.
No clássico de Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas, o protagonista Riobaldo escolheu caminhos alternativos em busca de si, caminhos que passavam pelas veredas do sertão. Na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, os estudantes buscaram alternativas para ampliar o conhecimento adquirido em sala de aula. Eles escolheram levar assistência a grupos de moradores em situação de vulnerabilidade da cidade e da região.
Assim nasceu o projeto Veredas em 2016. A partir da identificação dos estudantes do curso de Medicina de ampliar o conhecimento adquirido em sala de aula, eles decidiram “quebrar os muros da Universidade”, lembram Guilherme Augustini Monteiro e Bárbara Marcusso, alunos da FMRP e atuais coordenadores do projeto.
Maria Lucilene Pereira da Silva é moradora do Assentamento Mário Lago, zona rural de Ribeirão Preto e o primeiro local a receber o projeto quando ele saiu do papel, em 2017. Há mais de um ano, ela aguardava atendimento ginecológico na rede pública.
E finalmente conseguiu sua consulta este ano, só que no projeto Veredas. E ela não foi a única moradora do local beneficiada. A assistência médica já chegou a 800 famílias, num total de mais de 3 mil pessoas.
Maria Madalena Alves Gonçalves, moradora do assentamento há 8 anos e agente comunitária há 19, conta que, apesar de o local oferecer consultas diárias com um médico generalista no Núcleo de Saúde da Família, a demanda da comunidade é intensa e carente de especialidades.
Consequência dessa realidade é o caso de José Perdigão Filho, de 63 anos, que lamenta ter sido reprovado no “exame de vista” para renovação de sua carteira de motorista. Precisava de atendimento oftalmológico, especialidade médica que não é oferecida, segundo os moradores.
Já Maiane Gonçalves de Souza, de 30 anos, conseguiu atendimento dermatológico que necessitava através do projeto Veredas. Ainda na fila de espera, ela é só agradecimento pelo atendimento tão perto de casa. “Vou ser atendida, já vim outras vezes e é muito bom. Está ajudando muitas pessoas aqui dentro”, relata Maiane, que veio de Malacaxeta, Minas Gerais, e reside há 17 anos no assentamento.
Carência numa região com medicina de alta tecnologia
“Temos um hospital com alta tecnologia e estamos a meia hora de uma área onde existem pessoas que não têm acesso nenhum a esse hospital. Se nós não viermos até eles, eles nunca vão conseguir chegar até nós”, reflete João Marcello Fortes Furtado, tutor do projeto e professor de Oftalmologia da FMRP.
Na tentativa de mudar essa realidade, o Veredas leva atendimento a essas pessoas durante todo o ano, pontuado por ações de mutirão para necessidades específicas. Em média, cada atendimento conta com a participação de 50 alunos de medicina e, desde 2018, o grupo conta com equipes multidisciplinares que envolvem professores e alunos de fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional, nutrição e farmácia.
.
.
Toda a demanda é atendida e, caso necessário, são solicitados atendimentos de especialistas e exames, encaminhados às unidades de saúde de Ribeirão Preto mais próximas ao Assentamento Mário Lago. O acompanhamento é feito pelo médico generalista que atende na unidade de saúde local, num trabalho integrado. A equipe do Veredas ainda organiza atividades de educação em saúde, quando abordam temas solicitados pela população ou com maior demanda de ocorrências.
Cada vez mais sensíveis às necessidades da comunidade, os coordenadores do projeto já fizeram parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) e já costuram outra com a Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (FORP), ambas da USP, para também oferecer atendimento odontológico no local, “uma especialidade com alta demanda”, afirma Bárbara.
Julieta Mieko Ueta, professora e tutora da FCFRP, destaca que os estudantes e residentes farmacêuticos atuam levando informações sobre medicamentos e enfatiza que “o uso correto do medicamento é sempre uma preocupação”. A professora também entende o projeto como uma “experiência única” na formação dos alunos..
.O Assentamento Mário Lago foi o primeiro local escolhido para a implementação do projeto, mas a equipe já realizou atendimentos no presídio e centro de detenção de Serra Azul e no asilo de Igarapava, sempre com o mesmo princípio de levar assistência a pessoas em vulnerabilidade social.
Desde a criação até agosto de 2019, foram cerca de 1,3 mil atendimentos e distribuição de 211 pares de óculos. O professor Furtado divide a tutoria do Veredas com seu colega Fábio Carmona, professor de Pediatria, e com os colaboradores do projeto, os professores Marco Andrey Cipriani Frade, da Dermatologia, e José Sebastião dos Santos, da Cirurgia, todos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
.
Troca de experiências
A comunidade não é a única beneficiada pelo Veredas, segundo o professor Furtado. “É tão bom para os estudantes quanto para a população, todo mundo sai ganhando, isso é nítido.” Essa troca, garante Furtado, é importante para que os alunos tenham experiências diferentes e estejam em contato com uma comunidade mais carente. O professor cita emocionado o exemplo de um atendimento a um senhor de 60 anos que estava, pela primeira vez, fazendo um exame oftalmológico. “Foi o primeiro exame de vista dele.”
E os benefícios do projeto continuam, segundo os tutores, levando informações através de aulas abertas a todo o público da faculdade e também para participantes de simpósios. Nessas aulas na faculdade, são apresentados “temas pouco discutidos durante a graduação, entre eles regulação em saúde, moléstias infecciosas do trabalhador rural, abordagem feminista no atendimento ginecológico e atendimento centrado na pessoa”, afirmam os coordenadores..
.
Residentes atendem no assentamento
O Veredas conta com uma rede de colaboração que vai além da equipe multidisciplinar e envolve também os residentes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto como voluntários. “A visibilidade do projeto levou a residência em Medicina da Família a ter, como estágio obrigatório, atendimento no assentamento”, diz um dos coordenadores do projeto, o aluno Guilherme Monteiro.
Para Milena Muniz, voluntária no Veredas e médica contratada do hospital, foi um ganho importantíssimo para esses residentes e extremamente bem avaliado por esses profissionais. “É importante exercer uma atividade num território totalmente diferente, território rural, e ofertar acesso a comunidades geograficamente desfavorecidas.”