As alterações na Lei Rouanet feitas pelo governo Bolsonaro na última semana foram recebidas com apreensão. Uma das principais mudanças, a redução do valor máximo de captação, de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão a cada projeto, deixou artistas e instituições culturais com receio de que as medidas representassem impacto negativo para as iniciativas beneficiadas pela lei de incentivo.
Entretanto, após a publicação da instrução normativa que detalhou as novas regras, pelo menos parte do setor se tranquilizou, conforme explica o professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo Carlos Augusto Calil. “Nenhum dos grandes projetos foi prejudicado”, diz, referindo-se aos museus e instituições culturais sem fins lucrativos. Estes ficaram fora do teto proposto e poderão continuar buscando financiamento para planos anuais de atividade, sem limite pré-estabelecido.
Ana Carla Bliacheriene, professora do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, também avalia as mudanças como positivas. “Os dois principais pontos que se criticavam na lei antes eram a grande concentração de valores em determinados grupos, empresas, companhias ou artistas e a falta de transparência na execução dos gastos”, comenta. “A instrução normativa ataca fortemente esses dois pontos”.
Descentralização
Além da redução do teto de captação por projeto, agora existe também um limite para os proponentes: pessoas físicas e aqueles que se enquadram na categoria de Microempreendedor Individual (MEI) poderão ter até quatro projetos aprovados, totalizando R$ 1 milhão de captação; na categoria de Empreendedor Individual (EI), o limite é de oito projetos e R$ 6 milhões. Já no caso de empresas, cada proponente poderá ter no máximo 16 projetos, somando R$ 10 milhões no total.
Junto a isso, a instrução normativa também determina que será possível um acréscimo em projetos voltados para as regiões Sul, Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nesses casos, o limite pode ser aumentado em até 100%.
A professora Ana Carla considera que as medidas contribuem para descentralizar a produção de projetos beneficiados. “Quando se fala em redução de incentivos ou diminuição de captação, a gente tem que pensar que toda isenção concedida pelo governo federal implica o não recebimento de dinheiro”, completa. “A gente tem um assunto muito grave e comum a todos, que é a crise das contas públicas, e precisamos discutir a sério o que será priorizado pelo Estado brasileiro.”
Apesar de considerar as mudanças positivas no que se refere aos limites de captação, o professor Carlos Augusto Calil acredita que a lei de incentivo tem problemas estruturais que ainda não foram corrigidos, inclusive a concentração de recursos em determinadas regiões do País.
“A lógica da Lei Rouanet é de que empresas e contribuintes de imposto de renda de valores expressivos podem abater do imposto para investir em cultura”, explica. “No Norte e Nordeste não há empresas o suficiente com capital necessário para ter renúncia fiscal e apoiar a cultura local, por isso tudo remete para São Paulo e Rio de Janeiro. Não é uma política estruturante, pois parte do pressuposto de concentração do capital e acaba reforçando essa mesma concentração.”
Na avaliação da professora Ana Carla, ainda é cedo para saber como as medidas vão de fato impactar a produção cultural. “Como toda norma, ela vai passar por uma fase de aplicação. Se daqui a cinco ou dez anos ela vai dar o resultado esperado, é algo a se observar”.
Mesmo com problemas, incentivo é essencial
Criada em 1991, a Lei Rouanet sempre foi objeto de debates fervorosos, tendo críticos e defensores dentro e fora do setor cultural. Ela é uma herança da Lei Sarney, de 1986, que foi a primeira no Brasil a promover incentivos fiscais para a cultura.
Conforme explica a professora Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, diretora do Centro Universitário Maria Antônia da USP, em artigo no Fórum Permanente, a formulação inicial da Lei Rouanet previa três mecanismos de financiamento: os Fundos de Investimento Cultural e Artístico, disciplinados pela Comissão de Valores Mobiliários, o Fundo Nacional de Cultura, com investimento direto do então Ministério da Cultura, e o Mecenato, cujos recursos vêm da renúncia fiscal.
“Era uma lei muito mais complexa, muito mais interessante, mas que só foi colocada em prática nesse vetor do mecenato”, diz o professor Martin Grossmann, coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, ligada ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e colunista da Rádio USP. “Por isso ela tem sido criticada. Cria-se uma ideia de que a Lei Rouanet atua muito mais para o mercado, e segue mais as intenções de empresas que a utilizam do que de uma política cultural do Estado.”
Ainda assim, Grossmann destaca a importância que o incentivo teve desde a sua criação, tendo se tornado um dos pilares de uma “economia da cultura” no Brasil. “Sem a Lei Rouanet nós não estaríamos onde estamos. Essa discussão atual se faz num contexto em que, no mínimo, a cultura importa enquanto economia, e o governo deveria estar atento a isso.”