![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/20180404_00_Martin_Luther_King_Jr.jpg)
Os Estados Unidos são o país de Martin Luther King e de Malcon X, mas também são o país da Ku-Klux-Klan – uma onomatopeia para o engatilhar de uma arma. São o país de Selma e San Francisco, mas também de Birmingham. São o país da 1ª Emenda à Constituição – aquela que dá a todos os cidadãos o direito à livre expressão – , mas também são o país da 5ª Emenda, que permite que esses mesmos cidadãos comprem uma submetralhadora no mercado da esquina. Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo, mas não oferecem à população um sistema público de saúde. São o país de Barack Obama – mas também são o de Donald Trump.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/06/20200605_maicon-x-nywts-300x300.png)
Porque os Estados Unidos, aquele do “american way of life”, do “sonho americano”, estão longe de ser um país simples. É um país desigual, amalgamado em um caldo sociocultural que muitas vezes passa do ponto de ebulição, ferve além da conta e, como um vulcão ativo, expele magma para as ruas. E sua mais recente erupção se deu a partir de 25 de maio, quando o policial branco Derek Chauvin deteve o negro George Floyd em uma rua de Mineápolis, no Estado de Minnesota, jogou-o ao chão e, por intermináveis 8 minutos e 46 segundos, pressionou seu pescoço com o joelho. “I can’t breathe”, falou Floyd algumas vezes, antes de morrer. Ele não podia respirar. Depois daquele dia, a América dos sonhos, sufocada, decidiu que precisava respirar. E foi para as ruas gritar. E Donald Trump achou que aquela era uma péssima ideia.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/06/20200605_Ku_Klux_Klan.jpg)
De seu Salão Oval na Casa Branca, comandando telefones, Trump viu as ruas de várias cidades americanas serem tomadas por um turbilhão de gente, muitos jovens, negros, latinos, brancos, asiáticos – o povo que, como um patchwork, dá a cara e a cultura dos Estados Unidos de hoje. “We the people”, diz o preâmbulo da Constituição americana, mais do que bicentenária. “Nós, o povo”, parece gritar aquela gente que invadiu as cidades coast to coast e que não deu bola para o toque de recolher engendrado por prefeitos entre assustados e afoitos. Lá se vão dez dias que a massa tomou as ruas – em alguns casos, errando também no ponto de ebulição, queimando carros da polícia e saqueando lojas. Mas, na maioria das vezes, fazendo sua manifestação pacífica, se ajoelhando em dados momentos, gritando palavras de ordem e cantando em outros. E deixando bem claro que aquilo era por Floyd, sim, mas também por tantos outros negros mortos em mãos brancas. Porque o racismo, como disse Obama recentemente, “é o pecado original” dos Estados Unidos. As manifestações que já renderam mil presos – entre eles 190 jornalistas – são o clamor americano pelo antirracismo. E o que Donald Trump fez? Pensou em chamar o exército.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/03/20200313_trump.jpg)
Esta foi mais uma das péssimas ideias que Trump tem tido desde que se tornou o locatário da Casa Branca – aquela mesma que ele, por insegurança ou medo, vai saber, mandou deixar às escuras pela primeira vez na história. A forma errática e truculenta como o presidente americano guia o país mais poderoso do mundo chegou ao seu paroxismo com as recentes manifestações. Querendo mostrar força, mandou a Guarda Nacional e a polícia lançarem bombas de gás lacrimogêneo para dispersar uma manifestação nos arredores de sua residência oficial. Atravessou a Praça Lafayette, parou na porta de uma igreja, posou com a Bíblia na mão e voltou para casa.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/06/20200605_manifestacao_george-floyd.jpg)
Leis centenárias
A ideia de chamar o exército foi um tiro no pé. O secretário de Defesa Mark Esper se posicionou flagrantemente contra a ideia do chefe para conter as marchas antirracismo. Seu antecessor, Jim Mattis, que deixou o governo americano em 2018 justamente por discordar das ideias do presidente americano, foi mais longe. “Temos que rejeitar e responsabilizar aqueles que estão no poder e querem rir da nossa Constituição”, disse Mattis, um ex-fuzileiro de 69 anos com mais de quatro décadas de serviço militar, à revista Atlantic. “Trump é o primeiro presidente da minha vida que não tenta unir o país, nem sequer finge.”
É uma verdade. Desde que assumiu o poder, Donald Trump tem se preocupado mais em aumentar a cisão histórica entre as classes nos Estados Unidos e olhar com especial atenção para aquela sua fatia de eleitores chamada de wasp – white, anglo-saxon, protestant, ou “branca, anglo-saxônica, protestante”. Os “wasp” seriam os americanos originais, herdeiros diretos dos chamados “pais-fundadores”. Só que, hoje, eles estão perdendo cada vez mais espaço. “We the people”, lembram? O povo americano é muito mais do que isso. E, se ele desejava fazer a América “grande outra vez”, deveria vencer sua miopia. Mas Trump preferiu deixar os óculos de lado.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/06/20200605_barracadePhiliposMelaku-Bello.jpg)
Porque, aparentemente, foi para essa fatia eleitoral que Trump – sempre urdindo guerras, sejam elas contra um vírus invisível, sejam contra manifestantes americanos antirracistas – tentou lançar mão do Insurrection Act, ou a Lei de Insurreição. O corolário de leis nas quais se fundamenta e se estrutura o Estado americano é muitas vezes centenário. Esta tentada por Trump foi assinada por Thomas Jefferson em 1807, e dá poder ao presidente de chamar as tropas em casos de terrorismo ou revoltas contra o governo. Definitivamente, manifestações por direitos civis – que são vistas nos Estados Unidos desde os anos 1960 – e contra o racismo podem ser muitas coisas, mas não são atos terroristas ou contra qualquer governo. São a favor do povo. Só um presidente obliterado por forças que não consegue conter poderia pensar diferente. Aquilo que vemos nas ruas americanas não é uma insurreição, é uma justa manifestação social protegida pela 1ª Emenda. Por isso, a alusão de Trump à Lei da Insurreição ficou confinada aos arredores da Casa Branca. Nem a Avenida Pensilvânia, a mais importante de Washington, escapou das manifestações. Foi em um desses momentos que o presidente mandou apagar a luz.
Talvez para não ver o que estava escrito em um dos cartazes dos manifestantes: “Stop Trump’s new Jim Crow”. Mas quem é esse Jim Crow que os manifestantes acreditam que o presidente tente emular e, por isso, deve ser impedido? Na verdade, ninguém. Jim Crow tornou-se, a partir de meados dos anos 1800, a forma pejorativa de se referir aos negros – ou afro-americanos –, graças a uma música pouco memorável. E a chamada Lei Jim Crow é exatamente aquela que estabeleceu a segregação racial no sul dos Estados Unidos desde o final do século 19 até 1965. “Separados, mas iguais”, proclamava a doutrina legal, tentando explicar o inexplicável.
![](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/2020/06/20200605_protesto-eua.jpg)
É esta ideia racista, que cheira a mofo e a sangue, que os manifestantes que não saem das ruas querem impedir. Eles não têm dia para parar seus protestos. Porque nada mudou ainda nos Estados Unidos – nem o ocupante da Casa Branca. Mas talvez esses manifestantes, inconscientemente, estejam reproduzindo uma outra manifestação, praticamente solitária e silenciosa, que está na porta de Donald Trump. Desde 1981 a Casa Branca tem como vizinha de grades uma barraca. Ela foi armada ali originalmente pelos ativistas pela paz William Thomas e Concepcion Piccioto. Naquela época, não havia nenhuma lei que proibisse alguém de montar uma barraca nas portas da casa do presidente. Thomas morreu em 2009 e Connie, como era conhecida, em 2016, aos 80 anos. E para que ninguém tirasse a barraca de lá, Philipos Melaku-Bello foi viver nela. Está lá até hoje. Em um dos cartazes fora de seu abrigo, pode-se ler: “Procura-se sabedoria e honestidade”. As ruas americanas também estão nesta busca.