Arte e educação para todos é a regra

Com essa certeza, Ana Mae Barbosa e Annelise Nani Fonseca lançam o livro “Criatividade Coletiva - Arte e Educação no Século XXI”

 30/06/2023 - Publicado há 10 meses

Texto: Leila Kiyomura

Arte: Gabriela Varão

Estudantes da USP: criatividade estimula o espírito crítico – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“Agora, no início da década de 2020, educadores de todo o Ocidente recomeçam a falar da criatividade”, afirma Ana Mae Barbosa, arte-educadora e Professora Emérita da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Ao apresentar o livro Criatividade Coletiva: Arte e Educação no Século 21, da Editora Perspectiva, com organização sua e da professora Annelise Nani da Fonseca, ela destaca que o desenvolvimento da criatividade era o principal objetivo do ensino da arte dos anos 1960 aos anos 1980. Lembra que os anos 1960 foram marcados pela corrida espacial e que o lançamento do primeiro satélite artificial pelos russos, o Sputnik 1, em 1957, antes dos Estados Unidos, deixou os estadunidenses perplexos e se perguntando: “O que há de errado com a nossa educação?”. Alguns educadores, segundo Ana Mae, chegaram à conclusão de que faltava estímulo criador na educação.

“A partir daí até os anos 1970, o que se viu foram projetos, campanhas e verbas para desenvolver a criatividade na educação, e as artes muito ganharam no currículo com essa nova perspectiva”, assinala a arte-educadora. “Contudo, a reação dos estudantes estadunidenses contra a guerra do Vietnã, no fim da década de 70, justamente a geração que fora educada sob o signo do desenvolvimento da criatividade, fez com que o governo restringisse as verbas para a educação criadora, a fim de evitar a formação de mentes críticas que se voltassem contra os desígnios do próprio governo que os havia estimulado a serem criativos e, portanto, críticos.”

Ana Mae Barbosa - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Ana Mae Barbosa – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Ana Mae Barbosa se destaca no Brasil e na América Latina como a pioneira na luta pela arte-educação. “Desenvolvimento de criatividade é também desenvolvimento de capacidade crítica”, defende. “Isso os pesquisadores comportamentalistas já haviam descoberto.” 

“Os autores deste livro, de países diferentes, têm às vezes uma visão de tempo que difere umas das outras, como diferem suas culturas”

Criatividade Coletiva: Arte e Educação no Século XXI – Reprodução/Editora Perspectiva

Criatividade Coletiva: Arte e Educação no século 21 reúne artigos de dez pesquisadores, que debatem a criatividade aliada à educação e à ciência, na ação coletiva, no ativismo social contemporâneo e na arte. “Os autores deste livro, de países diferentes, têm às vezes uma visão de tempo que difere umas das outras, como diferem suas culturas”, explica Ana Mae.

Um dos pesquisadores que participam do livro é Malcolm Ross, em uma entrevista para Ana Mae Barbosa, concedida em 1982. É professor da Universidade de Exeter, na Inglaterra, e autor do livro The Criative Arts, uma referência para os estudiosos em arte-educação. “A visão de ensino de arte de Malcolm Ross, embora expressionista e, nesse sentido, datada, era também antecipatória, por ser voltada a uma das características da pós-modernidade, a saber, o retorno da ligação da arte com a vida”, conta a entrevistadora. 

O livro tem a presença também de John Steers, professor e consultor de agências governamentais, que atua para reformular a educação de arte e design no Reino Unido. No artigo Criatividade: Ilusões, Realidades e Novas Oportunidades, ele assinala: “Claro que há alguns exemplos excelentes de ensino criativo das artes e, para onde quer que olhemos no mundo, podemos encontrar excelentes professores de artes que devem ser reconhecidos. Mas estamos enganados se pensarmos que isso é norma. Muitas preocupações graves têm sido expressas durante várias décadas sobre ortodoxias dominantes nas abordagens ao ensino das artes. Ortodoxia é a antítese da criatividade”.

O texto de Enid Zimmerman, Professora Emérita da Indiana University School of Education, nos Estados Unidos, conta a sua história, desde as décadas de 1960 e 1970,  na luta pela arte-educação. “Concordo que, como arte-educadores, não devemos ficar nos bastidores, mas precisamos estar cientes de agendas políticas, econômicas e socioculturais para reconceitualizar a prática criativa e, ao mesmo tempo, satisfazer objetos educacionais.”

Fotos extraídas do livro "Criatividade Coletiva: Arte e Educação no Século XXI" – Reprodução/Editora Perspectiva

“A imaginação, a criatividade e a criação, que serviram para o crescimento e o consumo da sociedade, devem, agora, contribuir para a ecologização das nossas comunidades e de todos os setores da educação”

O Homo creator na Era da Industrialização da Mudança é o tema do artigo de Bernard Darras, professor de Semiótica e de Metodologia de Pesquisa na Université de Paris 1. Ele observa: “A imaginação, a criatividade e a criação, que serviram para o crescimento e o consumo da sociedade, devem, agora, contribuir para a ecologização das nossas comunidades e de todos os setores da educação, que devem unir esforços a fim de criar um novo estilo de vida com e no mundo, bem como uma nova arte de viver juntos”.

Daniel X. Harris, com mestrado na Universidade de Nova York e doutorado pela Universidade Victoria, na Austrália, escreve sobre criatividade e ativismo social contemporâneo. “Conforme a pesquisa baseada nas artes e outras metodologias criativas voltadas à prática seguem proliferando e se complexificando criticamente, o cruzamento entre empreendimentos da ‘academia’ e do ‘mundo real’ também se desfoca cada vez mais. Em tempos atuais, a criatividade é local frequente de tais desfoques.”

A Comunidade Criativa: Uma Pedagogia da Imagem é o artigo de Adolfo Albán Acinte, professor de Belas Artes com especialização em Pintura na Universidade de Bogotá. Ele faz uma retrospectiva da história da arte até o contemporânea, incluindo o processo decolonial. Observa: “O panorama anterior nos desvela uma rota problemática. Pensar na arte atual dos povos originários e também dos povos da diáspora africana supõe, necessariamente, leituras que permitam pensar na possibilidade de assumir a arte como uma pedagogia decolonial, ou seja, uma pedagogia que nos incentive a refletir em torno da maneira como esses povos têm tido genealogias e trajetórias criativas diferentes dos pressupostos da arte ocidental”.

Oficina de Máscaras Africanas promovida pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“A arte é um instrumento imprescindível para a identificação cultural e o desenvolvimento criador individual. Através da arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação”

Ana Mae Barbosa traz, no artigo Criatividade: da Originalidade à Ação Coletiva, a realidade do ensino da arte no Brasil. Traça os desafios que foi enfrentando. “No Brasil, a criatividade foi o objetivo mais invocado pelos defensores do ensino da arte durante o período de 1950 a 1980”, assinala. Em 1971, fiz uma pesquisa nos programas de arte das escolas secundárias em São Paulo e tive como resultado que 100% deles mencionavam o desenvolvimento da criatividade como principal objetivo.”

No decorrer da década de 1980 até meados de 1990, a palavra criatividade, segundo a educadora, foi banida do vocabulário pedagógico dos brasileiros; mas desde o final dos anos 1990 voltou-se a falar em criatividade na arte-educação. Entretanto, o conceito de criatividade mudou. “A arte é um instrumento imprescindível para a identificação cultural e o desenvolvimento criador individual. Através da arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação para apreender o que acontece com o meio ambiente, aprimorar a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e incrementar a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada”, defende Ana Mae.

Annelise Nani da Fonseca - Foto: Arquivo Pessoal

Annelise Nani da Fonseca – Foto: Arquivo Pessoal

Annelise Nani da Fonseca, com doutorado em Artes pela USP e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, é a parceira de Ana Mae Barbosa na organização do livro. É também autora de um dos artigos publicados na obra, Processo Criativo na Perspectiva da Neurociência. “Destaco as conjunturas sociais que fomentam o aculturamento, como a globalização, a mídia e as redes sociais, e que exercem um papel significativo para o processo criador, pois estimulam a alienação de si mesmo. Ou seja, aculturam justamente porque impedem o sujeito de construir seu repertório cultural com autonomia, impedimento que repercute diretamente na autoconsciência que, junto com o repertório pessoal, são ingredientes indispensáveis ao pensamento criativo.”

Ning Luo, doutoranda do Departamento de Educação da Universidade de Hong Kong, defende em seu artigo: “A criatividade é um tópico importante e tratado há bastante tempo em arte-educação. Atualmente, acadêmicos desafiam essa definição de criatividade, sugerindo que ela desconsidera o papel de um indivíduo na sociedade, e exclui a perspectiva de produção cultural”.

Vanessa Raquel Lambert de Souza, professora de Arte-Educação da Universidade de Juiz de Fora, apresenta um texto sobre os caminhos para pensar os processos criativos. Argumenta: a arte, seja na sua produção ou fruição, potencializa no ser humano a capacidade de criar e acessar o mundo e seu entorno. Ao mesmo tempo, constitui um meio em si para o desenvolvimento da criatividade.

A edição é encerrada com as reflexões de Marie-France Chavanne, que foi presidente da Internacional Society for Education Through Art. Vê a arte renascendo: “Enquanto nossa sociedade se desmancha e até mesmo se fanatiza, o espírito criativo caminha para privilegiar a pesquisa, a criação industrial, as artes, a economia e as tecnologias. Os conceitos novos, um tanto misteriosos, empunhados pelos mais ousados, se impõem”.

Criatividade Coletiva: Arte e Educação no Século XXI, de Ana Mae Barbosa e Annelise Nani da Fonseca (organização), Editora Perspectiva, 236 páginas, R$ 69,90.


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