Em nova mostra, Cinema da USP explora o vazio existencial

Com a exibição de 15 filmes, “Faces do Abismo” fica em cartaz até 27 de agosto

 07/08/2023 - Publicado há 12 meses
Cenas de filmes que serão exibidos na mostra Faces do Abismo, do Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp), entre os dias 7 e 27 deste mês – Fotos: Divulgação/Cinusp

 

Ovazio existencial, experimentado por personagens que se veem confrontadas com problemas que não são capazes de solucionar, é a situação comum aos filmes apresentados na mostra Faces do Abismo, que o Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp) oferece a partir desta segunda-feira, dia 7, até 27 de agosto. A entrada é grátis. “Em um mundo onde fugir é inútil ou impossível, as personagens permanecem longamente em uma questão ou derivam a esmo de uma situação a outra, provocando nos espectadores um incômodo ou até inconformismo diante do destino inconclusivo das narrativas apresentadas”, destaca o texto de apresentação da mostra, lembrando que as produções exibidas subvertem a narrativa tradicional do cinema clássico, formada por uma introdução, o conflito e um fim conclusivo. “Sobra às personagens encarar a violência, o terror e um mundo sem histórias resolutas com uma expressão esvaziada. Sobra também uma sensação de impotência e um senso de desimportância frente à grandiosidade do mundo que encaram. Cabe tanto às personagens quanto ao público encarar essas histórias deformadas e compreender que o objetivo delas talvez seja exatamente não nos conduzir a solução nenhuma, mas sim nos provocar desconforto e angústia a partir das situações representadas.”

É o que acontece, por exemplo, no filme que abre a mostra, Os Encontros de Anna (França, 1978, 128 minutos, direção de Chantal Akerman), previsto para ser exibido também no dia 17, às 19 horas. Como nota a sinopse do filme, “numa viagem a trabalho, a cineasta Anna se encontra com diversas pessoas. De forma passiva, ela escuta suas histórias e, frente à complexidade das vidas alheias, escancara o vazio da sua própria”. Através de longos planos, Chantal Akerman expõe a frivolidade de preencher-se dos outros quando se está vazio de si, continua a sinopse. “Assim como os quartos de hotel em que fica, os trens e as estações por onde passa, a vida de Anna tem uma identidade efêmera, não é nada além do que terceiros imprimem nela. À protagonista só resta ficar quieta, ouvir e receber. O filme traz alguns inícios e alguns fins, mas nunca os de Anna, a sua história é sempre um meio, um encontro.”

Os Encontros de Anna – Foto: Cinusp

 

Em Gosto de Cereja (Irã, 1997, 99 minutos, direção de Abbas Kiarostami), um homem com desejo de morrer vaga pela cidade em busca de alguém que aceite enterrá-lo do lado de uma cerejeira. “Entre planos e conversas longas, acompanhamos algo que não entendemos por completo e que nunca chega. Um road movie desolador em meio a rochas e uma paisagem árida que enfatiza a atmosfera contemplativa, melancólica e voltada para o vazio criado na obra.”

O vazio também está presente em Paisagem na Neblina (Grécia, 1988, 125 minutos, direção de Theo Angelopoulos), em que duas crianças partem rumo à Alemanha em busca do pai desconhecido. “Buscando por um pai que nunca conheceram e nem sabem se, de fato, existe, a jornada de Voula e Alexandros exprime o duro choque entre os sonhos e as expectativas infantis e a realidade impiedosa do mundo adulto e da sociedade moderna. A câmera de Angelopoulos, fria e distante, encontra os protagonistas em meio a locações desoladoras, enquanto a fotografia trabalha para combinar o tom onírico e, ao mesmo tempo, cruel dessas imagens. Perdidos em meio a essa realidade, só lhes resta continuar procurando.”

No clássico Alemanha, Ano Zero (Itália, 1948, 72 minutos, direção de Roberto Rossellini), entre os estragos físicos e sociais deixados pelo nazismo, o pequeno Edmund vive seus dias vagando pelas ruínas de uma cidade alemã. Em casa, sua vida familiar é marcada pela doença do pai e a decadência dos seus irmãos. “O último filme da Trilogia da Guerra, de Roberto Rossellini, diferencia-se radicalmente dos dois anteriores pela ausência total de heroísmo e esperança. Numa contemplação distanciada, Edmund, o protagonista, encarna, já nos seus primeiros anos, um mundo em ruínas e uma história em suspensão. A vida da criança do ano zero começa pelo fim.”

Outra guerra, a de Troia, na Grécia antiga, é o pano de fundo de Nostos: o Retorno (Itália, 1989, 85 minutos, direção de Franco Piavoli). No filme, inspirado na Odisseia, atribuído a Homero, o herói grego Ulisses e seus companheiros tentam voltar para casa, após o célebre conflito contra os troianos. “Nesta releitura de Odisseia, os deuses de Piavoli tomam forma subjetiva, compostos pelo mínimo. Ulisses se perde no meio do caminho, mergulhando na materialidade de um mundo poético: em suas cores, suas formas, na memória de um momento distante. Está aí a vagar em um abismo sem começo, meio e fim.”

Cena de Através de Um Espelho – Foto: Divulgação/Cinusp

 

“Karin espera se recuperar de sua recente estadia em um hospital psiquiátrico. Porém, ao viajar com seus familiares para uma ilha remota durante as férias de verão, começa a ter novas crises de loucura.” Essa é a síntese de Através de Um Espelho (Suécia, 1961, 91 minutos, direção de Ingmar Bergman). “Primeiro filme da chamada Trilogia do Silêncio ou Trilogia do Silêncio de Deus, completada por Luz de Inverno (1963) e O Silêncio (1963), Através do Espelho faz referência à passagem bíblica da Carta aos Coríntios: ‘Agora vemos através de um espelho e de maneira confusa, mas depois veremos face a face’. A crise dessa mulher que não encontra sentido para sua vida remete a um esforço angustiante: ao procurar a face de Deus, ela se depara com a face de sua própria loucura.”

Já em O Cavalo de Turim (Hungria, 2011, 155 minutos, direção de Béla Tarr), uma tempestade de vento monumental e a recusa de um cavalo em trabalhar ou comer sinalizam o começo do fim para um pobre fazendeiro e sua filha. “Inspirado no cavalo que Nietzsche abraçou em seus últimos dias, O Cavalo de Turim mostra uma jornada monótona de pavor incomparável, relatando uma desolação que invade o espectador até que nada reste a seus sentidos. Nada pode consolar uma existência tão rarefeita e enfraquecida como a que leva esse pai e essa filha em meio ao vento monumental, à grandiosidade da natureza e a um mundo sem Deus.”

Melancolia e poesia se entrelaçam em Nostalgia (URSS e Itália, 1983, 126 minutos, direção de Andrei Tarkovsky). “Um poeta russo viaja pela Itália acompanhado de sua guia e tradutora, Eugenia, enquanto pesquisa a obra de um compositor russo do século 18”, como se lê na sinopse do filme. “A saudade da terra natal e da família, as memórias de infância, a solidão e o desespero são associados a um olhar melancólico que recai sobre um mundo doente. Em seu primeiro longa-metragem filmado fora da então União Soviética, Tarkovsky manipula esses elementos de maneira profundamente poética e pessoal na figura de Andrei, o poeta que vaga por um país estrangeiro em busca de algo, à semelhança do próprio diretor em seu exílio forçado.”

Casa de Lava – Foto: Cinusp

 

Em Casa de Lava (Portugal, 1994, 105 minutos, direção de Pedro Costa), a enfermeira Mariana acompanha um paciente em coma de volta a Cabo Verde, sua cidade natal. “Filmado em Cabo Verde, este segundo longa-metragem de Pedro Costa inicia o contato do cineasta com a ilha. O país está presente também nos seus longas subsequentes, baseados na vida de pessoas que conheceu por lá. Da mesma forma que a intenção inicial da protagonista se esvai aos poucos no contato com as pessoas da Ilha do Fogo, a história do filme se dissolve numa espiral narrativa de complexidade inesperada.”

A Aventura (Itália, 1960, 144 minutos, direção de Michelangelo Antonioni) conta a história de Claudia e Anna, que se juntam ao amante de Anna, Sandro, em um passeio de barco para uma remota ilha vulcânica. Quando Anna desaparece, uma busca é iniciada. Nesse ínterim, Sandro e Claudia se envolvem em um romance, apesar do desaparecimento de Anna. “A Aventura compõe a Trilogia da Incomunicabilidade, com A Noite (1961) e Eclipse (1962). Nesse filme, o diretor Antonioni estabelece seu estilo autoral de forma marcante, afastando-se do tom documental que prevalecia no cinema dos primeiros neorrealistas. Ele utiliza silêncios, diálogos lacônicos, planos longos e um final inconclusivo para criar uma nova abordagem, extremamente radical, da construção narrativa no cinema.”

O filme nacional presente na nova mostra do Cinusp é São Paulo, Sociedade Anônima (Brasil, 1965, 111 minutos, direção de Luiz Sérgio Person), cujo roteiro pode ser resumido assim: “Apesar do sucesso na vida profissional, Carlos, um trabalhador da indústria automobilística paulistana, não consegue encontrar satisfação ou sentido no que faz”. “No seu primeiro longa, Luiz Sérgio Person personaliza em Carlos a agonia da cidade de São Paulo. No contexto da automatização do trabalho fabril, encontramos um personagem que se perde frente à repetição e ao ritmo frenético das máquinas”.

A Mulher Sem Cabeça – Foto: Cinusp

 

Em A Mulher Sem Cabeça (Argentina, 2008, 90 minutos, direção de Lucrecia Martel), a dentista Vero, num momento de desatenção ao volante, atropela algo. “Sem saber se foi alguém, algum bicho ou apenas um solavanco na estrada, a mulher segue caminho sem prestar socorro. Nos dias que seguem, ela é atormentada pela probabilidade de ter matado alguém”, informa a sinopse do Cinusp. “Em A Mulher Sem Cabeça, Lucrecia Martel dilui a narrativa de seu filme na isenção da classe média argentina. A protagonista, frente à possibilidade de ter matado uma pessoa, entra em estado catatônico, assim como a trama. A paralisia de ambas revela o caráter desmobilizante da culpa. Presas em espiral, Vero e a sua história escolhem a letargia e nunca saem do universo da hipótese.”

O Fim da Viagem, o Começo de Tudo (Japão, 2019, 120 minutos, direção de Kiyoshi Kurosawa) aborda a história de Yoko, que viaja ao Uzbequistão para gravar uma série de reportagens sobre a cultura local para a televisão japonesa, mas passa a se sentir cada vez mais desconectada do mundo e das pessoas a seu redor. “Neste filme aparentemente plácido e sereno, a direção de Kiyoshi Kurosawa, tradicionalmente ligado ao terror, acentua o sentimento de desconforto e inconformidade que permeia as cenas da trajetória de Yoko. Assim como ela, somos levados por uma angústia que não cessa, esperando que algo aconteça ou se revele, ainda que não saibamos bem o quê.”

O Fim da Viagem, o Começo de Tudo – Foto: Cinusp

 

Por sua vez, Os Maridos (Estados Unidos, 1970, 131 minutos, direção de John Cassavetes) relata que três grandes amigos em luto vagam pela cidade em busca de diversão. “Entre longas cenas sem corte, em close-ups sufocantes, acompanhamos personagens que são isoladas de seus contextos e ambientes. Diminuídos e deformados por seus complexos, os três amigos não possuem raízes ou sequer ligação com o mundo exterior. Entre conversas longas e improvisadas, perambulam sem destino em um hiato sem ordem.”

Finalmente, em Um Elefante Sentado Quieto (China, 2018, 234 minutos, direção de Hu Bo), que se passa numa pequena cidade do norte da China, quatro pessoas interligadas enfrentam os acontecimentos de um dia difícil. Enquanto isso, tornam-se obcecadas pela imagem quase mitológica de um elefante na Manchúria, que, supostamente, apenas senta e observa passivamente o mundo ao seu redor. “Neste que foi o primeiro e último trabalho cinematográfico de Hu Bo, falecido em 2017, logo após terminar o filme, encontramos um retrato agudo de problemas sociais da China contemporânea, entrelaçados pela busca metafísica compartilhada pelas personagens, centrada na imagem do elefante. A distensão temporal da narrativa corresponde à natureza dessa procura, que só encontra respaldo em si.”

“O Cinusp convida seu público para que encare o abismo transmitido pela ótica desses grandes cineastas nas faces de seus personagens. As narrativas disformes fazem parte de um mundo sem forma, e cabe ao criador e ao espectador que lidem com o que sobra das histórias quando as narrativas encadeadas não cabem mais neste mundo que não funciona, e talvez nunca tenha funcionado, de maneira encadeada”, conclui o texto de apresentação da mostra.

A mostra Faces do Abismo, do Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp), fica em cartaz de 7 a 31 de agosto, na Sala Paulo Emilio (Rua do Anfiteatro, 181, na Cidade Universitária, em São Paulo) e na Sala Maria Antonia (Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do Metrô). Entrada grátis. A programação completa do evento e mais informações estão disponíveis no site do Cinusp.

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