Há exatos 50 anos, no dia 10 de abril de 1970, Paul McCartney fez uma besteira – ou cometeu um ato falho, como quiserem. Ao divulgar o lançamento de seu primeiro disco solo, cujo título era apenas o seu sobrenome, ele afirmou que jamais tocaria de novo com a banda mais famosa do mundo. Os Beatles tinham acabado. E, ironicamente, o anúncio foi feito por aquele que mais lutou para o grupo continuar unido. “Foi tudo um mal-entendido. Pensei: ‘Meu Deus, o que foi que eu fiz agora?’, e senti meu estômago revirar”, revelou Paul ao jornalista e escritor Ray Connoly alguns dias depois do anúncio bombástico. Mas o estrago já estava feito. A notícia saiu em todos os jornais e os fãs ao redor do planeta descobriram que o que vinha sendo ventilado como suspeita ou fofoca era verdade: os Beatles, a mais importante banda de rock da história, aquela que não só fez canções que se eternizaram mas que influenciaram social, cultural e até politicamente sua época, não existiam mais.
Até porque nenhum dos outros três integrantes do grupo se apressou em desmentir. Pelo contrário, até se sentiram aliviados, já que eles, como grupo, não se entendiam mais fazia tempo. George Harrison já queria ter deixado a banda em 1969, mas foi convencido a desistir da ideia. Ringo Starr também já estava de saída. O único a ficar louco com o anúncio de Paul foi John Lennon. Mas não porque quisesse manter a banda, mas sim porque era ele quem deveria ter anunciado o seu fim. Afinal, ele a criara, nos agora longínquos anos 1950, e nada mais justo que fosse ele, o Johnny dos Quarrymen, quem colocasse um ponto final naquilo tudo. Pelo menos em público, já que em setembro de 1969 ele já havia anunciado aos outros três que os abandonaria. “Na reunião, Paul, chatíssimo, não parava de falar sobre o que faríamos. Então, no fim, eu disse: ‘Eu acho você maluco. Quero o divórcio’.” E foi assim. Todos combinaram que o anúncio só seria feito após o lançamento de Let it be, seu último álbum – que inicialmente se chamaria Get back –, mas Paul, depois de ter vencido uma depressão causada pela fala de John, atravessou o rock. A famosa frase de John, “o sonho acabou”, só seria dita tempos depois, incorporada à música “God” – na qual ele também diz que “não acredita nos Beatles, só nele e em Yoko”.
Na verdade, quando os Beatles acabaram, todos os seus integrantes já estavam em caminhos solo. Além do LP inicial de Paul, John já havia lançado discos ao lado de Yoko Ono – com quem havia se casado em 1969, em Gibraltar –, Ringo, naquele mesmo 1970, lançou dois (!) discos solo, sem grande repercussão, e George lançou seu terceiro trabalho individual, mas que valeu como se fosse o primeiro: All things must pass, um álbum triplo que bem demonstrava como seu talento criativo vivia eclipsado pela dupla Lennon-McCartney.
Para Ray Connoly, “John Lennon fez muitas coisas fantásticas na vida, mas a mais fantástica delas pode ter sido a destruição proposital dos Beatles, em 1969”. “Matando os Beatles antes de eles poderem nos decepcionar — o que invariavelmente teria ocorrido, com a música mudando de cara e os novos discos não agradando tanto quanto os que até hoje adoramos –, Lennon os congelou para sempre, no auge”, escreveu Connoly. E esse auge, por assim dizer, está por aí até hoje, com novos fãs sendo acrescidos geração após geração. É uma história talvez bem conhecida de muitos, mas que vale ser recontada – justamente o que o Jornal da USP faz agora e nas próximas semanas. Mas, para isso, deve-se fazer primeiro uma visita ao passado e ver como tudo começou.
Rock, Hamburgo e uma caverna
Para entendermos a gênese Beatle, é preciso ver em que contexto o grupo – ou seus integrantes originais, John, Paul e George – estavam inseridos. Os três – e Ringo, claro – nasceram durante a Segunda Guerra Mundial: John e Ringo em 1940 – o nome do meio de John, Winston, foi uma homenagem de sua mãe, Julia, ao então primeiro-ministro Winston Churchill –, Paul em 1942 e George, o caçula, em 1943. Eles eram oriundos da working class e filhos de uma época terrível para a Inglaterra e o mundo e cresceram em um pós-guerra nada auspicioso. O Reino Unido vivia épocas de racionamento, a Europa tentava se reerguer e uma cortina de ferro, como vaticinara Churchill, se estendia pelo continente. Na Liverpool natal dos integrantes do grupo, com sua tradição industrial, talvez não houvesse muitas expectativas para adolescentes como eles. Só havia uma válvula de escape: aquele ritmo endiabrado importado dos Estados Unidos, o rock and roll.
E John logo embarcou na nova onda, criando em 1957 seu primeiro grupo, o Johnny and the Quarrymen. A célula mater dos Beatles, no entanto, começou mal, não conseguindo nem vaga na final de um show de calouros. Mas John foi em frente e achou que tivesse tirado a sorte grande quando conheceu Paul McCartney durante uma festa de igreja onde os Quarrymen tocavam e o convidou a se juntar à banda. Atenção para esta data: 18 de outubro de 1957. Foi quando Paul McCartney e John Lennon tocaram juntos pela primeira vez, no New Clubmore Hall de Liverpool. Paul, no entanto, talvez desejasse esquecê-la – tocou tão mal como guitarra solo que foi transferido para a guitarra rítmica, junto com John.
Um ano depois, mais um golpe de sorte decisivo, quando George Harrison conhece os Quarrymen e, mesmo sendo novinho, é convidado em fevereiro a se juntar ao grupo. A guitarra solo tinha novo dono. Mas 1958 trouxe também uma ferida profunda para John, que jamais cicatrizaria: em 15 de julho sua mãe, Julia, morre atropelada, e ele passa a ser criado por sua tia Mimi. É para Julia que John cria a emocionante música homônima que faria, dez anos mais tarde, parte do Álbum Branco.
Mas o grupo seguiu em frente, mesmo trocando de nome insistentemente e sem ainda ter um baterista. Depois dos Quarrymen, eles foram Johnny and the Moondogs, voltaram a ser Quarrymen, viraram Beatals (nada é por coincidência), The Silver Beetles e, finalmente, The Beatles. Isso tudo entre 1959 e 1960, quando algumas mudanças importantes aconteceram. Primeiro, o grupo ganha um baixista, Stu Sutcliffe, amigo de John desde a escola de arte. Stu havia recebido um prêmio de arte no valor de 60 libras e John e Paul o convenceram a “investir” esse dinheiro comprando um baixo, por mais que Stu insistisse em afirmar que tocava mal. Não adiantou. Foi com Stu no baixo que eles se apresentaram em 1960, ainda como Silver Beetles, em uma turnê pela Escócia – sim, as coisas começavam a melhorar. Mas preferiram usar “nomes artísticos”, por assim dizer. Coisas como Long John Lennon, Paul Ramon, Carl Harrison e Stu de Stael. Felizmente para a posteridade, essas “inovações” ficaram para lá das Highlands.
Também em 1960 eles, finalmente, ganham um baterista e tomam uma decisão definitiva. Primeiro, incorporam Pete Best, filho da dona do Casbah Club, onde eles eventualmente se apresentavam, como responsável pela bateria. Eles agora eram cinco. E a tal decisão: em 16 de agosto eles largam o “silver” de lado e passam a ser, oficialmente, The Beatles, um trocadilho em inglês com “beat”, batida musical, e “beetle”, besouro, em uma referência à banda americana The Crickets (Os Grilos), que acompanhava Buddy Holly. E é com esse nome que eles embarcam para uma excursão de shows em Hamburgo, na Alemanha, que vai moldar sua forma de tocar e que viria a enlouquecer multidões. É também nessa época que John e Paul começam a intensificar a arte de compor juntos e decidem que tudo o que viessem a fazer dali em diante, fosse em dupla ou solo, teria o selo de qualidade “Lennon&McCartney”.
“Sua forma singular de tocar e seu talento para chegar ao público não vieram de clubes ou bares de Liverpool, mas sim de suas estafantes atuações em Hamburgo”, escreveram Marie Clayton e Tim Hill em um dos milhares de livros escritos sobre os Beatles ao longo de décadas. Pura verdade. Foi em Hamburgo que eles moldaram sua presença no palco, com o jeito inovador e carismático de sorrirem um para o outro enquanto cantavam, George exercitava os solos que ficariam famosos e conheceram a fotógrafa alemã Astrid Kirchherr, que viria a se tornar namorada de Stu. É ela que inventa o corte de cabelo que viria a ser conhecido mais tarde como “corte Beatle”, primeiro com o baixista como cobaia e depois sendo seguido por Paul, John e George. Só Pete Best vai manter até o final seu cabelo gomalinado e penteado como Elvis Presley. Parece que ele não tinha notado que o mapa do rock estava mudando de latitude.
Tanto não notou que, dois anos depois, em 1962, ele seria defenestrado do grupo, abrindo espaço para Ringo Starr. Mas sem tanta pressa. Afinal, muita coisa aconteceu entre os rapazes voltarem de Liverpool e Ringo pegar nas baquetas. A primeira delas é que, ao saírem de Hamburgo, eles agora eram quatro: Stu resolveu ficar na Alemanha com Astrid, e Paul herdou o baixo. Stu Sutcliffe morreria em 1961 de hemorragia cerebral. Tinha 21 anos.
Uma outra coisa essencial nesta história é que eles começaram a se apresentar em um clube de Liverpool chamado Cavern e seu sucesso local era ascendente. Primeiro ao meio-dia, um horário nada propício para o rock, Depois, à noite. E foi justamente numa dessas apresentações noturnas que eles conheceram um dono de loja de discos que, de tanto ouvir falar neles, resolveu tirar a limpo a história. Era Brian Epstein. E ele logo se apresentou querendo empresariar os rapazes, mas com uma condição: deixar de lado aqueles casacos de couro, ao estilo bad boy roqueiro americano, que eles insistiam em usar. Estava aberto o caminho para os terninhos sem lapela que fizeram a fama inicial dos Beatles.
E foi Brian quem conseguiu que o grupo fizesse uma gravação de 15 músicas para a gravadora Decca. Mas os produtores não gostaram e deram um passa-fora nos Beatles – e as hoje famosas Decca tapes são motivo de culto para qualquer beatlemaníaco. Sem se dar por vencido, Brian Epstein foi bater na porta da gravadora EMI e lá teve uma conversa bem amistosa com o diretor artístico e de repertório. Seu nome? George Martin, justamente aquele que, mais tarde, seria conhecido como “o quinto Beatle”. Martin ouviu as gravações da Decca, gostou e propôs um teste em estúdio para a banda. E no dia 6 de junho de 1962 os Beatles entram pela primeira vez no icônico estúdio de Abbey Road, com faixa de pedestres e tudo. E foram aprovados. Mas com uma condição: teriam que trocar de baterista, já que o atual não era, necessariamente, um virtuoso. E Pete Best, que já não estava nas graças de John e Paul, foi convidado a levar seu topete para outra freguesia. E Ringo, conhecido dos Beatles desde os tempos de Hamburgo, assumiu a bateria.
E foi, finalmente, com o quarteto que se tornou conhecido no planeta inteiro que o grupo gravou seu primeiro single – ou compacto simples, como era conhecido por aqui –, com as canções Love me do e PS. I love You. O disquinho chegou ao número 17 da lista dos mais vendidos e, dizem as más línguas, graças a Brian Epstein, que sozinho comprou 10 mil compactos. Mas isso fica para a seção de curiosidades. O fato é que, com este primeiro single, os Beatles chamaram de vez a atenção da Inglaterra e da imprensa londrina.
Fizeram shows por todo o Reino Unido e em outros países da Europa, apareceram na BBC – tantas vezes que, em 1964, os invejosos chegaram a chamar a TV estatal britânica de “Beatles Broadcast Corporation” – e, em 1963, gravaram seu primeiro LP, com dez músicas compostas em apenas dez horas. Please please me foi lançado em 2 de março e em 5 de abril já era Disco de Prata, com 250 mil cópias vendidas, e primeiro lugar em todas as paradas britânicas. Estava aberto o caminho do sucesso, e o resto é história.
Que continua semana que vem.
O texto acima é o primeiro da série de cinco artigos “50 Anos do Fim dos Beatles” publicada pelo Jornal da USP.