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Em algum momento entre 1967 e 1969, Sérgio Buarque de Holanda discursava para um grupo de estudantes, a convite do Centro de Estudos Históricos Afonso Taunay (Cehat), então ponto de reunião de alunos de História da lendária Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Um encontro que, por cerca de 50 anos, ficara registrado apenas na memória dos presentes e em papéis perdidos de seu acervo pessoal, guardados desde 1983 no Arquivo Central do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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Agora, o conteúdo dessa conferência finalmente é publicado nas páginas da edição 70 da Revista do IEB, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Apresentado e comentado pelo pós-doutorando do IEB Raphael Guilherme de Carvalho, o rascunho datilografado da palestra mostra uma tomada de posição de Holanda sobre os fundamentos e métodos do estudo da história.
“Muito pouco explorado na fortuna crítica buarquiana, provavelmente dada sua situação de ineditismo, o texto da conferência que ora apresento, versando exclusivamente sobre epistemologia da história, é um produto relativamente raro na trajetória do autor, fruto de longa reflexão, que parte das próprias práticas historiográficas, em torno de uma concepção que ele passa a expor e defender nesses e nos anos seguintes”, comenta Carvalho no artigo que acompanha o documento.
A data da palestra é estimada a partir de referências citadas por Holanda no rascunho. À época, o autor de Raízes do Brasil dirigia a Coleção História Geral da Civilização Brasileira, iniciada em 1959 na editora Difusão Europeia do Livro (Difel). No começo dos anos 1960, ele fundara o IEB, do qual foi diretor entre 1962 e 1964. Em abril de 1969, ele se aposentaria do cargo de professor da USP em solidariedade aos colegas aposentados compulsoriamente pelo regime militar.
Segundo Carvalho, o rascunho mostra o desacordo de Holanda com o estruturalismo, representado na disciplina de História pela longue durée de Fernand Braudel. Seria uma “volta ao conhecimento”, de acordo com o pós-doutorando.
“O método da longa duração implicaria, ao cabo, que a sociedade se transforma através de fases que obedecem, de certo modo, a uma necessidade inexorável”, escreve Holanda no rascunho. “O que aqui se chamaria dinâmico é exatamente o que em outras ciências se chama estático, obediente a algum esquema relativamente fixo.”
Para Carvalho, o que o autor busca é a singularidade da disciplina. “O historiador então trabalha”, comenta o pós-doutorando, “sem desprezar a interdisciplinaridade, um delineamento de fronteira disciplinar, ou, melhor, uma proposição quanto à singularidade da história entre as ciências sociais, considerando também a clivagem interna à disciplina histórica, diante do advento da história serial e sua pesquisa das regularidades.”
.Centenário do samba
O registro de Pelo Telefone, canção de Donga (Ernesto dos Anjos), em 1917 na Biblioteca Nacional, é o marco oficial (e discutido) do nascimento do samba. Para celebrar seu centenário, a nova edição da Revista do IEB traz também um dossiê organizado pelo professor do IEB Walter Garcia e pelo professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) Gabriel Lima Rezende.
“É um lugar-comum promover grandes celebrações em datas redondas”, escrevem os organizadores. “Mas, por ironia ou por correção do destino, o centenário (digamos, oficial) do samba foi celebrado, em 2017, quando havia se tornado evidente o esfacelamento da noção de ‘povo brasileiro’ como horizonte e ideia reguladora dos mais diversos projetos políticos de desenvolvimento econômico e social. Ao iniciarmos a organização deste dossiê, não poderíamos adivinhar que esse problema acabaria configurando uma área de intersecção dos dez artigos aqui reunidos.”
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Dentre os textos, tanto de pesquisadores brasileiros quanto estrangeiros, há um trabalho sobre a relação entre alegria e tristeza nos sambas de Bide e Marçal, da professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Claudia Neiva de Matos. Em outro artigo, o músico e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo Amailton Magno Azevedo contesta o título de “túmulo do samba”, dado à capital paulista, propondo uma revisão da historiografia do samba a partir da discussão sobre estilo negro, corpo negro e o conceito de microáfricas. Já o professor do King’s College London David Treece analisa o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, fundado pelo compositor e cantor Antônio Candeia Filho na ressurgência da militância antirracista nos anos 1970.
“O conjunto heterogêneo permite uma visão panorâmica, mas não integral, da diversidade que as pesquisas sobre o samba apresentam atualmente”, escrevem Garcia e Rezende. “Nesse sentido, nem sempre os textos serão convergentes em seus princípios, procedimentos e conclusões. Oxalá essa característica possa contribuir para o cultivo do pensamento crítico e do diálogo, práticas desejáveis em uma sociedade que se imagina democrática”, concluem.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (RIEB), número 70, 371 páginas. Disponível no endereço www.ieb.usp.br/rieb70/