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Estudo analisou os usos dos arquivos pessoais da poetisa Lupe Cotrim Garaude e da escritora de livros infantojuvenis Odette de Barros Mott - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Marcos Santos/USP Imagens e Wikipedia
Entre cartas, diários e rascunhos: como dar mais visibilidade aos arquivos literários femininos?
Pesquisadora chama atenção à falta de recursos para divulgação; direção do Instituto de Estudos Brasileiros quer investir em formação para promover diversidade
Ter um arquivo pessoal custodiado por uma instituição especializada pode ser considerado uma forma de consagração de um escritor ou escritora que já faleceu. Contudo, o reconhecimento acaba sendo limitado quando poucos pesquisadores se interessam pelos documentos que compõem seu arquivo. Investigando os usos e usuários dos arquivos literários presentes no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, a pesquisadora Bruna Pimentel encontrou dois casos de arquivos pessoais de mulheres escritoras que enfrentam esse problema. São os arquivos da poetisa Lupe Cotrim Garaude e da escritora de livros infantojuvenis Odette de Barros Mott.
Bruna Pimentel, doutoranda em Ciências da Informação na Universidade de Brasília (UnB), e a professora Diana Vidal, da Faculdade de Educação (FE) da USP, são autoras do artigo Os usos e usuários de arquivos literários femininos: uma análise a partir dos acervos custodiados pelo Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), veiculado na mais recente edição (número 34) da Revista CPC, publicação semestral do Centro de Preservação Cultural da USP – Casa de Dona Yayá. A oportunidade de Bruna pesquisar o acervo do IEB surgiu durante um curso de aperfeiçoamento em Patrimônio Documental, oferecido pelo instituto. Essa participação resultou no artigo em coautoria com a professora Diana, ex-diretora do IEB.
Mas a principal limitação do estudo foi imposta pela pandemia. Segundo Elisabete Marin Ribas, do Serviço de Arquivo do IEB, as medidas de distanciamento social acabaram por reduzir as possibilidades de consulta durante o período. “Durante a pandemia, existia um protocolo de segurança do acervo onde a equipe precisava vir em escalas e manter controles que são muito rigorosos. Então, todo esse cuidado com o acervo, num momento em que a gente foi limitado ao ir e vir, foi também limitador, a meu ver, na coleta de dados”, pondera Elisabete, que é também doutoranda em Ciência da Informação na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e integrante da Rede Arquivos de Mulheres. Ela não participou da pesquisa, mas chegou a atender Bruna durante a coleta de dados.
Poucos estudos sobre Odette e Lupe
Segundo dados do Serviço de Arquivo do IEB, cerca de 40% dos arquivos pessoais custodiados pela instituição são femininos. Alguns, como o de Tarsila do Amaral, estão entre os mais procurados por pesquisadores. Porém, a pesquisa de Bruna Pimentel observa que, entre aqueles arquivos pessoais pertencentes a escritoras e escritores que entraram no cânone literário, os de Odette e Lupe foram estudados por um número reduzido de pesquisadoras, dando origem a pouco mais de dez produções científicas, incluindo livro, artigos, teses e dissertações.
“Por que esses acervos de mulheres estão sendo tão pouco pesquisados em relação a outros acervos de grandes escritores, como Mário de Andrade e Graciliano Ramos? Eu mesma não sabia da existência desses arquivos até realmente pesquisar e aí entender a importância delas”, questiona Bruna, que no doutorado estuda os acervos de arquivos literários da Fundação Casa de Rui Barbosa e do Instituto Moreira Salles (IMS).
A pesquisadora afirma que o perfil das usuárias desses arquivos pessoais é sinal de pouca diversidade. “Quando me deparei com os dados que eu localizei durante a pesquisa, [vi que] a primeira peculiaridade é que eram mulheres que pesquisavam sobre mulheres e, sobretudo, mulheres que têm formação em Letras”, conta Bruna. Outra peculiaridade encontrada é que a maior parte dessas produções guarda relação com algum trabalho realizado por suas autoras dentro do IEB – é o caso da jornalista Leila Gouvêa, que participou da organização e catalogação do acervo de Lupe Cotrim durante seu pós-doutorado no IEB.
Para a pesquisadora, os dados reforçam a importância de que instituições como o IEB invistam mais na divulgação de seus acervos, de forma a atrair mais pesquisadores, inclusive de outras especialidades e universidades. Ela reconhece que os arquivos públicos brasileiros contam com recursos limitados para divulgar e promover seus acervos, ao contrário do que ocorre com instituições privadas. Cita o caso do IMS, que detém a guarda de apenas dois cadernos de Carolina Maria de Jesus, mas promove exposições sobre o material com frequência. Por outro lado, a maior parte do arquivo literário de Carolina está na cidade de Sacramento (MG), onde sofre com as más condições de conservação, conforme noticiado recentemente pelo site jornalístico Nós, mulheres da periferia.
Caderno nº 11 (Manuscrito) de Carolina Maria de Jesus escrito em 4/12/1958 e 19/12/1958 - Fotos: Reprodução/Biblioteca Nacional
Os limites do cânone literário
Bruna trabalha com uma categoria de arquivo pessoal que ela chama de arquivo literário. É uma categoria que reúne documentos que qualquer pessoa produz e acumula durante sua vida, como diários, fotografias e correspondências, mas também documentos relacionados à criação literária de seu autor. “Esses documentos que compõem os arquivos literários, do ponto de vista científico, são importantes porque possibilitam os estudos sobre crítica genética e também muitas vezes subsidiam as produções biográficas sobre esses escritores ou escritoras”, explica a pesquisadora.
Fazendo um contraponto, a professora e atual diretora do IEB, Sônia Salzstein, problematiza o recorte da pesquisa. Ela questiona a escolha das coautoras do artigo por deixar de fora o arquivo pessoal de Aracy Amaral, que inclui uma vasta produção ensaística relatando as marchas e contramarchas do meio artístico. Sônia sugere, inclusive, que as cartas de Tarsila do Amaral, também preservadas no arquivo do IEB, poderiam ser utilizadas como fonte relevante de pesquisas sobre a literatura paulista.
A diretora alerta para o fato de que as pesquisas com arquivos refletem a seletividade do meio tradicionalmente branco e masculino da intelectualidade paulista. Isso significa que, ao longo do tempo, muitas autorias femininas e não brancas acabaram sendo invisibilizadas pelas escolhas que consagraram o cânone da literatura.
“Aquilo que tradicionalmente se entende pelo cânone literário não dará conta da produção de autoras mulheres presentes nas coleções do IEB, que são mantidas nos três repositórios, no arquivo, na biblioteca e na coleção de artes. Nós temos uma coleção, por exemplo, com autores anônimos, com autoras de tradição popular”, conta Sônia, lembrando ainda dos livros das abolicionistas Júlia Lopes de Almeida e Maria Firmina dos Reis, que integram o acervo da biblioteca do instituto.
Diferentemente do IMS e suas exposições para o grande público, a gestão atual do IEB entende que sua maior tarefa de divulgação no momento é promover o acervo por meio da formação de pesquisadores, criando políticas de acesso para jovens negros e de baixa renda que tenham interesse em estudar e trabalhar com o acervo do IEB. A construção dessas políticas, diz Sônia, tem levado às interseções de aspectos de classe, raça e gênero. A ideia é que a inclusão pela formação leve jovens pesquisadores a interrogarem o acervo do IEB sob perspectivas mais diversas.
Cerca de 40% dos arquivos pessoais custodiados pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) são femininos- Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Conheça algumas das mulheres cujos arquivos pessoais estão no IEB
Tarsila do Amaral (1886-1973)
A artista plástica modernista Tarsila do Amaral nasceu em Capivari, interior de São Paulo, e iniciou seus estudos de pintura na capital paulista. Depois, estudando em Paris, aderiu à Escola Cubista. Em 1922, formou o “grupo dos cinco” com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Sua famosa tela Abaporu inaugurou sua fase artística “antropofágica”, com características surrealistas. Realizou suas primeiras exposições individuais no Brasil em 1929 e continuou produzindo até o fim da vida.
O arquivo pessoal de Tarsila no IEB guarda correspondências, fotografias, postais e outros materiais. Também contém crônicas escritas pela artista.
Lupe Cotrim Garaude (1933-1970)
Lupe foi apelido de infância antes de ser o nome artístico da poetisa paulistana Maria José Cotrim Garaude Gianotti. Fez graduação em Cultura Geral e Biblioteconomia, no Sedes Sapientiae, e em Filosofia, na USP. Lançou seu primeiro livro de poemas, Monólogos do afeto, em 1965 – mesmo ano em que conheceu Pablo Neruda, durante uma viagem ao Chile. Dois anos depois, ingressou como professora na ECA, onde ainda hoje o centro acadêmico leva seu nome. Seu livro Poemas ao outro recebeu o prêmio Governador do Estado em 1969. Outros destaques de sua obra são a coletânea Cânticos da terra e O poeta e o mundo.
A família de Lupe Cotrim doou seu acervo ao IEB em 2007. O fundo contém 1.108 documentos, que incluem correspondências trocadas com Neruda, Ruth Cardoso, Menotti del Picchia e Carlos Drummond de Andrade.
Odette de Barros Mott (1913-1988)
Nascida em Igarapava, no interior de São Paulo, Odette foi uma das mais populares escritoras de livros infantis e juvenis no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Publicou seu primeiro livro em 1949 e, a partir daí, passou a produzir continuamente – tanto é que deixou uma obra com mais de 80 títulos. Foi pioneira na abordagem de temas realistas para adolescentes. Recebeu o Prêmio Monteiro Lobato, da Academia Brasileira de Letras, e a menção honrosa do Prêmio Internacional Hans Christian Andersen, considerado “o Nobel da literatura infantil”. Alguns de seus livros mais conhecidos são E agora?, Os dois lados da moeda e Decisão de amor.
A família de Odette cedeu seu arquivo pessoal ao IEB em 2002. O acervo é composto de quase 10 mil itens e ainda não foi totalmente processado. Contém documentos pessoais e profissionais, manuscritos de suas obras e uma ampla correspondência com leitores, professores, escritores e editores. Trata-se de um material que ajuda a entender não só os caminhos trilhados por Odette ao longo de sua carreira literária, mas que também é promissor para iluminar os bastidores da literatura infantojuvenil brasileira na segunda metade do século 20.
Aracy Amaral (1930-)
Pesquisadora do Modernismo brasileiro, Aracy Abreu Amaral é professora, crítica de arte, curadora, historiadora da arte, arquiteta e jornalista. Mergulhou no mundo das artes plásticas aos 21 anos, quando visitou a 1ª Bienal de São Paulo. Na época, ela ainda era estudante de jornalismo. Após se formar, continuou os estudos no mestrado em Filosofia e no doutorado em Artes na USP. Trabalhou na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, onde foi diretora técnica de 1982 a 1986. Deu aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. É autora de diversos livros, entre os quais Arte para quê? A Preocupação Social na Arte Brasileira e A Hispanidade em São Paulo – este, vencedor do prêmio Jabuti em 1982.
O acervo da professora Aracy foi doado ao IEB em 2016 e organizado em parceria com o Itaú Cultural. Reúne mais de 15 mil documentos, que vão desde anotações de seus trabalhos de curadoria a pareceres de trabalhos acadêmicos que avaliou e artigos de jornal que publicou. O arquivo inclui, ainda, desenhos e manuscritos do livro infantil O macaco e o elefante.
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