O mar vai e depois vem. Carrega caravela e devolve nevoeiro. Leva nevoeiro e entrega devaneio. Arrasta o devaneio e retorna o desejado. Uma mensagem que amarra o passado glorioso ao desejo de glória no futuro. Um rei que se perdeu e um dia voltará erguendo o Quinto Império, destino português.
O movimento das ondas parece apropriado, em certo aspecto, para se pensar a dinâmica que o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) imprime em Mensagem (1934), seu único livro em língua portuguesa publicado em vida. O poder e o renome do passado de Portugal chegam ao leitor através dos heróis lendários e históricos da formação e apogeu lusitano – realizado na expansão ultramarina – para depois se perderem no nevoeiro que se tornou o país em seu crepúsculo, segundo a mirada de Pessoa, e depois lampejarem como esperança.
Mensagem é um livro que ata, através do mito e do misticismo, a história de Portugal ao desejo do poeta de ver o país superar a decadência. É uma obra que ocupou 21 anos da vida de Pessoa: segundo anotações do próprio escritor num exemplar da primeira edição do livro, os 44 poemas de Mensagem foram compostos entre 1913 e 1934.
Dizer que se trata de uma obra saudosista é olhar de maneira apressada para o livro. É possível, sim, encontrar o poeta nostálgico da retumbância do império marítimo português, quando seus navios alargaram o mundo conhecido pelos europeus e despejaram lusitanos na África, Ásia e América. Da mesma forma, está lá a melancolia – e a imagem de alguém na praia, puxando fundo o ar é boa – diante do que restou de Portugal no começo do século 20. Esses dois horizontes, contudo – passado radiante e presente declinante –, se unem menos pelo saudosismo do que por uma vontade do poeta de construir o futuro.
Sobre brasões, mares e encobertos
Parte central da experiência de Mensagem é a própria estrutura através da qual Pessoa organiza seus poemas. Três seções alinham a obra – Brasão, Mar Português e O Encoberto – delimitando tempos, conforme expressão da professora e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Cleonice Berardinelli, autora da primeira tese brasileira sobre o autor.
Brasão, primeira parte de Mensagem, é o tempo da preparação. Seus poemas tratam das personagens míticas e históricas da origem, fundação e constituição de Portugal. Aparecem aqui a figura mitológica de Ulisses – presente na Ilíada e na Odisseia e que teria fundado Lisboa –, Viriato, líder dos lusitanos contra Roma no século 2 a.C., e uma seleção de nobres e monarcas articuladores da conquista marítima. Conhecimentos da história portuguesa ou a posse de uma edição de Mensagem acompanhada de boas notas explicativas são determinantes para acompanhar o desenrolar de nomes e feitos.
Surgem nos versos de Pessoa figuras como d. Henrique, que recebeu o título de Conde de Portucale (futuro Portugal); d. Afonso I, o primeiro rei de Portugal; d. Dinis, o Rei-Poeta, imortalizado por suas cantigas de amigo e cantigas de amor, mas que também foi um incentivador da agricultura; d. João I, que derrotou os castelhanos e em cujo reinado os portugueses chegaram às ilhas de Porto Santo, Madeira e Açores; o infante d. Henrique, figura central na expansão ultramarina; e d. João II, que assinou o Tratado de Tordesilhas.
Conforme o título sugere, os poemas dessa primeira parte foram edificados por Pessoa tendo como referência o Brasão de Armas de Portugal e é a partir dessa figura que o poeta recria a história lusitana. Dentro da seção, portanto, eles são subdivididos mais uma vez, a partir dos elementos constitutivos do brasão.
Assim, os dois poemas de abertura do livro representam os campos – os espaços nos quais estão situados os castelos (campo externo) e os escudos ou quinas (campo central) do brasão. Em seguida, os sete castelos do campo externo se versificam em oito poemas (o sétimo castelo recebe dois poemas), abarcando desde as origens míticas com Ulisses até d. Filipa de Lencastre, mãe de d. Duarte, e de outras personagens responsáveis pelo desenvolvimento das navegações.
Essa geração nascida de d. Filipa e d. João I aparece nos quatro dos cinco poemas que fazem referência às quinas do campo central, dedicados à expansão marítima, sendo o quinto para d. Sebastião, rei que se perdeu na Batalha de Alcácer-Quibir contra os marroquinos, evento marcante do declínio do império português. Depois, um poema correspondente à coroa é atribuído ao chefe militar Nunálvares Pereira e três, dedicados a personagens centrais das navegações, encerram a primeira parte representando o timbre – uma insígnia que, na heráldica, é colocada sobre o brasão e, aqui, aparece como a figura mitológica do grifo.
“Em Brasão, dividida em cinco seções, temos a formação de Portugal, sua defesa e as primeiras dinastias”, explica Paola Poma, professora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Temos d. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, que vai trazer a independência do reino em relação a Leão e Castela e aos mouros. Temos o casal d. João, mestre de Avis, e d. Filipa de Lencastre, geradores do que Camões chamou em Os Lusíadas de ínclita geração (em virtude do valor e importância desses príncipes). Temos personagens centrais para o momento inicial da expansão marítima, como d. Henrique. Brasão é central para a organização política e origem de Portugal enquanto uma nação.”
A segunda parte, Mar Português, é o tempo da realização e da queda. Aborda a expansão marítima, o domínio das águas e o apogeu do império português. Diferentemente da primeira parte, seus 12 poemas vêm sem divisões, como ondas que se expandem, refazendo a cronologia das navegações e conquistas lusitanas. Aparecem aqui personagens históricas como os navegadores Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama, este merecedor de um poema que narra com grandiloquência sua ascensão aos céus, momento em que até mesmo deuses e gigantes interrompem sua guerra para prestigiar a glória portuguesa.
É nessa seção que se encontra também Mar Português, provavelmente o poema mais conhecido de Mensagem:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
A glória de Portugal segue em crescendo até Ascensão de Vasco da Gama, para encontrar seu cume reflexivo com Mar Português. Os dois poemas seguintes, que encerram a segunda parte, marcam o tempo da queda. A Última Nau trata da queda de d. Sebastião e Prece é uma oração pedindo a Deus o sopro que despertará Portugal para novas conquistas.
“O fato de não haver nenhuma subdivisão, nenhuma ruptura, simboliza justamente a expansão marítima, que é de uma grandeza infinita”, analisa Paola. “Pessoa coloca em sequência as personagens mais importantes dessa expansão. Existe uma relação simbólica entre a ausência de subdivisão em Mar Português e a extensão do mar conquistado, espaço a partir do qual os portugueses organizam um novo mundo.”
Com O Encoberto, a terceira parte, Pessoa entra no tempo da espera. Os mitos do sebastianismo e do Quinto Império dominam suas três seções: Os Símbolos, Os Avisos e Os Tempos. Enquanto Brasão e Mar Português concentram-se no passado de esplendor, O Encoberto elabora o mito do retorno de d. Sebastião, evento catalisador da restauração do poder e do renome português. Saudosismo e esperança se misturam.
“O Encoberto é interessante porque tem três divisões e três é um número que aparece constantemente na obra de Pessoa”, comenta a professora Paola. “Aparece, por exemplo, nos heterônimos que ele nomeia – Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Em um texto bastante importante que escreve em 1912, A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada, Pessoa compara três nações – Portugal, França e Inglaterra. Há uma sucessão de trípticos que são muito significativos e carregam esse misticismo que se encontra no livro e se concentra nessa terceira seção.”
Na primeira, Os Símbolos, esse misticismo se reforça na figura de d. Sebastião, perdida no areal, personificadora do Quinto Império, desejada, habitante de ilhas secretas e encoberta. Em Os Avisos, se intensifica na apresentação de Pessoa dos profetas do Quinto Império: Bandarra, o sapateiro autor de trovas messiânicas, Antônio Vieira, o orador máximo da cristandade, e um eu lírico que pode muito facilmente ser aproximado do próprio poeta. Nos cinco poemas que encerram a obra, como Os Tempos, esse misticismo chega ao ápice quando Pessoa amarra suas sensações sobre o apagamento e ostracismo de Portugal e aponta para a ânsia – e talvez previsão – do retorno à glória com a vinda de um novo d. Sebastião. Mas quem seria ele?
Um vanguardista temporário
Sendo Pessoa cotidianamente apresentado aos estudantes secundaristas nos livros didáticos como um autor do Modernismo português, a formalização, a linguagem e os temas de Mensagem podem despertar a curiosidade do leitor a respeito de como a tradição e o moderno se conjugam na obra. Onde um e outro se acham no livro?
Para o professor de Literatura Portuguesa Caio Gagliardi, também da FFLCH, é determinante para essa discussão entender a dimensão exata do envolvimento do poeta com as vanguardas literárias de sua época. “Pessoa é um autor normalmente enquadrado nos livros de história literária como um autor modernista. Mas eu diria que ele talvez seja mais propriamente um autor moderno. É que a vanguarda durou pouco.” Segundo o docente, o vanguardismo de Pessoa não teria caminhado muito depois de 1916. A revista Orpheu, por exemplo, surgida em 1915 e inauguradora do Modernismo em Portugal, na qual Pessoa publicou seus trabalhos, não foi além da segunda edição. Portugal Futurista – considerada por alguns como a herdeira de Orpheu – teve apenas um número, em 1917.
Assim, a fisionomia modernista de Pessoa aparece mais claramente nesses momentos iniciais da sua carreira, explica o professor. Isso inclui alguns poemas assinados por Fernando Pessoa ele mesmo, tal qual Chuva Oblíqua, de 1914, e também a primeira fase da poesia de Álvaro de Campos, um de seus grandes heterônimos, como se vê em Ode Marítima, Ode Triunfal e Saudação a Walt Whitman. Mas mesmo essas incursões vanguardistas de Campos, na leitura de Gagliardi, merecem olhares cuidadosos. “Essas são performances modernistas, futuristas. Mas por que performances? Porque elas também são irônicas e saudosistas. Esse é um momento da obra de Campos que podemos chamar de modernista, mas de um modo muito particular.”
No caso de Mensagem, mesmo que seu poema mais antigo tenha sido composto em 1913, o professor ressalta que a maior parte da obra data do final dos anos 1920 e dos anos 1930. Portanto, distante do contexto modernista. “E em todos esses poemas Mensagem é um livro que exercita a forma fixa, o verso metrificado e rimado. Ou seja, justamente aquelas características refutadas pelos modernistas”, conta Gagliardi. “O modernismo de Pessoa foi, de certa forma, temporário. Melhor dizendo, o vanguardismo de Pessoa foi temporário.”
Camões, ritualisticamente assassinado
Quando Mensagem é encarado do ponto de vista da tradição, é fácil lembrar de Os Lusíadas, de Camões, e também é tentador procurar diálogos entre as duas obras. A expansão marítima, o desfile de reis e rainhas e as cores de exaltação com as quais Portugal é pincelado são alguns dos ecos que uma envia à outra. Vale a pena, portanto, um mergulho nas possibilidades que a leitura cruzada oferece.
Para a professora Paola, é evidente que o diálogo central envolve a história de Portugal. “Talvez a imagem mais emblemática presente nos dois poemas seja o domínio dos mares. No caso de Camões, é a figura do gigante Adamastor. No caso de Pessoa, a figura do Mostrengo.” Gagliardi concorda que Os Lusíadas é uma obra claramente implicada em Mensagem.
“Há um momento em Os Lusíadas, no Canto 8, em que as naus chegam à Índia e Paulo da Gama explica ao Catual a história das figuras presentes nas flâmulas das embarcações, repassando linearmente a história de Portugal”, relembra o professor. “Em Mensagem, Pessoa retoma algumas das personagens centrais da história antiga de Portugal, que muitas vezes coincidem com as relatadas em Os Lusíadas. Esse é o traço épico de Mensagem.”
Gagliardi chama a atenção, entretanto, para uma diferença fundamental entre as obras. “Note: Mensagem não é um poema narrativo. Não há nenhuma linearidade no livro, porque há saltos enormes entre a figura histórica de um poema e a figura histórica de outro. Não há elos entre os poemas. Não há, portanto, uma narratividade, uma relação de decorrência, como há em Os Lusíadas.”
São justamente as diferenças entre os livros que mais interessam a Paola. A docente também recorda a variação nesse relato dos reis e vai além na observação. Pede atenção à ressalva de que Camões escreve no século 16, no calor da hora, muito próximo dos acontecimentos relatados, diferentemente de Pessoa, que reelabora tudo no século 20.
“Camões fala muito próximo de um acontecimento que é genial, enquanto Pessoa tem uma consciência histórica, isto é, fala sobre o fantasma de uma realização heroica que mudou o curso do mundo e com a qual tem de lidar””, explica Paola. “A imagem do Encoberto é a tentativa de trazer de volta para Portugal esse poder que o século 16 representou a partir das navegações.” É assim que d. Sebastião, o homenageado de Os Lusíadas, surge como figura central em Mensagem, sobretudo na terceira parte, como o Encoberto.
Outra diferença decisiva apontada pela professora: na epopeia camoniana, é de Vasco da Gama a voz que coordena toda a narrativa. Já em Mensagem, Pessoa multiplica o eu lírico e abusa da polifonia. “Há a voz de um sujeito lírico que se mistura com a própria figura de Pessoa, assim como as vozes de vários reis se colocando no poema; o Mostrengo, é o mar que fala”, lembra Paola. “Essa pluralidade de vozes, típica de Pessoa, representa também a fragmentação do século 20, a modernidade. A heteronímia está lá muito sobreposta.”
Durante o exame das relações entre Os Lusíadas e Mensagem, seja para encontrar repetições, seja para sublinhar diferenças, um dado curioso aparece: Camões não é, ao menos explicitamente, citado na obra de Pessoa. “O nome dele não aparece”, comenta Gagliardi, lembrando que, por outro lado, figuras menos prováveis, como Bandarra ou Antônio Vieira, têm seu lugar no livro. “Existe em Mensagem uma rasura de Camões. Eduardo Lourenço, importantíssimo pensador português, ao escrever um texto a respeito de Camões e Pessoa, diz que em Mensagem Pessoa realizou o assassinato ritual de Camões.”
Um assassinato com cúmplices, talvez seja possível dizer, forçando a metáfora e permitindo a brincadeira. Isso porque a relação entre Os Lusíadas e Mensagem, conforme aponta o professor, não acontece apenas por uma leitura direta do texto de Camões por Pessoa. “Existem outras obras da época de Pessoa, e um pouco anterior a ele, que estabelecem diálogo com Os Lusíadas e são praticamente desconhecidas no Brasil e muito pouco lidas em Portugal. Como Lusitânia (1917), de Mário Beirão, A Hora de Nun’Álvares (1916), de Augusto Casimiro, e D. Sebastião (1898), de Luiz de Magalhães. São autores menos estudados, mas todos leem Os Lusíadas e serviram de fonte direta e mais próxima de Mensagem. Ou seja, entre as duas obras existem mediações que ainda são pouco conhecidas.”
O carnaval religioso de Pessoa
Gagliardi define Mensagem como uma obra sincrética e nota aí outro paralelo com Os Lusíadas: da mesma forma que Camões mobiliza Baco e Vênus num livro que louva a cristandade, Pessoa se sente livre para entrelaçar mitologia greco-latina, temas do ciclo da Távola Redonda e referências cristãs.
Um exemplo dessa liberdade aparece no segundo poema do livro, O das Quinas:
Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!Baste a quem basta o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
Se, no primeiro verso, Deus está no plural, uma referência às divindades da mitologia clássica, na última estrofe, com Deus, Cristo e Filho, Pessoa transita para a mitologia cristã. “Veja que esse poema é completamente sincrético”, anima-se Gagliardi. “Esse detalhe do plural no primeiro verso é difícil de ser reparado, mas que mistura, que heresia é esse poema para a mentalidade cristã. É um carnaval religioso.”
Em outros poemas de Mensagem, esse universo sincrético se expande ainda mais. Pessoa se vale também da tradição bretã, das lendas do Rei Artur e da Távola Redonda, trazendo imagens como a espada Excalibur, o Santo Gral e o cavaleiro Galaaz. Além do potencial simbólico dessas referências, o professor sublinha o nó histórico que o poeta firma ao lançar mão desses elementos.
D. Filipa de Lencastre, poema que encerra Os Castelos, é um dos que partilham do universo arturiano. “Lencastre é uma Lancaster. Ou seja, d. Filipa foi neta do rei da Inglaterra e filha do duque de Lancaster”, explica Gagliardi, enfatizando a conexão entre o elemento da lenda bretã e a personagem-título do poema:
Que enigma havia em teu seio
Que só gênios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia?Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Gral,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!
Mas é mesmo o imaginário, a simbologia e o misticismo cristão que dominam a obra, como sua primeira epígrafe já adianta: Benedictus Dominus Deus Noster Qui Dedit Nobis Signum – “Bendito Deus Nosso Senhor, que nos deu o sinal”. “Entramos no livro com um aviso”, indica Paola. “Se Mensagem representa Portugal – porque o primeiro título do livro era Portugal –, ele está dizendo que Portugal, em alguma medida, é um país predestinado.”
Essa predestinação reaparece, recorda a professora, em O Conde d. Henrique, terceiro poema de Os Castelos, como atesta sua primeira estrofe:
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
“Pessoa diz: Deus é o agente”, analisa Paola. “Ele mostra claramente a impotência do homem e Deus agindo sobre esse homem, Conde d. Henrique, pai de Afonso Henriques. D. Afonso I, que será abençoado, libertará Portugal e garantirá sua independência a partir de uma visão de Cristo que precede à batalha.” Nunálvares Pereira, poema de A Coroa, é mais um que versa sobre a questão, dessa vez fundindo-a aos temas arturianos:
Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.‘Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
Paola relembra a batalha de Aljubarrota, decisiva para a independência de Portugal, travada entre lusitanos e castelhanos em 1385, na qual d. João I saiu vitorioso, tendo como condestável – segunda pessoa da hierarquia militar, atrás apenas do rei – justamente Nunálvares Pereira. Grande estrategista e – o que importa aqui – homem de grande fé, Nunálvares conduziu o exército português à vitória com um contingente largamente inferior de soldados. Seria, novamente, a marca da predestinação.
A mesma predestinação que encontra seu momento culminante na figura de d. Sebastião, o personagem central de O Encoberto, perdido no areal africano durante a campanha militar de Alcácer-Quibir. Esse desaparecimento e a ausência de um corpo, explica Paola, remetem imediatamente à figura de Cristo e também ao Rei Artur. “Todas essas conjunções garantem a eles serem um povo escolhido. Isso está muito entranhado na cultura portuguesa”, conta a professora. “E Pessoa, sendo português e místico, enfatizará isso o tempo inteiro. As duas coisas estão muito entranhadas. Não dá para separar a história portuguesa desse vínculo com o imaginário cristão.”
A dinâmica do eu lírico
A leitura atenta de Mensagem revela a constante mudança que Pessoa imprime no eu lírico dos poemas, conforme Paola observara a respeito da comparação com Os Lusíadas. É possível mesmo falar que existe uma dinâmica do eu lírico na obra e, segundo Gagliardi, notar esse movimento é determinante para se entender o livro.
Quem é que fala em Mensagem? Ou, em outros termos, qual é o sujeito elocutório do livro? “Na verdade, são muitos os sujeitos elocutórios”, comenta o professor. “Se começamos a ler o livro, em uma primeira leitura essas vozes vão nos confundindo, depois passamos a prestar atenção em quem está falando.”
Se voltarmos ao começo do livro determinados a escutar essa polifonia, logo as diferenças se fazem ouvir. Os dois primeiros poemas, que integram Os Campos, apresentam uma voz impessoal, de uma terceira pessoa distanciada, como já anuncia a primeira estrofe de O dos Castelos:
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
É ainda uma terceira pessoa que fala na segunda seção de Brasão, Os Castelos. Mas agora essa voz se dirige a uma segunda pessoa, a figura histórica que intitula cada poema, como se percebe na primeira estrofe de D. Afonso Henriques:
Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Nova metamorfose do sujeito elocutório acontece na parte seguinte, As Quinas. Conforme Gagliardi conta, a simbologia das quinas envolve as chagas de Cristo, remetendo portanto a um contexto espiritual. Dessa forma, as duas partes anteriores – Os Campos e Os Castelos – usam a terceira pessoa no trato com o que é externo, relacionado ao estratégico e à fortificação, enquanto a espiritualidade de As Quinas se manifesta com o uso da primeira pessoa. Aqui, há uma única voz, em primeira pessoa, para cada poema. E quem fala é a própria figura histórica do título:
D. Duarte, Rei de Portugal
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
Quando entramos em Mar Português, segunda parte de Mensagem, outra transformação significativa acontece com o eu lírico. Agora é um coletivo que fala, a voz do próprio povo português. Dentre os múltiplos exemplos do emprego dessa primeira pessoa coletiva está a estrofe de abertura de Os Colombos:
Outros haverão de ter
O que houvemos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Essa variedade toma conta também de O Encoberto, a terceira e última parte da obra. Se é o próprio d. Sebastião que fala, em primeira pessoa, no poema que abre a seção, em O Desejado é a ele que o eu lírico se dirige. Já a primeira pessoa do plural retorna em As Ilhas Afortunadas e Tormenta. Mas, talvez, o eu lírico mais sugestivo seja o que aparece no terceiro poema sem título de Os Avisos:
‘Screvo meu livro à beira-mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
Nesse poema, o único sem título em Mensagem, Gagliardi destaca a proximidade do eu lírico com o próprio Pessoa. Inserido em Os Avisos, segue-se ao poema Bandarra, sobre o sapateiro-profeta imortalizado pelas trovas messiânicas e por Antônio Vieira, que aqui também é tratado pelo autor como um profeta do sebastianismo e do Quinto Império. Quem seria então o terceiro profeta não nomeado de Os Avisos?
Gagliardi prefere deixar a resposta subtendida por enquanto. “Sugestivamente, poderíamos dizer que o terceiro profeta é um encoberto, porque é justamente aquele cujo nome foi omitido. E esse encoberto, sabemos que é poeta, porque ele escreve seu livro: ‘Screvo meu livro à beira-mágoa’. Essa pode ser uma mensagem subliminar de Mensagem. E, para bom entendedor, meia palavra basta.”
Uma concepção heroica da história
Já ficou claro que em Mensagem é evidente o interesse de Pessoa em revisitar a história de Portugal. O poeta faz isso, contudo, sem a vontade de transformar sua obra em uma enciclopédia de reis ou um itinerário de conquistas. A maneira como Pessoa organiza os temas do livro revela muito mais a concepção de história defendida pelo próprio autor.
De acordo com Gagliardi, Pessoa adota um ponto de vista que contrasta com as teorias mais modernas e difundidas da história, como a marxista, por exemplo. “No fundo, o que Pessoa faz é adotar uma concepção heroica da história”, comenta. “Uma perspectiva derivada das leituras que ele, ainda na adolescência em Durban, na África do Sul, faz de alguns autores românticos. Entre esses autores, eu destacaria Thomas Carlyle, pensador escocês do século 19 que escreveu uma obra traduzida para o português como Sobre os Heróis. Essa é uma obra fundamental, na qual Carlyle estabelece a correlação entre o herói e a história.”
Mas que ideias Pessoa extrai dos escritos do autor escocês? Gagliardi explica. “Ele pensa assim: se o destino das nações é determinado por alguns acontecimentos, estes se devem, por sua vez, a decisões ou ações de uns poucos indivíduos. Veja como isso soa aristocrático, porque essa não é uma perspectiva que enfoca a coletividade ou as minorias. Ao contrário, é uma visão individualista da história. Mas quem são esses indivíduos? Para Pessoa, são seres excepcionais, não necessariamente de uma elite aristocrática.”
O fundamental, frisa o professor, é que esses indivíduos não teriam consciência da própria excepcionalidade. Assim, essa concepção aparece em Mensagem através da representação do herói como simples ferramenta divina, conforme visto em O Conde D. Henrique. “O herói presta assistência a Deus, é uma espécie de ferramenta na mão de Deus”, analisa Gagliardi. “Veja que essa não é uma reflexão racional a respeito do destino da nação. Mensagem não é um poema que incorre por deduções políticas ou econômicas, como se faz hoje. Na verdade, o destino humano para Pessoa – e essa é uma visão que está presente em toda a sua obra – parece que está em um tabuleiro, e os peões são os heróis. Mas a mão que movimenta esses peões é divina.”
Para o professor, além de heroica e individualista, essa concepção de história adotada pelo poeta possui ainda uma faceta metafísica. “Pessoa diz em vários momentos de sua obra que almejava ser um criador de mitos – aliás, a começar por si mesmo –, e basta lembrar do anúncio que fez, ainda em 1912, em uma série de artigos publicados em A Águia, uma revista republicana e saudosista. Esses artigos tinham o título geral de A Nova Poesia Portuguesa e ali Pessoa anunciava o aparecimento de um Supra-Camões.”
Esse mesmo caráter profético dos artigos de 1912, segundo Gagliardi, está presente em todo o Mensagem, que desde seus poemas iniciais opera a conversão de personagens históricos em mitos. Talvez a melhor síntese disso seja o verso de abertura de Ulisses, primeiro poema de Os Castelos:
O mito é o nada que é tudo.
Dentro dessa reflexão sobre a concepção histórica envolvendo Mensagem, o professor considera, contudo, que o mais importante é a orientação que Pessoa escolhe. Todo o livro se orienta não para o passado, mas para o futuro.
“O ponto de fuga do livro é a construção de um Quinto Império futuro”, explica Gagliardi. “Toda a terceira parte tem esse caráter fortemente sebastianista de renascimento, de prenúncio, de uma espécie de virada decisiva. Por esse motivo, é importante destacar ainda, pensando na concepção histórica de Pessoa, o viés messiânico do livro. Desse ponto de vista, o último poema, Nevoeiro, é exemplar. Ele se encerra com versos altamente sugestivos”:
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…É a Hora!
“Veja que se trata do anúncio de um momento histórico que já está para surgir. Essa concepção de história é também uma concepção messiânica”, complementa o professor, já indicando o próximo tópico de interesse nessa cartografia sobre Mensagem.
Sebastianismo e o Quinto Império
Como se desenvolve e qual é a direção exata do sebastianismo que Pessoa atrai para Mensagem?
“Nós sabemos que os grandes mitos surgem nos momentos de crise”, explica Paola. “A figura do Bandarra (profeta e sapateiro do século 16, famoso por suas trovas messiânicas que foram associadas ao sebastianismo) já pressupõe o prenúncio de alguém que virá reorganizar o mundo – o mundo português, em especial – e teremos isso, de alguma maneira, reformulado nos textos do padre Antônio Vieira, que escreve na metade do século 17, pensando o Quinto Império já vinculado à morte de d. Sebastião, em 1578.”
De acordo com a professora, Vieira reúne ao misticismo em torno de d. Sebastião a crença de que o Quinto Império estaria vinculado a d. João IV, o primeiro rei de Portugal após os 60 anos de domínio espanhol – período compreendido entre 1580 e 1640 e preludiado pelo desastre de Alcácer-Quibir. Quando d. João restaura o trono português, Vieira lê essa vitória como sinal de que o monarca representaria o regresso de d. Sebastião.
Pessoa se apropria desses mitos e nomeia d. Sebastião como o Encoberto e o Desejado, em uma clara tentativa de resgatar aquele Portugal do século 16, indica Paola. Contudo, o poeta dá sequência ao mito, conforme atesta um texto de 1925 do próprio autor, incluído no volume Fernando Pessoa: Sebastianismo e Quinto Império:
“A primeira vinda, 1640, mostra isto bem”, escreve Pessoa. “A data marca o princípio de uma dinastia e a vinda de d. Sebastião foi ‘encoberta’, foi através de nevoeiro, pois julgando todos – em virtude de sua simbologia primitiva – que o Encoberto era d. João IV, em verdade o Encoberto era o fato abstrato da Independência, como aqui se viu. Na Segunda Vinda, em 1888, por pouco que possamos compreender, compreendemos contudo que a profecia tradicional se cumpre: sabemos que 1888 é ‘manhã’, porque é o princípio do Reino do Sol.”
Para Pessoa, explica Paola, a interpretação de Vieira de que d. João IV representaria o encoberto foi equivocada. A leitura do poeta oferece uma segunda data, não mais 1640, mas 1888, justamente o ano do seu próprio nascimento. “Ele se confunde com essa figura mítica de d. Sebastião, como se ele, através da sua obra, pudesse salvar Portugal e tirá-lo do caos”, revela a professora. Uma releitura alicerçada em um profundo misticismo, cultivado em leituras que vão do espiritismo à cabala, passando pela rosa-cruz, antroposofia, astrologia e teosofia, para citar alguns dos interesses do poeta. Pode ser considerado megalomania para alguns, mas Paola prefere ver aqui a clareza de um gênio sobre seu próprio projeto, sedimentado em um grande conhecimento de Portugal e de sua literatura e da literatura europeia e americana.
É assim, complementa a professora, que Pessoa parte do referencial cristão português e o reúne em um projeto particular de engrandecer Portugal via literatura. “Misticismo e sebastianismo estão muito vinculados à história de Portugal e à história dele próprio, porque ele se mistura nessas duas vertentes”, comenta.
Fica evidente, com tudo que se falou até agora, a existência de um projeto pessoano para resgatar, salvar, engrandecer (muitos termos cabem aqui) Portugal. Isso traz à superfície duas indagações. Uma delas envolve entender melhor os meios pelos quais o poeta imagina essa ação restauradora. A outra, o que Pessoa via e julgava de seu país para considerar necessária essa ação. Começaremos por essa questão.
Paradoxo Pessoa
Fato controverso na biografia de Mensagem é o Prêmio Antero de Quental, recebido em 1934, um reconhecimento do Secretariado da Propaganda Nacional do Estado Novo português. Esse voto de confiança oficial revelaria o alinhamento da obra – e do poeta – com a ditadura salazarista?
Paola defende que não é possível definir Mensagem como um livro representativo do regime de Salazar. A maneira como o contexto sociopolítico português envolve a obra – e eventualmente corre por ela – é mais complexa do que um simples reconhecimento de alinhamento ou não com o Estado Novo, na opinião da professora.
“O primeiro texto de Mensagem que Pessoa escreve, em 1913, foi D. Fernando, Infante de Portugal (que anteriormente se chamava Gládio). A obra foi escrita de 1913 até 1934, em torno de 21 anos”, conta Paola. “Como as duas primeiras partes, Brasão e Mar Português, são as fundadoras, digamos assim, de Portugal, com a configuração do Estado e vai até 1580, nessas duas partes, mesmo que Pessoa tenha escrito entre a república e o Estado Novo, não é possível ver nenhuma marca do tempo na escrita, do tempo no qual ele está inserido.”
Isso se altera, na visão da docente, quando chegamos à terceira parte, O Encoberto, cujos poemas foram escritos entre 1928 e 1934, já no contexto da ditadura militar de 1926, que germinaria no Estado Novo de 1933. “Aqui ele está olhando e criticando o país, tentando buscar alguém que venha dar novo ânimo e força. Porque a situação de Portugal é caótica. A república foi absolutamente instável e a ditadura também não foi uma coisa confortável. Digo confortável no caso de Pessoa, porque ele tem um pensamento bastante ambíguo e complexo, em alguns momentos conservador, em outros não. Então, desse ângulo, se pensarmos comparativamente ao tempo dele, podemos arriscar dizer que há uma insatisfação política e, portanto, uma insatisfação com Salazar.”
Entretanto, como tudo envolvendo Fernando Pessoa, a questão é plural. Paola faz questão de recordar um episódio que, justamente em vez de matar a charada, torna-a mais fascinante e multifacetada. Trata-se do poema que o autor publicou em 1920 em memória de Sidónio Paes, militar e político que governou Portugal de forma ditatorial de 1917 a 1918, quando foi assassinado. Vendo no ditador uma força capaz de tirar o país do caos político que o espancava, Pessoa escreve o elogio fúnebre intitulado À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes, no qual compara o ditador à figura de d. Sebastião.
“Se você olha de um ângulo, Pessoa concorda com essa ditadura”, reflete a professora. “Por outro lado, em Mensagem há uma coisa suspensa, ele está olhando e criticando Portugal, desejando que alguém venha para resgatar esse país. Acho que o pensamento político de Pessoa é, de alguma maneira, conservador. Mas é também mais do que conservador. Ele tenciona todas as coisas e isso faz com que ganhe uma espécie de ambiguidade ou até mesmo crie paradoxos. Pessoa dizia que ele é o paradoxo. Então, se ele é o paradoxo, seu modo de pensar é necessariamente criando antíteses.”
A mensagem
Para muita gente, as primeiras perguntas que o livro de Pessoa suscita, antes mesmo da leitura – e que, provavelmente, se repetem quando se alcança os versos finais da obra –, são bastante diretas: afinal, qual é a mensagem e para quem ele se destina?
As respostas não são tão simplórias e singulares quanto uma leitura apressada do livro pode sugerir. Entender o processo de batismo de Mensagem e as pretensões de Pessoa para a obra – e para si mesmo – enriquece as possibilidades de interpretação. É Gagliardi quem explica:
“Mensagem é um título que foi dado de última hora. No início, Pessoa escrevia um livro chamado Gládio. Depois, um livro chamado Portugal, título exclusivamente nacionalista. Mas Pessoa conta uma história muito saborosa a respeito: um amigo, Alberto da Cunha Dias, disse-lhe que Portugal havia se tornado uma marca de sapatos – assim como Avis, o nome da principal dinastia portuguesa, se tornara nome de hotel, os Hotéis Avis. Cunha Dias teria dito: você quer o título de seu livro em analogia com ‘portugalize os seus pés?’, que era a propaganda da marca de sapatos. Aí Pessoa diz que desistiu.”
O professor tem consciência de que o episódio pode não ter acontecido exatamente dessa forma, ou mesmo de que tudo não passou de uma invenção coerente com o espírito irônico e brincalhão de Pessoa. A despeito da veracidade ou não da história, o interessante, pontua Gagliardi, é que o termo “mensagem” amplia o alcance do livro, expressando suas dimensões simbólicas e messiânicas.
Uma anotação encontrada pelo crítico português José Augusto Seabra na famosa arca contendo o espólio deixado por Pessoa oferece uma nova dimensão para a questão do título da obra. Nela, o poeta registra uma citação em latim do Canto 6 de Eneida, de Virgílio, quando Anquises explica para Eneias o funcionamento do Universo: Mens agitat molem (“A mente move a matéria”). Ou, conforme Gagliardi extrapola, o espírito comanda a história. Pessoa teria batizado sua obra como referência cifrada do axioma virgiliano: Mens agitat molem. “Veja a visão espiritualista da história”, salienta o professor.
E qual é o sentido disso? “Mensagem é um título que já supera a significação meramente patriótica do título Portugal, porque já abre o livro na clave simbólica”, explica Gagliardi. “E essa clave simbólica se associa ao messianismo sebastianista, à profecia do Supra-Camões, ao mito do Quinto Império.”
Por trás desse simbolismo, o professor identifica uma visão apocalíptica que Pessoa projetava sobre o mundo. “De fato, Portugal alimentava um pouco essa visão”, comenta. Os motivos se avolumavam: a humilhação sofrida em 1890 com o ultimato britânico, no qual Portugal se viu obrigado a retirar suas tropas da África; o assassinato a tiros do rei d. Carlos I e seu filho, o príncipe herdeiro, em 1908; o clima de revanchismo entre monarquistas e republicanos; a crise econômica; além da Primeira Guerra Mundial, que mesmo sem ter sido travada em solo português levou vidas lusitanas.
Por que essa visão apocalíptica tem a ver com Mensagem? “Pessoa entrevia na crise, na decadência de uma civilização, um momento propício para o surgimento – e a visão é um pouco romântica mesmo – de um homem de gênio”, explica Gagliardi. “Ele dá exemplos naqueles artigos de A Águia, falando que assim surgiu um Shakespeare na Inglaterra isabelina e um Victor Hugo na França napoleônica. É preciso uma grande crise para aparecer uma figura dessas, um renascimento civilizacional, como ele diz.”
Dessa forma, Pessoa coloca em operação em Mensagem essa expectativa pelo renascimento civilizacional através do mito do Quinto Império – uma interpretação particular do poeta a partir da história contida no livro bíblico de Daniel, na qual Nabucodonosor sonha com uma estátua representativa de quatro impérios antigos e um novo império universal e celestial. “Para Pessoa, o Quinto Império seria universal e cultural – isso é importante –, capitaneado pela influência de uma língua, não pela ação bélica”, conta Gagliardi.
Visão que já poderia estar presente no poeta bem antes de os primeiros versos de Mensagem tingirem o papel. É o que Paola revela. “O mais importante na obra de Pessoa é a intenção que ele tem – desde moço, desde que volta da África do Sul para Portugal, com 18 anos – de criar um projeto literário vinculado necessariamente a dar destaque à língua portuguesa – como uma grande língua – e simultaneamente dar destaque a Portugal”, comenta a professora.
“Pessoa afirma que é preciso ter uma grande literatura para se ter um grande país”, continua Paola. “Por isso ele diz que em Portugal ainda vai surgir o Supra-Camões, talvez o Supra-Shakespeare. Que é ele. Ele sabe que é ele, está falando em relação a ele e pensando seu projeto. A literatura, do ângulo de Pessoa, é o grande projeto que une a língua, a política e a poesia.”
Uma das epígrafes de Mensagem, que abre Brasão, ilustra a visão do autor: Bellum sine bello (“Guerra sem guerra”). “É uma guerra cultural, não armada”, analisa Gagliardi. “E quem são os soldados? Os poetas. E que poetas são esses? É só lembrar da heteronímia – veja que megalomania impressionante.”
“E se esse Império é cultural, capitaneado por uma língua e pela ação de seus poetas, será que Pessoa não estava de certa forma certo?”, indaga o professor. “O que estamos fazendo aqui, um século depois, do outro lado do Atlântico, lendo Mensagem? Será que não é o próprio livro, que anuncia, a ferramenta fundamental para isso?”, conclui Gagliardi.