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ESPECIAL CONSCIÊNCIA NEGRA
Especialistas avaliam os mecanismos pedagógicos que podem auxiliar na aplicação da Lei 10.639/03 no currículo escolar
Avanços na implantação da legislação podem ser verificados, mas ainda há muito a caminhar em relação às estratégias pedagógicas nos currículos
Fotomontagem de Jornal da USP com imagens dos livros Mayombe, Terra Sonâmbula, Niketche - Uma História de Poligamia e Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada
Desde aquele 9 de janeiro de 2003, quando a Lei 10.639 foi promulgada, era explícito que o caminho não seria fácil. Nem tão pouco rápido e eficiente. Prestes a completar 20 anos de existência, o que acontecerá em janeiro de 2023, a legislação necessita de melhores instrumentos para a sua efetivação. As formas de inserção de conteúdos pedagógicos podem ser as mais variadas, como mostram alguns especialistas ouvidos pelo Jornal da USP.
De acordo com a professora Maria da Glória Calado, doutoranda da Faculdade de Educação (EF) da USP, houve avanços no contexto do debate público sobre currículo escolar e eurocentrismo, e nas pesquisas acadêmicas sobre o tema. “Mas em termos de efetividade no cotidiano das escolas, ainda há muito a caminhar. É muito comum depararmo-nos com projetos isolados de docentes e/ou de gestores escolares, no entanto, as redes municipais e estaduais ainda não conseguiram criar mecanismos de efetivação e fiscalização do exercício dessa política de ação afirmativa”, avalia a educadora.
Maria da Glória Calado - Foto: Arquivo pessoal
Mesmo em um cenário que a professora ainda considera reticente, ela destaca um exemplo positivo de avanço: a crescente inserção de obras literárias escritas referentes a temas e territórios africanos em vestibulares, como, por exemplo: Mayombe, de Pepetela; Terra Sonâmbula, de Mia Couto; e Niketche – Uma História de Poligamia, de Paulina Chiziane. Há também mais livros com a temática racial, a exemplo da cobrança do disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus; e Olhos d’Água, de Conceição Evaristo (que estará na Unicamp em 2025). Para a pesquisadora, “o fato de esses livros serem cobrados para o ingresso em universidades disputadas aumenta as chances de as obras serem analisadas dentro de sala de aula.”
Mudando estruturas
Para o educador Caio Cândido Ferraro, ainda que seja difícil avaliar, em nível nacional, o volume de pesquisas, ações e publicações registradas nesses quase vinte anos indica que a 10.639/03 alterou significativamente as estruturas da educação no Brasil. “O que não significa que seja suficiente para eliminar o foco eurocêntrico no qual estão alicerçadas nossas concepções de educação e, sobretudo, nosso currículo”, declarou o educador ao Jornal da USP. Caio, atualmente aluno do programa de doutorado da FE, é autor da pesquisa intitulada Religiões afro-brasileiras na escola: silenciamentos que a lei 10.639/03 (ainda) não pôde revogar, concluída em 2019. Ele também integra do Fateliku – Grupo de Pesquisa sobre educação, relações étnicos-raciais, gênero e religião da USP.
Ele destaca que, nas redes públicas da cidade de São Paulo, são raros os casos de unidades que desconhecem a referida lei, que ainda conta com o mérito de ser reconhecida por sua referência numérica, não por um nome ou apelido, como por exemplo a lei “Maria da Penha” e a lei “Caó”. A 10.639, tornou-se elemento autônomo, embora dependente de investimentos e ações direcionadas para sua efetivação. Não se trata de forma alguma de uma luta encerrada, mas de um processo permanente que garanta sua permeabilidade nas instituições de ensino.
O educador destaca que a Lei 10.639/03 é fruto de um longo percurso do Movimento Negro na busca pelo acesso à educação da população negra e seria inocente imaginar que a simples promulgação da lei encerraria essa jornada. Da mesma forma é preciso registrar e valorizar os avanços conquistados no período, sem perder de vista que ainda há muito a ser feito.
E para que os estabelecimentos de ensino apresentem melhores condições para a implementação da legislação, Maria da Glória sugere, entre outras ações, a criação e/ou fortalecimento programas governamentais com formação continuada e permanente nos horários da Jornada Especial Integral de Formação (Jeife), as quais contemplem diferentes aspectos da educação antirracista, entre eles, o rompimento com o silenciamento e com o mito da democracia racial.
Caio Cândido Ferraro - Foto: Arquivo pessoal
Há também, segundo ela, a criação de especificações, nas formações continuadas e permanentes, por meio de módulos de acordo com a faixa etária dos educandos, com parcerias com prefeituras e universidades: pedagogia antirracista para a Educação Infantil; Ensino Fundamental I; Ensino Fundamental II; e Ensino Médio. “É preciso também realizar formações específicas com gestores escolares e com os diferentes educadores dentro do ambiente escolar sobre a educação antirracista, a fim de garantir a coordenação adequada e embasada das ações para a educação para as relações étnico-raciais”, recomenda a educadora.
Iniciativas uspianas
De acordo com Maria da Glória, a USP tem buscado atuar com formação docente (tanto inicial como continuada) e com pesquisas sobre o tema. “Um dos exemplos é o grupo de pesquisa do qual participo, liderado pela professora Mônica do Amaral, da FE-USP, que realiza formação de professores e docências compartilhadas entre professores da Rede Municipal de Ensino da cidade de São Paulo, pesquisadores acadêmicos e artistas, a fim de promover uma educação antirracista ao longo do ano letivo”, conta.
Ela informa que, atualmente, o grupo está articulado com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade de Pernambuco (UPE) no programa Docências compartilhadas, formação continuada e a Lei 10.639/03: o papel das culturas urbanas em escolas públicas de diferentes regiões periféricas (CNPq/2021). “Esse é um exemplo de uma iniciativa relevante, de impacto cotidiano e que visa à superação da pedagogia de eventos, ainda tão presente quando se fala da Lei 10.639/03”, diz a educadora.
Caio Ferraro destaca dois pontos em que a USP tem atuado para garantir a aplicação da Lei 10.639: a assunção de cotas raciais em programas de graduação e pós-graduação, proporcionando o acesso de negros e negras na Universidade, que, de certa forma, exercem uma tensão sobre o que é posto enquanto conhecimento na grade curricular dos cursos e estabelecem redes de apoio, como coletivos e núcleos; a temática étnico-racial passa a compor parte das grades curriculares de diversos programas, ainda que de forma tímida. Para o educador, “o fato de a USP não representar uma vanguarda nos dois pontos elencados diz muito sobre quão longa é a jornada de efetivação da Lei 10.639/03.”
“Toda e qualquer prática pedagógica pode estar relacionada ao ensino da cultura africana e afro-brasileira. No entanto, como todos os hiatos na formação dos educadores, é necessário investimento crescente em formação nas diversas áreas do conhecimento”, acredita Ferraro.
Avaliando práticas pedagógicas
No ano de 2009, os pesquisadores Rodrigo Ednilson de Jesus e Nilma Lino Gomes, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) organizaram a pesquisa As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa, com o objetivo de analisar as iniciativas públicas tomadas após a implementação da Lei 10.639 em 2003.
O artigo selecionou 36 escolas, para estudos de caso, que implementam ações e práticas pedagógicas em consonância com a Lei 10.639, por meio de indicações do Prêmio Ceert (que apoia práticas pedagógicas de combate ao racismo e valorização da diversidade étnico-racial), Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Neabs) e as secretarias estaduais e municipais de Educação. A pesquisa foi feita de fevereiro a dezembro de 2009.
Um dos aspectos observados no artigo é que, muitas das escolas que foram selecionadas para a pesquisa, e que haviam ganho o Prêmio Ceert, não prosseguiram as ações premiadas. Isso revelou a descontinuidade das práticas educativas na perspectiva da igualdade racial. Outro fator revelado foi que havia muitos docentes que desconheciam a Lei 10.639, ou a conheciam de modo superficial ou, ainda, acreditavam ser apenas uma imposição do Estado, uma “lei dos negros”.
Além disso, o estudo constatou que, em muitas escolas, a prática da Lei 10.639 estava centrada nas datas comemorativas, como a Semana da Consciência Negra. No entanto, o artigo concluiu que, nas escolas em que existiam projetos significativos de educação racial, assim como um contexto afirmativo e processos democráticos de gestão, a lei pôde ser melhor aplicada e sustentada. Por fim, na época, a análise revelou que não há uma uniformidade no processo de implementação da Lei, mas que existe um movimento afirmativo encaminhado, que se mostra permeado de tensões, avanços e limites.
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