Sonho, luto e memória se encontram em exposição do Centro MariAntonia da USP

“Onze Horas”, de Juan Casemiro, explora as experiências pessoais e as interpretações por trás do afeto. Mostra vai até o dia 2 de junho

 Publicado: 09/05/2024     Atualizado: 14/05/2024 as 17:18

Texto: Ricardo Thomé*

Arte: Joyce Tenório**

Sonho, luto e memória se encontram em exposição do Centro MariAntonia da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O Centro MariAntonia exibe desde o dia 5 de abril a exposição Onze Horas, do artista Juan Casemiro. A proposta da exposição, que tem curadoria de Julie Dumont e Daniela Avellar, é reunir obras que o artista produziu nos últimos quatro anos a partir de objetos do cotidiano e que se relacionam diretamente às suas memórias e relações de afeto, especialmente com seu pai. Onze Horas está em cartaz até o dia 2 de junho, de terça a domingo, das 10 às 18 horas, no Centro MariAntonia.

As obras: o sonho, o luto e a memória

onze horas (2022) foi feita a partir do uso de esmalte sintético sobre um pedaço de madeira encontrado pelo artista-autor e é o símbolo máximo da exposição homônima — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O título da exposição nasce, segundo o artista, de um “sonho-memória” que teve com seu pai, falecido em 2011. “Nós dois estávamos andando a cavalo, o sol estava se pondo e o céu estava colorido, diferente do normal. Até que eu disse para o meu pai que queria que aquele dia nunca acabasse. Aí meu pai disse que tinha como: pegou uma caneta que ele tinha e desenhou no meu braço esse relógio cuja numeração só ia até 11. E aí era isso: se nunca chegar meia-noite, o dia nunca vai acabar.” Na exposição, o sonho de Juan Casemiro acaba por se materializar em um relógio com 11 marcações, em referência ao dia que só iria até as 11 da noite.

À direita de onze horas, está uma trena de madeira acoplada a uma mangueira de incêndio enrolada, o que também remete à ideia de circularidade e à imagem do relógio. O artista explica que o trabalho, chamado de le montre de mon père (“o relógio do meu pai”, em tradução literal), também destaca o fato de que a trena mostra números que vão muito além dos que o relógio pode mostrar.

Em seguida, o visitante se depara com uma obra feita com  pregos tortos e pintados com tinta branca sobre um pedaço de madeira. Atrás dos pregos, há desenhos feitos com a haste de trás do martelo. “Os pregos tortos, diferentemente daqueles que estão soltos, estão cristalizados, como se fosse sua última chance. É dolorido, mas também delicado e feliz, como uma lembrança saudosa.” A obra tem um título extenso que representa uma mensagem do autor para o pai.

Juan Casemiro, mestre em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP — Foto: Arquivo pessoal

O visitante que segue por esta parte da exposição encontra quatro obras diferentes, mas que têm em comum o simbolismo que carregam. A primeira, tu corazón, mi corazón, é uma lona laranja semelhante a uma bandeira com as inscrições que lhe dão nome. “Sonhei que fiz um exame cardiológico e que estava contando para o meu pai a respeito. Estava preocupado, mas ele me disse que eu não morreria do coração porque tinha coração bom”, relembra o artista, que é mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). O nome também teve origem na música Dos Corazones, da argentina Verónica Condomí: indicada por um amigo de Casemiro que vive em Buenos Aires, a canção “fala que tem um coração que bate aqui e outro que bate lá embaixo do mar”.

Ao lado da bandeira, está herança, um trabalho feito a partir dos papéis que o autor encontrava na carteira de seu pai, que acompanha outro trabalho, toada II — uma série de listas telefônicas. “As listas telefônicas são exatamente o que ele nunca teve, porque achava mais fácil levar algo que coubesse no bolso”, conta Casemiro.

O quarto elemento do núcleo é vinte e nove de abril, um trabalho feito com uma mangueira de incêndio e um pedaço de ferro encontrados na rua. O título se deve à presença do número 29, inscrito na mangueira, o que remete à data de falecimento do pai do artista.

A próxima parede é aquela em que o sol se põe, o que Casemiro explica ser a razão pela qual todas as obras que nela aparecem se relacionam ao sol. A primeira é relógio de sol. Feita com um pedaço de lata de formato quadrado, o trabalho remete à própria sala da exposição e é iluminado de formas diferentes com o passar do dia. A segunda é um conjunto de obras mais antigas do autor, chamadas de concretinho I e de concretinho IV. Feitas com argamassa sobre tela, seu desenho lembra a contagem dos dias e a repetição.

A seguir, está se sair lá, eu faço lá, se sair aqui eu vacino aqui, um trabalho feito sobre uma embalagem de goiaba que a avó de Casemiro lhe deu, durante a pandemia de Covid-19. Ele pintou a embalagem com uma coloração laranja, remetendo ao sol se pondo. O título se conecta a uma conversa que eles tiveram sobre a vacinação. Fechando a parede, aparece ouro breve (l’étranger XXIII), um conjunto de metros de madeiras comprados em mercados de pulgas em Bruxelas, Bélgica, ao longo de 40 dias. O conjunto, segundo o artista, “tem relação com o solar, com o sol decrescendo e com as mudanças nos tons de amarelo”.

A última parede da exposição começa com étranger (autoretrato), que significa “estranho” ou “estrangeiro”, e é feita a partir de perfurações sobre um pedaço de madeira em diferentes intensidades, o que dá à obra uma aparência de “céu estrelado”, na visão do artista. Em seguida, aparece para quando você lembrar de alguém que ama (para m. v.), que consiste em pregos sobre telas. A ideia do trabalho é que o visitante passe a mão sobre os pregos.

Uma televisão de tubo com uma tela branca por cima, levar meu pai para conhecer o mar, fecha a parede. A TV capta ondas de rádio sem muita exatidão, liberando um ruído que, para Casemiro, “se parece um pouco com o barulho do mar”. Além disso, ele destaca que o pixelado da tela também pode lembrar as ondas do mar. A curadora Daniela Avellar observa a relação entre o natural e o urbano, tanto na obra como na exposição, já que, ao mesmo tempo em que se valem da cidade ou de elementos urbanos como a televisão, também remetem a questões naturais, por meio dos sons ou das relações criadas com a natureza, como no caso do mar.

Por fim, há duas obras no centro da sala: uma mangueira de incêndio presa com arame, cujo título também é uma longa mensagem do autor para seu pai, e um conjunto de pedaços de gesso encontrados em uma caçamba sobre um tubo de alumínio — sem título.

obra com título em formato de mensagem (2021) e sem título (2021) — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Reflexões artísticas

Indagado a respeito da mensagem que deseja passar por meio de suas obras, Casemiro é bem claro ao dizer que não pretende trazer um direcionamento específico, e que a interpretação deve ficar a cargo do visitante. “Queria que as pessoas vissem os trabalhos e tentassem, primeiro, interagir com eles, imaginar algo que se relacione às suas vidas…não tem uma instrução.” Ele explica que essa é a razão pela qual as legendas das obras estão, de certa forma, “escondidas” na exposição.

Um dos exemplos citados pelo artista quanto às diferentes interpretações possíveis é o da violência e do radicalismo. “Alguém pode olhar para o prego e sentir vontade de tocar, ou de não tocar porque considera ofensivo. Os cacos presos à mangueira, pelo processo necessário para ficarem nesse estado, também podem ser violentos”. A curadora Daniela Avellar conta que foi ela quem, em uma conversa com Casemiro, levantou a hipótese de que havia, por trás daquelas obras, uma certa violência. “Mas é uma violência que tem uma beleza”, ressalta o autor.

Daniela Avellar (foto) é curadora de "Onze Horas" ao lado de Julie Dumont — Foto: Arquivo pessoal

Casemiro revela que, no início da exposição havia, no quadrilátero sobre o qual estão a obra com os cacos e a mangueira pendurada, um espelho d’água que, por questões sanitárias relacionadas principalmente à epidemia de dengue, foi removida. “O papel da água nessa obra tinha a ver com uma memória que está evaporando. Você conseguiria ver a exposição e todos os objetos, as obras. Quando você olhava para o espelho, você via as obras de uma outra forma, como em um sonho.”

O artista acredita que o espelho d’água trazia uma “força maior” para as reflexões diante de suas obras — Foto: Edouard Fraipont

Ainda no que se refere aos sonhos, Casemiro comenta que o sonho que originou a exposição simbolizou um ponto de virada na sua relação com o luto pela morte de seu pai: “À medida em que o tempo foi passando, a imagem física do meu pai foi desaparecendo da memória. Mas no sonho é o contrário: ainda consigo ver meu pai e senti-lo. E depois disso [sonho das 11 horas], passei a sonhar que estava contando coisas que estavam acontecendo agora”. Ele também ressalta que mesmo os sonhos com o pai passaram por uma transformação: “No começo, sonhava que ele não tinha morrido, por exemplo. É uma confusão, uma fantasia”.

Para Daniela, a obra de Casemiro tem como importante vetor o afeto: “E não um afeto qualquer: é um afeto que passa pelo cotidiano dele e isso vai ao encontro de grande parte da materialidade que o Juan usa na sua produção. É um trabalho muito carregado de memória. É uma narrativa de fantasia de criança.” Em termos técnicos, a curadora define a exposição como “minimalista” e “circular”. “Tem uma economia de gestos, um olhar implicado, urbanista e que simboliza as trocas feitas pelo sujeito que vive os afetos da cidade”. Ela também acredita que haja uma “economia de cores” na exposição, e destaca os largos espaços em branco entre uma obra e outra nas paredes: “São intervalos, respeitos, espaços de silêncio, o que também é uma investida minimalista”.

Conversa com autor e curadoras

No sábado (11), às 15 horas, haverá uma conversa no local da exposição que contará com a presença de Juan Casemiro, Julie Dumont e Daniela Avellar. Daniela diz que o evento não tem um cronograma específico, pois a ideia é “escutar as pessoas a partir de suas impressões, territorialidades e experiências de vida próprias”. A curadora completa: “O público pode esperar se ver intrigado. O Juan quer agregar ainda mais camadas à memória pessoal de cada um, para que todos nos lembremos dos momentos em que algum de nós quis parar o tempo porque aquilo que estávamos vivendo era muito bom”.

Segundo Casemiro, um retroprojetor será ligado no sábado atrás de uma das portas da sala onde está localizada Onze Horas, no que só acontece em “dias de ativação”, como conta o artista-autor: “Ele projeta copinhos de cachaça ouro, na ideia de exposição e de evaporação diante do sol”.

Post convocatório para a conversa que ocorrerá no próximo sábado (11), na exposição — Foto: centromariantoniausp/Instagram

A exposição Onze Horas, do artista Juan Casemiro e com curadoria de Julie Dumont e Daniela Avellar, está em cartaz desde o dia 5 de abril até o dia 2 de junho, com visitação de terça a domingo e feriados, das 10h às 18 horas no Edifício Joaquim Nabuco do Centro MariAntonia da USP, localizado na Rua Maria Antônia, 258, Vila Buarque, região central de São Paulo, próximo às estações Higienópolis-Mackenzie e Santa Cecília do metrô. Entrada grátis. Mais informações estão disponíveis no site do Centro MariAntonia ou pelo telefone (11) 3123-5202.

* Estagiário sob supervisão de Marcello Rollemberg
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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