Em 1940, ainda no início da Segunda Guerra Mundial, tropas da União Soviética invadiram a região da Bessarábia e a tomaram da Romênia. Um ano depois, os romenos – então liderados por uma ditadura militar aliada ao governo nazista da Alemanha – retomaram a região e implantaram ali a “solução final” planejada pelos nazistas para os judeus. A ordem era deportar os judeus da Bessarábia para a Transnístria – nome que significa “além do rio Dniester” -, na atual Moldávia. Cerca de 150 mil pessoas foram expulsas de suas casas e obrigadas a caminhar até aquela parte do leste europeu, onde se instalaram precariamente. Desse total, 90 mil morreram ao longo dos três anos em que durou o domínio romeno – de fome, sede, doenças e cansaço por trabalhos forçados. Em março de 1944, os soviéticos tomaram a Transnístria e autorizaram a volta dos judeus à Bessarábia.
Na época com 12 anos de idade, uma menina da cidade de Yedinitz, na Bessarábia – uma das cidades que mais sofreram com o avanço dos romenos -, viveu esses horrores. Depois da guerra, ela emigrou para o Brasil com seus pais e o irmão – todos sobreviventes do Holocausto da Transnístria -, casou, teve filhos e netos, lutou pela valorização da mulher judia, empenhou-se pela preservação do idioma iídiche e tornou-se uma militante da justiça e da liberdade. Hoje com 88 anos, Klara Kielmanowicz, a menina de Yedinitz, relata toda essa experiência no livro Uma Marcha, Uma Vida, Um Legado, que a Editora Humanitas – ligada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – acaba de publicar. “Sua trajetória é repleta de ensinamentos que, na sua essência, expressam os ideais do povo judeu de defesa da dignidade da vida”, afirma a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da FFLCH, que coordena o Projeto Arqshoah – Vozes do Holocausto, voltado para a preservação do testemunho de sobreviventes do nazismo. “Klara é uma das mais importantes ativistas brasileiras”, acrescenta Maria Luiza, que assina o prefácio do livro.
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“No dia da entrada dos romenos em Yedinitz, acompanhados pelos alemães, teve início o projeto nazista de extermínio de todos os judeus da Bessarábia. Os romenos queriam ajustar contas, a começar por Yedinitz, porque, quando eles saíram cabisbaixos da cidade, os judeus e os comunistas mostraram-se alegres”, recorda Klara, no livro. “Com Yedinitz passando novamente às mãos dos romenos, ficamos com medo da revanche. E não estávamos errados, pois havíamos tomado conhecimento do início da guerra pela estação de rádio de Bucareste, que anunciou o evento desta forma: ‘A guerra santa contra os judeus e os bolcheviques começou’.”
Yedinitz foi quase completamente destruída pelas tropas romenas. Klara lembra o dia em que elas entraram na cidade. “Eles chegaram pela ponte de Yedinitz, marchando ao longo da rua do Correio, atirando à direita e à esquerda. A primeira vítima foi Zalman Leib, hazzan (cantor que conduz a reza na sinagoga) de nossa comunidade. Depois, Zalman Rehter. Quando seu cachorro começou a latir para os soldados, Rehter foi chamado. Perguntaram a ele: ‘Foi assim que você ensinou seu cachorro a receber o nosso Exército?’. Em seguida, deram-lhe um tiro na cabeça.”
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No final de julho de 1941, veio a ordem para os judeus saírem imediatamente de suas casas. “Lembro-me muito bem que o almoço estava servido na mesa”, escreve Klara. “Apanhamos depressa o máximo de coisas que nos caía nas mãos e saímos. Soldados ferozes nos expulsaram de casa, gritando para que não olhássemos para trás.”
Sem saber para onde iam, os judeus de Yedinitz começavam a marcha até a Transnístria. “Não sabíamos para qual lugar estávamos sendo levados. Hoje acredito que nem mesmo as autoridades romenas sabiam o que fazer conosco. Só tinham um objetivo: ver-se livres de nós, matando-nos lenta e sadicamente. Na realidade,um assassinato em massa sem precisar de armas; uma engenhosa forma de extermínio gradativo, em que os covardes assassinos não assumiam o golpe mortal.”
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Depois de dias de caminhada, os judeus deportados chegaram ao rio Dniester. “Ao atravessar o rio, muitos, em desespero, se atiraram em suas águas, como Yani, meu professor, que entrou em choque com a morte de toda a sua família”, lembra Klara.
Na Transnístria, Klara e sua família passaram vários meses no gueto de Bondurovka. “O inverno de 1942 foi assustador. Dia a dia, os mortos eram levados para fora do campo, sem direito a qualquer ritual de sepultamento digno. A terra era dura e não podíamos escavar. Buracos eram feitos com dificuldade e, na medida do possível, depositávamos os corpos, cobrindo-os com neve. Quando a primavera chegou, os corpos apareceram sob a neve derretida. Novamente explodiu uma horripilante epidemia de tifo, e mais uma vez muitos morreram.”
Os horrores sofridos na Transnístria estão relatados na primeira parte do livro de Klara Kielmanowicz. Nas outras partes da obra, ela relata a sua viagem para o Brasil, seu encontro com David Kielmanovicz, com quem foi casada por mais de 50 anos, sua luta pela preservação do iídiche e sua militância em favor da justiça, da paz e da solidariedade.
Uma Marcha, Uma Vida, Um Legado, de Klara Kielmanowicz, Editora Humanitas, 248 páginas, R$ 40,00