Revista do IEB investiga crises da contemporaneidade e suas soluções

Produção filosófica de Oswald de Andrade, reflexões sobre o Antropoceno e estudo sobre multidões compõem temas da edição

 19/01/2024 - Publicado há 3 meses

Texto: Luiz Prado

Arte sobre fotos / Wikimedia Commons e MIS

O número mais recente da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP lida com crises e possibilidades de futuro, nacionais e globais. Oswald de Andrade, cujo projeto intelectual é lembrado pelo impacto na literatura, torna-se protagonista de uma reflexão sobre maneiras de se conceituar o tempo e a história, parte de um projeto de sociedade.

É o que surge no artigo “O futuro passado da antropofagia: tempo e história nos ensaios filosóficos de Oswald de Andrade”, escrito por Wendel Antunes Cintra, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir de textos elaborados por Oswald entre 1930 e 1954, alguns produzidos para concursos a cargos de docente na USP, Cintra conclui que o pensamento do modernista se guiava a partir de uma dupla concepção do tempo histórico, ao mesmo tempo cíclico e linear.

O que isso quer dizer? Cintra explica que Oswald considerava a contemporaneidade um momento de crise e transição, no qual o patriarcalismo e o messianismo – duas ideias centrais na reflexão oswaldiana– estavam abalados, permitindo que o matriarcado e a antropofagia de uma era remota da humanidade pudessem novamente ganhar espaço nas práticas sociais. Esse retorno, contudo, estaria atrelado às possibilidades do desenvolvimento tecnológico e seu potencial de emancipação humana.

Oswald operava com uma teoria, hoje descartada pela antropologia, de que a humanidade teria vivido no início de sua trajetória em um estado de matriarcado. Nesse período, a abertura para o outro e a inversão cotidiana de valores – entendidas como antropofagia – dariam a tônica das formas sociais, ao lado da propriedade comum das terras e a ausência de classes sociais.

O surgimento da civilização teria enterrado o matriarcado, organizando uma sociedade baseada no direito paterno, na propriedade privada e na divisão em classes. Com as religiões abraâmicas, a abertura para o outro da antropofagia deu espaço para uma visão de mundo baseada em hierarquias duais: bem e mal, certo e errado, verdadeiro e falso, natureza e cultura, Deus e homem.

Mas, no período em que o modernista escrevia, a perspectiva era de que a civilização estava em crise, com a dissolução das práticas patriarcais e messiânicas. O que abria caminho para a retomada de valores do matriarcado. Esse seria o tempo cíclico de Oswald. Contudo, as novas tecnologias, com suas formas e promessas, não deveriam ser descartadas: seu potencial emancipatório precisava justamente ser combinado ao ethos e às instituições do matriarcado antropofágico.

Primitivo, portanto, não é o passado da civilização, mas seu futuro. E civilização não é estágio a ser completamente superado, mas transformado. Indústria, robótica, energia atômica, petróleo, cinema: objetos do louvor de Oswald. Otimismo modernista pelas possibilidades de emancipação da técnica, mas combinado ao exorcismo das instituições patriarcais e dos valores messiânicos.

“O horizonte de expectativas da antropofagia oswaldiana nasce, assim, do encontro, de um fervor dirigido ao passado matriarcal-antropofágico e uma esperança em relação a um futuro que incorpora as conquistas da civilização industrial, instrumentalizando-as no sentido da emancipação humana”, escreve Cintra. “E desse insólito encontro de passado e futuro configura-se a utopia do novo homem reconciliado consigo mesmo.”

Plantationoceno e agroecologia

Escravos cortando cana-de-açúcar - Ilustração: William Clark (d.1801)/Domínio público

Outros tempos, outras crises, outros futuros. O otimismo oswaldiano em relação à contemporaneidade parece um pouco ingênuo diante da sensação de fim de mundo trazida por pandemia, aquecimento global, desastres climáticos, extinção de espécies, miséria, racismo, machismo, fascismo… O domínio das mídias sociais e a precarização do trabalho parecem soterrar as perspectivas iluminadas do modernista na emancipação através da técnica. A crise é mais duradoura e profunda do que se pensou.

E suas causas também podem ter outras explicações. Colonialismo e plantation, no caso. É o que defende o artigo de Josiane Carine Wedig, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), e João Daniel Dorneles Ramos, pesquisador de pós-doutorado no IEB. A dupla parte da ideia de Antropoceno, apresentando os desdobramentos do conceito, para destacar uma dentre as múltiplas iniciativas que buscam combater de algum modo seus efeitos.

Entendido como uma nova era geológica, na qual a ação humana tornou-se capaz de alterações drásticas no planeta (geralmente bastante destrutivas), o Antropoceno precisa de origens mais específicas. Que ações humanas, exatamente? De quem? A partir de quando? Os autores seguem a sugestão da antropóloga Donna Haraway e identificam a origem das transformações no modelo das plantations, as monoculturas introduzidas pelos europeus nos mundos colonizados durante a Idade Moderna. Estaríamos, portanto, no Plantationoceno.

Da mesma forma que as culturas vegetais foram separadas de seus espaços originais e disciplinadas como recursos econômicos, os corpos dos negros trazidos da África e dos indígenas exterminados e/ou catequizados também se tornaram monoculturas para o lucro. A lógica da plantation nega diversidades, biológicas e culturais, como entraves para a eficiência econômica. E se guia pela extração: de minérios do solo, de florestas, de pessoas de seus lugares de origem para o trabalho. O sentido é a acumulação de capital nas metrópoles através do colonialismo.

A versão contemporânea da plantation é o agronegócio e a expropriação se torna aguda na invasão de terras indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Formas de cultivar a terra e conhecimentos tradicionais são silenciados por uma visão que encara a Terra como fonte de recursos exploráveis. Resultados: contaminação do solo e da atmosfera, poluição das águas, diminuição da biodiversidade e morte de pessoas.

Se o diagnóstico de Josiane e Ramos é menos otimista que o de Oswald, a possibilidade de romper o percurso de destruição também implica uma espécie de olhar para o passado. Aqui, para as práticas agroecológicas, as alternativas à plantation que remetem às formas de resistência à monocultura, praticadas desde a época colonial pelos indígenas, quilombolas e camponeses.

Ecologia política, afirmam os autores, a agroecologia propõe a reconexão com os seres extra-humanos, a possibilidade de descolonizar o atual modelo colonial de agricultura, centrado nas commodities e que coloniza conhecimentos e seres. “A pluralidade de saberes e práticas dos povos da terra constitui (r)existências frente às catástrofes de escala planetária”, indicam Josiane e Ramos. “Na urgência de engajamentos e experimentações que busquem criar a possibilidade de um futuro que não seja desastroso, a agroecologia passa a ser parte das lutas por processos de descolonização, que buscam (re)criar ressurgências e refúgios multiespécies diante do Antropoceno.”

Quilombolas e multidões

Manifestação de junho de 2013 na Avenida Paulista - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Os desdobramentos do Modernismo brasileiro voltam a aparecer na revista em um artigo sobre a poesia contida nas letras de um grupo de rap formado por indígenas. O texto de Carolina Barbosa Lima e Santos, estagiária de pós-doutoramento da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e Wellington Furtado Ramos, professor da UFMS, aponta para a necessidade de se expandir os conceitos de modernidade, literatura e identidade nacional.

Revista do IEB, número 86, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, 208 páginas. Disponível neste link.

Já a contribuição de Ângela Cristina Salgueiro Marques, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), parte da experiência quilombola para mobilizar outros conceitos e falar de poéticas políticas emancipatórias. No texto, a fuga surge como uma arte, capaz de produzir autoafirmações e construções de autonomias relacionais e políticas.

Os desafios da política brasileira contemporânea surgem em um ensaio que discute o bolsonarismo a partir das reflexões a respeito de multidões, surgidas na filosofia e na psicanálise. Diante das mobilizações iniciadas em 2013 e das dinâmicas das mídias sociais, o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) José Luiz Aidar Prado tenta interpretar as multidões e tirar daí ideias para responder “aos que não se expressam senão no grito, aos que marcham para Deus, aos que pedem uma lei de ferro, aos que apelam a um novo Leviatã, aos que se reúnem apenas pautados no pensamento da identidade”.

Peças de um quebra-cabeça chamado Brasil, esses artigos da edição 86 da Revista do IEB. A figura que surge dessa montagem levanta a dúvida se estamos diante de uma imagem surrealista ou dadaísta. De todo modo, indicam crise e muito trabalho pela frente.


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