Em 1957 o volume 257 da New England Journal of Medicine, em suas páginas de 1207 a 1211, relatava (e ainda está lá) um importante trabalho na área médica da primeira mulher negra a se formar médica em Harvard, a então norte-americana descendente de escravos dra. Wright.
Chamo a atenção a este fato para questionar se tal feito teria uma amplitude e frequência de divulgação na mídia nos tempos atuais nos EUA, como tivemos no caso recente. Se a resposta for negativa, resguardando a enorme diferença entre Brasil e outros povos, podemos ainda assim elucubrar respostas.
Já que posso neste espaço me levar um pouco pelo pensamento, vou supor alguns pontos interessantes que em breve serão meus argumentos aqui. Imagine seres humanos com as mesmas quantidades de neurônios e a mesma formação morfológica cerebral e corporal que europeus, sendo considerados seres inferiores e submetidos à dor como impulso de vida (açoites regulares) e que ainda tivessem à frente do modo de produção de uma sociedade como sendo a Mehrwert gratuita do explorador.
Recentemente a mídia divulgou com grande amplitude e frequência o fato de que uma mulher, descendente de escravos, se destacou em primeiro lugar no concurso vestibular de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Causaria estranheza destacar o gênero e a cor da pele do ser humano que obteve tal mérito, não fosse o contexto que equaciona a história das negras e negros neste país.
Não existem relatos de que os europeus enviassem engenheiros e técnicos altamente especializados, em detalhes e pormenores, para atuarem no bom funcionamento de engenhos ou mesmo para improvisar desvios em túneis em minas ou em qualquer outro ambiente de trabalho executado por negros. Considere ainda a dor dos açoites como uma forma de avaliar mérito.
Ora, neste cenário carente de misericórdia, o ato de estruturar o pensamento e criar metodologias de ação é uma saída que ameniza a dor e ajuda a instigar o instinto de sobrevivência. Sendo assim, os negros, sim, os escravos, tiveram que “engenhar”, consertar pequenos detalhes de engenhos quebrados, resolver como desviar um túnel de uma mina (vislumbre os quilômetros de túneis em Ouro Preto) caso uma pedra estivesse no caminho, pensar em pequenos e importantes detalhes na colheita do café, e com isso aumentar a riqueza da nação escravocrata diminuindo a dor dos açoites. Um problema complexo de engenharia reversa.
Com este pensamento então faço a seguinte afirmação: durante as centenas de anos de produção da riqueza deste país os Negros foram cientistas e técnicos porque conseguiram manter um modo de produção, cujos detalhes técnicos eram por eles pensados e executados. Este é meu argumento para o fato de que a riqueza herdada pela elite brasileira é oriunda da ação técnica e científica dos escravos durantes as centenas de anos de produção com Mehrwert gratuita.
Cabe aqui dizer, com função argumentativa, o que me leva a atribuir a palavra cientista para um escravo que não publicou seu feito em uma revista científica, como o fez a dra. Wright. Para tal, gostaria de abrir um parênteses e elucubrar que é razoável pensar que na universidade existem os pesquisadores, aqueles que usam o método científico e formam pessoas, publicam artigos, lecionam e executam tarefas administrativas e de gestão, e existem os cientistas, que são aqueles que dentro da universidade realizam as mesmas tarefas que os pesquisadores mas que não se limitam às verdades absolutas e observam o mundo como que cercado por paradigmas a serem transpostos, e que, para estes, a natureza é um livro escrito em uma linguagem que não compreendemos, e têm a humildade de admitir que o pouco que sabemos deste livro é apenas uma tradução mal feita.
Ou seja, o cientista não precisa estar dentro de uma universidade e a ciência não pertence a um grupo específico. Neste contexto: “(travessão) sim! ”, muitos escravos foram cientistas e vislumbraram o paradigma da liberdade de forma metódica e muitas vezes técnica.
Mas e o que dizer daqueles que descendem dos escravos? O que herdaram?
Apesar de terem sidos transportados dos açoites das senzalas para as misérias das favelas (frase inspirada no samba-enredo da Vila Isabel em 1988, escrito por Martinho da Vila), alguns descendentes de escravos fizeram enormes contribuições para a ciência brasileira.
Ou seja, o cientista não precisa estar dentro de uma universidade e a ciência não pertence a um grupo específico. Neste contexto: “(travessão) sim! ”, muitos escravos foram cientistas e vislumbraram o paradigma da liberdade de forma metódica e muitas vezes técnica.
A própria Universidade de São Paulo, que não tem se preocupado com os descendentes dos cientistas negros, teve a influência de um descendente de escravo, o dr. Teodoro Sampaio, que ajudou a fundar a Escola Politécnica (da qual me orgulho de ter sido aluno). Inclusive (e considere este próximo comentário um adendo provocativo e desconexo do texto), ainda se pode sugerir aos nossos gestores que considerem uma estátua do descendente de negro na entrada da USP ao lado do descendente de europeu, o não menos digno dr. Armando Salles de Oliveira, e, na crise financeira que passa nossa USP, tal feito seria louvável.
Continuando o raciocínio, no século 21, o fato de uma mulher negra, ao obter mérito num concurso vestibular para medicina, causar espanto na sociedade mostra o quanto os descendentes de escravos cientistas ainda estão fora da dita “comunidade científica brasileira”. Este deveria ser um fato comum numa sociedade em que metade descende de escravos e a outra metade das diversas etnias que compõem nosso amado e sofrido povo.
(Travessão) Mas o que fazer? Por onde começar? Qual é a receita?
Minha opinião, e minha opinião é tão somente e apenas a minha opinião, é de que devemos rever os estereótipos, abrir o coração da elite que comanda o Brasil e de forma pacífica propor mudanças aceitando primeiramente o que está errado. Existem várias ideias que não são ouvidas, muitos cientistas negros que não estão nas comissões que decidem sobre cotas e outras políticas afirmativas, e é válido lembrar que “Negro samba, negro joga capoeira”, mas negro também faz ciência e tecnologia na história brasileira. Com esta rima “plagiada” do samba-enredo de 1988 da minha querida Mangueira e já em ritmo de carnaval, termino homenageando todos os cientistas descendentes de escravos que arduamente contribuíram e contribuem para o progresso da ciência e tecnologia brasileira. Axé, irmãos!