água principiou a tingir
a roupa branca que dona Dica enxaguava
que ela deu o alarme
da coisa horrível caída perto de si.
Eu cheguei mais tarde e assim vi para sempre:
a cabeleira preta,
um rosto delicado,
do pescoço a água nascendo ainda alaranjada,
os olhos belamente fechados.
O cantor das multidões cantava no rádio:
“Aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim”.

Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

“Ela faz a decupagem cinematográfica e, quando percebemos, há uma riqueza, como se houvesse uma música de fundo”, comenta Massi. O professor recorda também o exemplo de Casamento, poema do livro Terra de Santa Cruz, de 1981. “As pessoas pensam que é sobre o cotidiano, mas há um trecho no qual o homem começa a narrar os movimentos do peixe e esse é o momento epifânico. O peixe vem lá do fundo e é como o erotismo que vem de dentro dos corpos. A epifania surge do cotidiano, da cena prosaica, e ilumina tudo.”

“Ela tem uma consciência muito moderna da função do corte e da montagem. E isso permite aos poemas ter narratividade, contar histórias”, analisa o professor.

Poema de Adélia Prado intitulado "Com licença poética" - Fonte: Bagagem (1976)
Carlos Drummond de Andrade – Foto: Wikipédia

É preciso entender de que maneira Adélia se relacionou com Drummond, afirma Massi. Um caminho é pensar menos em termos de influência e mais como um diálogo. Se o envio dos originais que resultariam em seu primeiro livro denotam sinal óbvio de uma certa filiação, o professor aponta ali também a afirmação da personalidade própria da poeta. “Drummond foi um leitor interessado, interessante, problematizador e generoso”, explica Massi. “Ele comentou sua poesia não porque era parecida com a dele ou porque reconheceu algo de sua influência. Ele reconheceu que alguém dialogou com ele e foi adiante.”

João Guimarães Rosa – Foto: Acervo Fundo JGR/ IEB

Drummond pode até ser o primeiro nome que se relaciona com Adélia, mas certamente não é o único. Outro escritor com quem a poeta estabelece laços é João Guimarães Rosa, conforme a própria atesta em A Invenção de Um Modo, poema de Bagagem: “Porque tudo que invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão”.

O contato com Rosa, de acordo com Massi, aparece na prosódia, na ideia de conversa e de uma fala particularizada e repleta de riquezas. O que Adélia gosta no autor e leva adiante, explica o professor, é a passagem realizada entre um mundo que parece vasto e intraduzível – o sertão popular e arcaico – para o urbano e o universal. São as “veredas” estabelecidas por Rosa que interessam à poeta.

Clarice Lispector – Fraco e Moura via Wikimedia Commons

Um terceiro diálogo apontado por Massi é com Clarice Lispector. Nas duas autoras, explica o professor, há desejo de filosofar e refletir, ainda que de modo diferentes. “Um perguntar pelas coisas, saber da existência de algo que se desconhece e quer dominar.” Para Massi, muitos escritores só querem afirmar suas convicções, estão repletos de certezas. É o contrário que une Adélia a Clarice, Drummond e Rosa. “Os três representam para ela essas indagações mais profundas: o invisível, o indizível, o difícil de traduzir em palavras.”

Uma autora da oralidade

Se os prêmios recebidos por Adélia representam reconhecimento pelo conjunto de sua obra, Massi sugere que é preciso compreender sua importância não apenas a partir da poesia. Celebrada por seus poemas, Adélia é detentora também de uma prosa ainda pouco comentada, que merece análise mais dedicada, frisa o professor. “Sua prosa tem uma vocação romanesca, psicanalítica, que às vezes se liga a um fato comum da vida das pessoas: a fofoca, a vizinhança, o que se escuta nas ruas. Adélia recria esse mundo da cidade pequena com a complexidade de seu olhar.” Para o professor, sua poesia alimenta a prosa e vice-versa. “Sua poesia tem elementos prosaicos e sagrados, uma tensão saudável. E na prosa, é como se ela descansasse daqueles momentos de síntese poética.”

Contudo, a partir das obras escritas – sejam poemas, romances ou contos – salta da produção de Adélia uma importante dimensão ligada à oralidade, fonte decisiva da comunicação estabelecida entre autora e público, indica Massi. “Sua poesia tem um apelo para a oralidade”, assinala. Indo além das páginas impressas, sua poética ganha força nas próprias leituras públicas que a autora realiza e também na transposição de seus escritos para os palcos.

“O teatro é um pólo que ainda foi pouco estudado”, aponta o professor. “A prosa da Adélia é quase uma montagem, com cenas e personagens. Poderia ser teatro, poderia ser uma série de televisão.” Massi lembra a montagem teatral de Dona Doida, a partir dos versos de Adélia, com Fernanda Montenegro. “A peça reforça minha crença de que ela tem uma dimensão universal e poderosa, capaz de levar uma grande atriz a fazer um espetáculo só com poemas da Adélia.”

Quanto à potência da leitura, Massi recorda um episódio do evento Artes e Ofícios da Poesia, organizado por ele em 1991 reunindo diversos poetas nacionais, dentre eles Adélia. O público pedia seus poemas, conta o professor, como se Adélia fosse uma “artista pop”. Ao atender os fãs, chamou atenção do professor a performance da poeta: sentando-se nas escadas, iniciando a leitura, emocionando-se com alguns poemas e, com isso, dominando a plateia. “Quem faz apenas a crítica literária dos livros perde essa dimensão, porque isso sai dos livros e chega às pessoas,” pontua Massi.

A partir dos comentários do professor, é possível dizer que experienciar a obra de Adélia trata-se menos de procurar fronteiras e limites do que encontrar porosidades. O cotidiano que se torna universal, o sagrado que também é prosaico, a palavra escrita que se expande com a fala. E além: as ideias que se materializam no corpo, se nos for permitido expandir os sentidos da poesia para além dos símbolos gráficos. É a proposta de Massi, quando destaca a força da personalidade de Adélia, que transita dos versos para sua própria pessoa.

“Seu rosto tem a beleza de um poema”, elogia. Massi destaca o encantamento provocado por seu sorriso, sua voz e seu olhar – uma amostra pode ser vista nos vídeos publicados na rede social da escritora. Adélia possui, para Massi, um rosto belo e lírico. “Ela é uma mulher bonita em todos os sentidos. Em seu rosto há um mapa da poesia. É uma mulher que tem os cabelos brancos, que as rugas foram tomando conta do rosto, sem plástica ou botox. É como se cada ruga fosse o verso de um longo poema que o tempo traduziu ao longo dos anos”, conclui o professor, com o lirismo de palavras que
respondem ao lirismo da poesia de Adélia.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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