PEC do Plasma pode reduzir estoque de sangue para utilização pelo SUS

Fernando Aith e Gonzalo Vecina Neto analisam os desdobramentos do projeto aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, cujo objetivo é abrir o processo de coleta de plasma para a iniciativa privada

 06/11/2023 - Publicado há 6 meses

Texto: Julia Galvão*

Arte: Gabriela Varão**

O principal problema associado à aprovação da PEC é a própria comercialização do plasma - Foto: Freepik

O plasma humano corresponde a cerca de 55% do volume sanguíneo e é formado por água, sais minerais e proteínas. A sua função primordial é transportar esses elementos para o corpo humano, mas a partir dele também é realizada a produção de medicamentos hemoderivados que são utilizados no tratamento de diferentes doenças. 

Hoje a produção desses remédios é feita de forma exclusiva pela Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás). Contudo, um Projeto de Emenda Constitucional (PEC 10/2022), aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, tem como objetivo abrir o processo de coleta de plasma para a iniciativa privada. 

Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo, explica que os principais objetivos da PEC são a permissão de comercialização do plasma para fins de uso no mercado privado e para fins de produção de fármacos com essa matéria-prima. 

Desafios

O professor esclarece, dessa forma, que o principal argumento defendido por aqueles que são favoráveis ao projeto sustenta-se no fato de que o Brasil não possuiria uma capacidade industrial instalada para processar e utilizar todo o plasma que é coletado. Assim, atualmente, parte do plasma seria jogada fora, gerando um desperdício material que poderia ser utilizado pela iniciativa privada. 

Contudo, Aith aponta que a Hemobrás foi criada para poder processar esse plasma e produzir hemoderivados para o mercado nacional com uma distribuição gratuita. “A Hemobrás finalmente entraria em funcionamento pleno e eu acho que esse fator é um dos motivos pelos quais estão avançando com essa proposta.” 

Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública, avalia que o principal problema associado à aprovação da PEC é a própria comercialização do plasma. “No passado, quando nós fizemos a primeira Política Nacional do Sangue e proibimos a remuneração de doação de sangue total, nós estávamos justamente tentando acabar com esse comércio. É a partir desse ponto que veio a proibição constitucional da remuneração do sangue”, comenta. 

Fernando Aith - Foto: Reprodução/Youtube

Fernando Aith – Foto: Reprodução/YouTube

Vecina Neto considera ainda que a PEC apresenta explicações para existir, contudo, a forma como o projeto foi elaborado não será positivo para sustentar o efeito terapêutico desejado — que é o aumento da oferta de plasma para o avanço da produção de hemoterápicos. “A PEC teria que ser escrita de uma outra maneira e não falar em remuneração da doação. Eventualmente, poderia falar em pagamento de alguma ajuda de custo para o doador e estabelecer limites para doações”, completa. 

Efeitos

Fernando Aith explica que um dos principais efeitos da introdução desse material na iniciativa privada seria a redução do estoque de plasma disponível para ser utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pela Hemobrás. Juntamente a esse fator estaria o encarecimento desse produto como consequência de uma disputa entre o SUS e o mercado privado, uma vez que essa matéria-prima já vem sendo disputada no mercado internacional. “Se já existem problemas de custo com a compra e a distribuição de hemoderivados no Brasil com o plasma gratuito, fruto da solidariedade para distribuição no mercado interno nacional, imagina quando isso virar uma disputa de mercado”, discorre Aith. 

Vecina Neto também considera que a proposta poderia aprofundar as desigualdades sociais, já que as doações para a iniciativa privada partiriam de pessoas que precisam receber uma remuneração pela doação de seu plasma. “O grande problema associado a esse fator é que o dinheiro seria recebido por pessoas mais pobres, que apresentam maior dificuldade de repor as proteínas que estão sendo doadas”, avalia. Assim, a aprovação do projeto parece ser positiva para quem recebe o sangue, mas não para o doador. “Quem tem recursos vai continuar tendo acesso facilitado a esses importantes insumos e produtos e quem não tem acesso ao mercado privado, que são 150 milhões de brasileiros, vai continuar dependendo dos modelos derivados distribuídos pelo SUS, que vão reduzir em quantidade”, complementa Aith. 

Gonzalo Vecina Neto - Foto: Arquivo Pessoal

Gonzalo Vecina Neto - Foto: Arquivo Pessoal

Doação de sangue - Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Com a redução do número de doadores, outro efeito que poderia ser observado nesse processo seria a redução do volume de hemácias no sistema público de saúde. Vecina Neto explica que há um debate sobre quando a transfusão de hemácias deve ser realizada, uma vez que existem pesquisas que avaliam que as doações de sangue podem produzir alterações importantes no organismo humano. Contudo, apesar da discussão que envolve esse tema, a doação de hemácias ou de sangue total deverá continuar sendo realizada por algum tempo. Assim, a PEC poderia ser prejudicial também para os casos em que há uma necessidade de reposição sanguínea por ocorrência de perda abrupta. 

Caminhos

Atualmente, o Brasil ainda depende da indústria internacional para a realização do processamento do plasma e da produção de hemoderivados, mas vem desenvolvendo uma política industrial há décadas, que apresenta como objetivo fornecer autonomia nacional nessa produção. “A Hemobrás foi criada para isso e está entrando em fase de produção. O desenvolvimento, o investimento e a ampliação da Hemobrás, ou a criação de outras indústrias nacionais voltadas ao processamento, seriam a política correta a ser adotada para melhorar esse cenário”, argumenta Aith. 

Por fim, o especialista destaca que a proibição da venda de sangue presente na Constituição Federal de 1988 apresenta como objetivo criar um ambiente de doação solidária em que o doador é bem tratado e o material é confiável para quem irá recebê-lo. “Tudo isso também tem como pano de fundo a proteção da dignidade humana para evitar que as pessoas vendam partes de si, como órgãos, tecidos e sangue para se remunerar. Não faz sentido você usar a parte do seu corpo dessa forma para ter uma remuneração para poder sobreviver “, termina o professor.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

**Sob supervisão de Moisés Dorado


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar é uma parceria da Rádio USP com a Escola Politécnica e o Instituto de Estudos Avançados. No ar, pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h e às 16h45. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.