“Sagarana”, livro exigido pela Fuvest, aponta os caminhos de Rosa

A busca do escritor entre as narrativas clássicas e a literatura de seu tempo está nos nove contos da obra

 09/10/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 17/01/2022 as 18:40
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Em “Conversa de bois”, o penúltimo conto de Sagarana, os animais falam e raciocinam – Foto: Cecília Araujo de Oliveira

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Sagarana
, de João Guimarães Rosa, tem muitos motivos para estar entre as leituras obrigatórias da Fuvest. É a primeira obra publicada do escritor mineiro, em 1946, que apresenta e inicia os estudantes no universo de um  sertão marcado pela lei do mais forte, pela busca da vingança e pela traição. E, ao mesmo tempo, remete o leitor a um universo mítico-religioso de tradição clássica. O desafio de Guimarães Rosa é encontrar caminhos para aliar as mitologias afro e indígena à mitologia grega. E narrar, ao mesmo tempo, a realidade do sertão e o encantamento do sertanejo.

“Esse é um livro fundamental para quem quiser se iniciar na literatura de Guimarães Rosa”, orienta Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, professor de Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Sagarana é um livro de experiências. O autor está buscando caminhos e tem uma ambição literária muito grande. Em cada uma das nove histórias ele experimenta um tipo de narrativa diferente. Desde os modelos narrativos da grande tradição literária, como os do romance greco-romano, das fábulas medievais, da sátira e da picaresca, até os da literatura mais moderna de seu tempo.”

O professor Luiz Roncari: pesquisa sobre a obra de Guimarães Rosa resultou em vários livros – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

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Roncari vem pesquisando Guimarães Rosa há três décadas, trabalho que já resultou em vários livros, como O Brasil de Rosa – O Amor e o Poder e O Cão do Sertão, ambos editados pela Editora Unesp; Buriti do Brasil e da Grécia – Patriarcalismo e Dionisismo no Sertão de Guimarães Rosa, da Editora 34; e O Brasil de Rosa II – Lutas e Auroras, no prelo, da Editora Unesp. Em entrevista ao Jornal da USP  (veja também o vídeo abaixo), o professor orienta sobre a leitura de Guimarães Rosa. “É importante que o vestibulando leia com muita atenção. Quando não entender, não passe batido. Recorra aos dicionários, em especial ao Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, da Edusp (Editora da USP). Guimarães pensa e explora as possibilidades de cada palavra, buscando tanto os seus sentidos mais arcaicos como os possíveis, virtuais. Cada palavra é como um desafio a ser enfrentado. Diante de um termo mais estranho, o leitor deve sempre se perguntar por que ele usou esse e não outro, mais comum.”

Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos germânicos e rana é um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”.

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Guimarães, de certo modo, procurou sintetizar também a luta pela formação de uma nação no título do livro. “Sagarana é uma palavra composta. Saga vem dos mitos germânicos e rana é um sufixo tupi-guarani. Quer dizer semelhante, parecido com”, explica Roncari. “Ou seja, são histórias que parecem com uma saga. Mas não são sagas. Guimarães Rosa explora as possibilidades literárias de diferentes tipos narrativos, e está contando também uma espécie de formação do Brasil, tendo como um elemento marcante a violência. Ao mesmo tempo que tem uma pretensão de fazer uma literatura grande, universal, ele reflete o lugar onde nasceu e viveu, o da sua experiência.”

Ilustração de Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido por Poty, para Sagarana – Foto: Reprodução

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O professor lembra que, para chegar à universalidade, “Guimarães Rosa sabia que precisaria passar pela sua particularidade, que é o regional e o nacional, o sertão ou o mundo de sua experiência”. Roncari explica que a primeira versão de Sagarana é de 1937. “Porém, o livro foi publicado só  nove anos depois, em um tempo em que estudiosos como Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Oliveira Vianna se perguntavam se o Brasil iria dar sertão ou civilização. Um questionamento que já começou nos anos 1920 e se estendeu até os anos de 1960.”

Guimarães Rosa, ao contrário de Graciliano Ramos, resistiu ao regionalismo crítico e social que vinha sendo o dominante desde os modernistas. “O Modernismo rompeu com o Parnasianismo, o Simbolismo. A meta era uma literatura que focasse a originalidade brasileira. O escritor, no entanto, não queria uma ruptura, e sim uma literatura que pudesse, ao mesmo tempo que a modernização, integrar também as antigas tradições. Não era um sujeito de exclusão.”

Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução

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Roncari deixa clara, no entanto, a importância do movimento. “Os modernistas tiveram a grandeza, a generosidade de procurar entender e incorporar a cultura popular, principalmente a negra. Eles valorizaram a dança, a religiosidade, como o candomblé, o canto e o artesanato.”
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Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, tinha a esperança de que o Brasil pudesse vir a se constituir num espaço institucional civilizado.”

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Sagarana
traz o desafio de relatar as agruras do cotidiano do sertão, mas, ao mesmo tempo, seus sertanejos são construídos com a referência da mitologia clássica. “Eles têm um elemento empírico, histórico, e um mitológico que enobrece o personagem”, observa Roncari. “Guimarães Rosa faz uma crítica à vida e à sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo, tem esperança de que o Brasil possa vir a ser também algo civilizado.”

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Sagarana
começa a sua travessia com “O burrinho pedrês”, que, segundo descreveu o próprio Rosa, nasceu de um acontecimento real passado em sua terra, com o afogamento de um grupo de vaqueiros num córrego cheio.

Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual. Agora, porém, estava idoso, muito idoso.

Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução

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No primeiro parágrafo, está a arte de contar de Rosa, resgatando as narrativas tradicionais. “Os boiadeiros seguem contando casos e histórias, como os peregrinos de The Canterbury Tales, de Chaucer”, explica. “O leitor, junto com os casos contados, acompanha também um outro incubado na comitiva, o de um boiadeiro que quer matar outro por ter roubado a sua namorada. Um caso de vingança está para ocorrer ao longo do percurso. Uma violência está sempre prestes a explodir, como nas demais histórias.”

Ilustração de Poty para Sagarana – Foto: Reprodução

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O leitor segue com “A volta do marido pródigo”, a história de um mulato que abandona o trabalho, negocia a mulher e vai para o Rio de Janeiro. “Sarapalha” mostra uma região devastada pela malária, onde dois primos padecem da doença e da solidão e brigam por serem apaixonados pela mesma mulher. A vingança e a traição também estão em “Duelo, com a história de Turíbio, que surpreende a mulher, Silvana, com o ex-militar Cassiano. Só que, por engano, ele mata o irmão desse amante. “Minha gente” é uma história de amor em primeira pessoa movimentada pelo clima das eleições.
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Um homem erudito vivendo a experiência de um mundo onde impera a superstição e a crendice.”

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A travessia pelo sertão continua com “São Marcos“. “Comecei a estudar Sagarana por esse conto a que ninguém dava muita importância”, diz Roncari. “Rosa fez e refez essa história. Tem uma característica importante: o autor é também o narrador e o personagem.”

Capas de diferentes edições do livro de contos de Guimarães Rosa – Fotos: Divulgação

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Em “São Marcos”, o autor deixa entrever também as suas experiências no sertão de Minas Gerais.

João Guimarães Rosa – Foto: Domínio Público via Wikimedia Commons

O conto se passa no Calango-Frito. “Todo domingo, o protagonista saía de casa e ia para a floresta contemplar a natureza, nos seus elementos mais comezinhos, como as ervas daninhas, as formigas, os insetos. Um dia ele entra no fundo do bosque e é tomado pelo terror pânico, medo comum de quem se acredita perdido no meio da escuridão do matagal. Acreditava-se que ele era provocado pela possessão do deus Pan da mitologia grega, que habita no interior dos bosques que ataca e cega os que lá se perdem.”

“Corpo fechado” conta a história de Manuel Fulô, um sujeito que ama mais sua mula do que a noiva, cobiçada por um valentão. Mas, para salvar a noiva, ele entrega a mula a um feiticeiro para fechar o seu corpo e enfrenta com êxito o valentão.

“Conversa de bois” narra a viagem de um carro de bois. Nele,  o penúltimo dos nove contos que se encontram em Sagarana, os animais falam e raciocinam.

O último conto do livro, “Hora e vez de Augusto Matraga”, foi apontado por Rosa como uma “vitória íntima”, pois desde o começo do livro era o estilo que procurava descobrir. “Essa é uma das histórias mais divulgadas do livro e realmente um dos contos mais bem acabados”, considera o professor Roncari. “Augusto Matraga é um sujeito truculento, poderoso, autoritário. Um personagem que faz parte da história do País. Quantos Matragas não estão hoje no Senado, na Câmara, no Judiciário, na comitiva da Presidência, sem legitimidade, mas ditando as regras da política para a sociedade brasileira?”
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