Moscas no shitake: infestação rende avanços no conhecimento da biologia

Pesquisadora precisou orientar produtor para não matar inseto, em descoberta que trouxe avanços em conhecimentos taxonômicos e ecológicos

 Publicado: 20/01/2025 às 8:00     Atualizado: 27/01/2025 às 16:03

Texto: Beatriz La Corte*

Mulher olhando um inseto através de um microscópio. Ela está com o cabelo preso no topo de sua cabeça e veste uma jaqueta jeans

Antes do trabalho de Mayara, o último grande estudo sobre moscas Zygothrica havia sido publicado em 1987 – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em fevereiro de 2024, a pesquisadora Mayara Ferreira Mendes, do Museu de Zoologia (MZ) da USP, foi contatada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para identificar qual era o  gênero de moscas que havia infestado uma cultura de cogumelos shitake no Paraná. O produtor procurou a Embrapa para se livrar dos animais que haviam destruído a sua plantação. Por sua especialidade, a empresa enviou a amostra para a cientista, que identificou, a partir da anatomia, a existência de diferentes espécies ainda não reconhecidas do seu gênero de estudo. Era o primeiro registro de infestação de Zygothrica do mundo. 

A pesquisadora explica que, após identificação, a prioridade imediata era conversar com o produtor para não matar os insetos. Ela informa que a Zygothrica é endêmica – ou seja, está restrita a uma região específica – e que eliminá-la implicaria em reduzir uma porção significativa do gênero e afetar a biodiversidade daquele ecossistema.

“Não é como se elas tivessem invadido um espaço que não é delas. Nós, seres humanos, estamos avançando para um território que não é nosso” – Mayara Ferreira Mendes

A cientista indicou uma rede de malha fina para proteção da cultura e assim, nem os produtores rurais e nem o ecossistema foram prejudicados. Essa técnica já é reconhecida para o controle de Drosophila suzukii, inseto da mesma família que a Zygothrica. Além das conversas com o cultivador, Mayara fez diversos registros fotográficos e de descrição. “Nos ecossistemas, existem interações que a gente nem imagina e que afetam a dinâmica do ambiente. Por isso, sempre que observamos alguma relação nova, é importante fazer um registro de qualidade”, diz a pesquisadora.

Museu de Zoologia (MZ) da USP abriga a maior coleção de Diptera (ordem da Zygothrica) da América Latina – Foto: Cecília Bastos/ USP Imagens

A pesquisa faz parte de uma série de artigos publicados este ano. O trabalho May we improve trapping of drosophilid species (Insecta, Diptera)? A review of sampling protocols in Brazilian biomes apresenta uma padronização de técnicas de coleta para comunidades de Drosophilidae, com o objetivo de tornar mais efetivo a captura de determinados grupos de espécies. 

 O segundo artigo, intitulado Living fruits of Psychotria brachyceras Müll. Arg. (Rubiaceae) as the main larval host of Zygothrica orbitalis (Sturtevant, 1916) (Diptera, Drosophilidae), apresenta uma descoberta: frutos de Psychotria brachyceras servem como hospedeiros para larvas de Zygothrica orbitalis (espécie que nunca havia sido encontrada emergindo de recursos). 

Em sua área de estudos, Mayara Mendes aponta que não havia muitos especialistas, padronizações de armadilhas, catálogos com fotos e descrições das espécies e decidiu dedicar-se a esse trabalho. “Nós queremos fortalecer as informações sobre esse gênero para que ele possa ser um indicador biológico mais eficiente no futuro”, diz a cientista. 

O estudo se comprometeu em produzir registros em cor, que são defasados na área de estudo – Imagem:  cedida pela pesquisadora

Um mundo de insetos: qual a importância desses animais?

A restauração ambiental é uma das grandes pautas da comunidade científica. Para a pesquisadora, como os insetos são maioria em diversos ambientes, esses animais devem ser prioridade no estudo dos ecossistemas brasileiros. 

“As pessoas costumam olhar para animais maiores, que são muito importantes, mas a gente precisa investigar também os insetos, que ligam diversos elementos da cadeia alimentar e, geralmente, são predominantes nos espaços”, afirma a cientista. Para exemplificar essa importância, ela aponta que a maioria das aves do mundo são insetívoras (se alimentam de insetos). 

Em relação à Zygothrica, a pesquisadora explica que por estar restrita a uma região, o gênero apresenta um potencial bioindicador – ou seja, o estudo desses insetos pode apontar informações sobre a qualidade ambiental de um ecossistema. Os animais endêmicos são mais sensíveis a mudanças em seus habitats e com o monitoramento dessas populações, cientistas podem avaliar o equilíbrio ecológico e prever possíveis impactos.

De degrau em degrau

Mayara Mendes explica que o declínio de insetos é uma grande preocupação científica e aponta as mudanças climáticas como uma das causas do fenômeno. “A Zygothrica tem preferência alimentar por fungos. Com as frequentes secas e chuvas intensas, a tendência é que essa fonte alimentar suma”, diz a especialista. Ela aponta questionamentos sobre o que pode acontecer com esses ecossistemas no futuro: essas espécies vão ser extintas? elas vão migrar para outro local? se isso acontecer, elas vão competir com outros animais que já consumiam aquele recurso?

A pesquisadora  brinca que o trabalho científico é como subir uma escada – acontece de degrau em degrau, com muita paciência. Ela comenta que é preciso  avaliar como a Zygothrica afeta os ecossistemas brasileiros, através de ferramentas como modelagem de distribuição e análise da diversidade funcional do grupo. Para Mayara, ainda existe um longo caminho a ser percorrido para a ciência chegar nesse ponto da investigação. “A gente só consegue responder perguntas grandes se a gente faz a ciência básica, que começa na descrição do grupo”, afirma a especialista.

A cientista foi uma das selecionadas no edital de pós-doc da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP (PRIP) para pessoas negras. Ela recebeu uma bolsa para dar continuidade ao estudo do gênero Zygothrica. O artigo First record of Zygothrica Wiedemann, 1830 (Diptera: Drosophilidae) species infesting shiitake mushrooms (Lentinula edodes (Berk.) Pegler) on a log farm in the Atlantic Forest, Brazil está disponível on-line e pode ser lido aqui

Mais informações: e-mail ferreiramendesmayara@gmail.com

*Estagiária com orientação de Fabiana Mariz


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