Futebol e racismo andam lado a lado na América do Sul

Segundo Marco Bettine, a discriminação advinda de alguns dos países sul-americanos ocorre por conta da falta de autorreconhecimento da população

 06/12/2023 - Publicado há 12 meses
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No universo futebolístico, o primeiro episódio de racismo de que se tem registro aconteceu em 1920 – Fotomontagem: Jornal da USP – Imagens: Domínio Público, Domínio Público/Fotopersbureau De Boer/CC0 1.0, Domínio Público/Arquivo Nacional, Domínio Público e Domínio Público/Wikipedia
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As copas Libertadores da América e Sul-Americana colocam frente a frente times de diferentes países da América do Sul em partidas de futebol, criando um ambiente recheado de rivalidades e disputas históricas. Porém, um lado obscuro desses torneios escancara o preconceito de diferentes nacionalidades, em especial o racismo contra brasileiros.

Nesse cenário, somente até o mês de junho deste ano, foram denunciados à Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) nove casos de discriminação racial, oito desses direcionados a torcedores, jogadores e funcionários brasileiros — apenas três episódios foram penalizados. Além disso, três das ocorrências partiram de argentinos, o que evidencia o discurso de que, na maioria das vezes, a Argentina é o agressor.

Argentina: “Pedaço da Europa na América”

Em 2021, o então presidente argentino Alberto Fernández disse: “Os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros da selva, e nós chegamos em barcos que vinham da Europa”. Esse pensamento, comum em parcela da população argentina, faz-se presente diante do processo de embranquecimento e apagamento de suas raízes africanas e indígenas, que ocorreu entre o fim do século 19 e início do 20 — quando quase sete milhões de imigrantes, vindos da Itália e da Espanha, desembarcaram na região.

Marco Bettine – Foto: Arquivo Pessoal

O professor de Sociologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo Marco Bettine discorre: “Existiu a presença de escravos na Argentina, mas eles foram dizimados na guerra dos espanhóis contra ingleses no final do século 18, porque boa parte dos afrodescendentes eram engajados, obrigatoriamente, como soldados e colocados na linha de frente”. Apesar disso, uma pesquisa de 2008, realizada pela Universidade de Brasília (UnB), apontou que 31% dos argentinos possuem origem indígena e 9%, origem afrodescendente.

No universo futebolístico, o primeiro episódio de que se tem registro aconteceu em 1920, quando a Seleção Brasileira foi disputar um amistoso na Argentina e um jornal publicou uma charge intitulada Monos en Buenos Aires — “mono” é uma palavra espanhola que significa “macaco”. A comparação entre pessoas e macacos busca diminuir as capacidades das pessoas negras, ao tirar a humanidade e animalizar esse grupo de indivíduos segundo a interpretação equivocada da Teoria da Evolução, tornando-os “menos evoluídos” do que os brancos.

Outros países da América do Sul, que também sofreram com escravidão aos negros e indígenas,  utilizam-se do discurso de intolerância racial para com os brasileiros. O historiador José Murilo de Carvalho descreveu em seu livro Forças Armadas e Política no Brasil que, durante a Guerra do Paraguai, o país paraguaio caracterizava os brasileiros em seus meios de comunicação como macacos. Vale mencionar que a maioria desses países, como Venezuela, Paraguai e Bolívia, possui uma população miscigenada entre brancos, negros e indígenas.

Bettine explica que essa discriminação advinda desses países ocorre por conta da falta de autorreconhecimento da população, que conviveu, ou ainda convive, com uma ideia de país multiculturalista, com políticas de embranquecimento da nação e de apagamento da cultura e memória de nativos e negros. “Esses casos se ampliam pela falta de uma legislação mais forte, que puna de fato, e que as pessoas não façam somente por essa ideia de que podem fazer qualquer coisa para desestabilizar o adversário”, complementa.

Impunidade da entidade

A Conmebol, entidade encarregada por gerir o futebol sul-americano, é responsável por punir casos que ferem o regulamento de suas competições, entretanto, nunca foram desenvolvidas políticas efetivas para combater as ofensas racistas. Em 2022, a Federação alterou a punição a clubes e torcedores acusados de praticar racismo nos estádios, aumentando a multa mínima para US$ 100 mil e possibilitou que houvesse punição para a presença de público nos jogos.

Por outro lado, números levantados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol apontam que a discriminação racial se tornou mais frequente nos últimos anos, sendo registrados 30 casos entre o início de 2022 e agosto de 2023 — entre 2014 e 2019 foram registrados “apenas” 39. Contudo, a Conmebol ainda lida com esses casos sem lhes dar a importância devida, visto que cerca de uma a cada cinco ocorrências não são punidas. 

O professor desenvolve sobre medidas que deveriam ser tomadas para combater essa realidade: “Criar espaços de resistência articulados com os movimentos sociais negros para problematizar e criar redes de proteção às pessoas, para terem respaldo e assistência jurídico penal”. Nesse sentido, em agosto deste ano, foi anunciada uma parceria entre a Conmebol e o Observatório, com o objetivo de criar política de diversidade e conscientizar os funcionários da Confederação, além de outros projetos.

Olhar sobre si mesmo

Diante desse cenário discriminatório, o Brasil não está absolvido. O futebol brasileiro é marcado por ofensas racistas com certa frequência, especialmente quando o indivíduo convive com um contexto de fracassos.

A CBD atendeu ao pedido de Epitácio e mandou uma Seleção 100% branca ao Sul-Americano de 1921. Em campo, porém, o Brasil perdeu o torneio. À esquerda, parte do elenco da seleção de 1921; à direita, Arthur Friedenreich – Imagens: Domínio Público e Domínio Público/Wikipedia

 

Uma das primeiras evidências do racismo no futebol brasileiro aconteceu quando o presidente da República, Epitácio Pessoa, recomendou que a Seleção Brasileira não levasse jogadores negros para uma competição continental em 1921 — deixando de fora jogadores fundamentais na primeira conquista da história da seleção dois anos antes. O político sempre negou esse veto, mas suas condutas, aliadas ao fato de não ter convocado o melhor jogador da época, Arthur Friedenreich, contribuem para a veracidade dos fatos.

Somente nos anos de 1930, com a profissionalização do futebol no Brasil, os jogadores negros foram incorporados, de fato, por clubes da elite do esporte, mesmo que a discriminação ainda fosse impune pelas entidades organizadoras e pelo governo nacional.

Por fim, Marco Bettine ressalta que o racismo no futebol não é uma exclusividade praticada pelo povo argentino, todos os países sofrem com essa problemática, pois há uma estrutura social que transformou as quatro linhas em um local excludente e preconceituoso.


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