Apresentar as diversas interpretações e reflexões dos desafios atuais que confrontam e abalam a democracia na América Latina é a proposta do novo dossiê da Revista USP, número 109. Ao reunir os textos de estudiosos em história, sociologia e política do Brasil, Argentina, Peru, Chile e México, a edição faz uma retrospectiva da trajetória desses países propiciando uma reflexão sobre o cenário político atual.
“Este dossiê apresenta várias interpretações dos desafios atuais que confrontam a democracia na América Latina”, observa o professor e sociólogo Bernardo Sorj, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), organizador da edição. “Alguns textos elaboram seus diagnósticos focalizando a conjuntura atual pela qual passam os países dos autores, enquanto outros procuram avançar um marco interpretativo mais geral.”
Sorj orienta o leitor a observar, através dos textos, os fenômenos similares que podem ser encontrados nos diversos países. “O que não elimina as particularidades da forma em que eles se expressam nos diversos contextos nacionais.”
O artigo que abre o dossiê é assinado por Aldo Panfichi, professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Peru, e Juan Dolores, bacharel em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. “Desde 2000, a democracia peruana transitou sem problemas por quatro processos eleitorais subnacionais e quatro processos presidenciais. Não obstante, é considerada como um dos casos de maior fragmentação política na região”, observam os autores. “Tal fragmentação se expressa na separação ou desarticulação entre os atores, a dinâmica política e os resultados de nível nacional, com os quais se observa o nível regional e local. Do mesmo modo, também se percebe essa separação pelo crescente predomínio na escala regional e local de movimentos regionais sobre os partidos nacionais.”
Os professores traçam a representação político-eleitoral no Peru de 2001 a 2016. “Finalmente, ainda está por se ver se esses esforços de construção partidária significam uma melhora da democracia peruana”, analisam. “Esse é um processo em curso e precisa de tempo para amadurecer e se desenvolver.”
Experiência moderna
No texto “Globalização, América Latina e os desafios para a democracia”, Angelina Peralva, socióloga, ex-professora da USP e Professora Emérita da Universidade de Toulouse, na França, aponta a aceleração da globalização implodindo as condições institucionais-legais sobre as quais se assentou a experiência democrática moderna. “Multiplicaram-se em níveis exponenciais as práticas de contornamento da lei, ampliando-se ao mesmo tempo o leque dos envolvidos nessas transgressões legais. Agentes da chamada ‘globalização por baixo’ alinham-se ao lado de grandes forças econômicas, não raro com a conivência dos próprios Estados em um vasto movimento circular, frequentemente ilegal e planetário – envolvendo seres humanos e mercadorias. Formas extremas de violência estatal e não estatal subsistem nesse novo contexto, sem que isso necessite qualquer tipo de controle autoritário direto sobre o sistema político, ao mesmo tempo em que se desfazem as condições da representação partidária construídas ao longo do século 20.”
Fernando Mayorga, professor da Universidad Mayor de San Simon, na Bolívia, indaga, no ensaio “Democracia na América Latina: mudanças e persistências”, sobre a noção de ‘fim de ciclo’ estabelecendo uma distinção entre ‘ciclo político’ e ‘ciclo estatal’. Esclarece: “No primeiro caso, manifesta-se uma mudança no mapa político da América Latina que mostra um sinal diferente à ‘guinada para a esquerda’ que caracterizou os primeiros anos do século 20. No segundo caso, a transformação é menos evidente e previsível, posto que os modelos de desenvolvimento e padrões de acumulação não serão desmantelados sem conflito social nem desestabilização política, tal como acontece na Argentina, no Brasil e na Venezuela”.
“Dilemas e desafios da democracia na América Latina. Deterioração ou renovação” – o questionamento do título do artigo de Isidoro Cheresky, professor, consultor e titular de Teoria Política Contemporânea da Universidade de Buenos Aires, na Argentina, estimula a reflexão sobre os caminhos da democracia. “Desde o início do século 21, o regime político e a sociedade em alguns dos países da América do Sul experimentaram mudanças e conflitos que questionam o que se deve entender por democracia”, assinala. “No passado, a crítica revolucionária ou mesmo reformista nutria um desdém pelas liberdades públicas e pelas eleições de governantes como aparências que encobririam a dominação social e a exploração de uns pelos outros. Agora, o termo ‘democracia’ está na boca de todos e, inclusive, ampara regimes políticos com práticas que parecem colocar em risco a liberdade e a igualdade, princípios estes que, se não podem se tornar realidades factuais unívocas e plenas – pois encontraríamos o fim da política e da vida cívica – são, no entanto, em sua pretensão, próprios da democracia desde sua proclamação nas revoluções que os enunciaram e lhes deram vigência como derivativo das relações factuais.”
Encontros e desencontros
Javier Couso, professor da Universidade Diego Portales, no Chile, apresenta o ensaio “Encontros e desencontros: balanço do estado da prática democrática na América Latina”. Ele afirma que, para além do fato positivo de que a democracia seja o único método legítimo para se exercer o poder, a qualidade da democracia na região ainda deixa muito a desejar. “Entre outros desafios, destacam-se a persistência, em muitos países, de sérios abusos aos direitos humanos – perpetrados pelas polícias e outras entidades armadas – a existência de uma corrupção galopante e a incapacidade de diminuir as desigualdades socioeconômicas para além das conquistas em matéria da redução da pobreza. A continuar assim, estes flagelos poderiam colocar em perigo os impressionantes avanços democráticos das últimas décadas.”
No artigo de Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o leitor tem uma referência da construção democrática latino-americana a partir da obra de Guillermo O’Donnell e da sua percepção acerca dos problemas para a construção da democracia. “Iremos abordar a questão democrática na região a partir dos processos de constitucionalismo e o novo equilíbrio de poderes na América Latina”, esclarece. “Especialmente neste último período, entre 2000 e 2015, houve um fortalecimento das instituições jurídicas, mas o nosso argumento é que esse fortalecimento ainda não gerou uma estrutura de equilíbrio de uma democracia consolidada. Pelo contrário, é possível observar elementos de particularismo e hierarquia, que são próprios dos problemas históricos das instituições democráticas na região, se manifestarem nas novas instituições ou no novo equilíbrio entre as instituições.”
A democracia no México é analisada por Rubén Aguilar Valenzuela, professor de Ciência Política e Comunicação Governamental da Universidad Iberoamericana, no México. “Ao término da fase armada da Revolução Mexicana (1910-1920), o grupo vencedor elabora um sistema político que permite dirimir o poder pela via institucional, o que se caracteriza pelo presidencialismo, o partido de Estado e o corporativismo”, explica. Lembra que, em 1977, inicia-se o processo da transição democrática, que termina em 2000, com triunfo do candidato opositor, Vicente Fox. “Hoje é uma realidade a intensa competitividade eleitoral. Agora a democracia mexicana se enfrenta com um conjunto de desafios maiores que é indispensável vencer, em curto tempo, para consolidar e aperfeiçoar o sistema. Três dos mais importantes são: acabar com a corrupção, reduzir os níveis de desigualdade social e ampliar os espaços de participação dos cidadãos.”
Revista USP, número 109, dossiê “Democracia na América Latina”, publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP (telefone 11 3091-4403), 160 páginas, R$ 20,00.