Quatrocentos mil. Guarde essa marca, esse número. É com essa cifra pantagruélica que o Brasil vai fechar o mês de abril, um mês de longe o mais mortal que o País viu nesse pouco mais de um ano em que todos se viram engolfados pelo turbilhão terrível do novo coronavírus. O mês de abril está fechando suas portas levando junto o recorde de 400 mil mortes causadas pela doença, 100 mil nos últimos 30 e poucos dias. Em abril, o Brasil chegou também a outro triste marco: o de mais de 3 mil mortes por dia, em uma escalada que parece não ter paradeiro. É mais do que duas torres gêmeas do World Trade Center todos os dias – isso, sem terroristas suicidas pilotando aviões, mas sim com uma sucessão de desatinos. O programa Estúdio I da Globonews fez as contas: as 400 mil mortes contabilizadas no dia 29 de abril – 24 horas antes de fechar o mês – equivalem a algo como se 215 municípios brasileiros menos populosos tivessem sido riscados do mapa. É muita coisa, muito além do que qualquer um – com um mínimo de empatia – pode aceitar ou compreender.
Isso, em abril. Trinta dias. Culpa do mês, como os antigos costumavam culpar o coitado do mês de agosto, fazendo uma rima pobre e fatídica, chamando-o “de mês de desgosto” e responsabilizando-o pelas coisas erradas ou aziagas que aqueles dias regidos principalmente pelos astros em Leão poderiam ter trazido? Não. Mas é impossível se olhar para o calendário ao mesmo tempo em que se vê a sucessão de notícias e não pensar em um trecho do longo poema The Waste Land – em português, A Terra Devastada, do poeta e ensaísta anglo-americano T. S. Eliot:
Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
Noves fora a “primavera” citada por alguém que vivia no Hemisfério Norte – é só trocar por outono – e esse trecho de um poema escrito há quase cem anos e considerado um dos mais importantes da literatura mundial no século passado pode calar fundo naqueles que não têm uma caixa de cloroquina encrustada no peito. A “terra morta”, “memória e desejo” pairando sobre mentes e almas, o título em português – repita-se, A Terra devastada. Tudo ressoa tristemente atual neste abril, neste “mais cruel dos meses” na luta diária contra o vírus do mal. Nem os igualmente poéticos entardeceres outonais de abril conseguem atenuar uma marca que parece mirar o meio milhão nos próximos meses. Tomara que erre, mas não se pode normalizar um número desses – e a pandemia e o governo ganharam em abril uma CPI novinha para chamar de sua.
Enquanto isso, há aqueles que preferem – entre tropeções linguísticos e cenas constrangedoras, para sermos minimalistas – olhar para o outro lado e descortinar miragens geográficas, como unir Amazônia e Antártida em uma mesma frase ao se referir às “riquezas naturais do Brasil”. Abril também pode ser eivado de absurdos.
Livros e tributação
Porque em meio aos números trágicos da pandemia, o Brasil ainda encontra espaço para outros absurdos sociais. Como o de se voltar a uma cantilena que começou no ano passado e que dá bem a medida de como as ideias andam descompassadas do lado de cá do Equador. No começo de abril, na esteira de uma propalada reforma tributária preconizada pelo Ministério da Economia, a Receita Federal retomou a defesa de uma proposta que nasceu em 2020, em agosto – desgosto? –, que dava métrica para a taxação de livros, tributando-os em 12%. A justificativa? Os brasileiros mais pobres não leem livros não-didáticos.
“De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos”, informou a RF, em reportagem do jornal Correio Braziliense. Pode-se desfiar uma série de argumentos contra essa proposta, a começar por questões jurídicas e constitucionais, já que a Constituição veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios cobrar tributos de livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão. “A imunidade ao livro é um direito constitucional”, destacou a professora Marisa Midori, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e colunista da Rádio USP. “Isso é imoral, é um escândalo e ao mesmo tempo é um tiro no pé, porque é contraproducente, já que está prejudicando uma indústria que em vários lugares do mundo tem apoio fiscal. Na economia, mesmo para os neoliberais, há setores que não podem viver sem esse tipo de auxílio”, afirmou ela ao Jornal da USP ano passado e reforçou recentemente em entrevistas quando o assunto voltou à baila.
Mas, fora o fator jurídico, há outros fatores que uma certa miopia tributarista não viu – ou preferiu passar ao largo: além do caso de o livro ser fundamental para qualquer país que preze a educação e a cultura de seus cidadãos, uma tributação iria deixá-lo mais caro, o que dificultaria ainda mais o acesso daqueles que querem ler. Ou será que ninguém parou para pensar que as classes menos favorecidas não leem porque o livro é caro, e não porque não gostam de ver palavras enfileiradas em uma grande porção de papel encadernado? Livro não é artigo de luxo para a elite, e sim item de primeira necessidade para a formação da cidadania.
A triste ironia é que essa discussão sobre a taxação livresca retornou em abril, justamente no mês em que se comemora o Dia Mundial do Livro. Desde 1995, quando foi instituído pela Unesco, o dia 23 abril é a data que comemora a existência do livro, mesmo com todas as fogueiras reais ou metafóricas que insistiram – e ainda insistem – em fazê-lo arder. E por que 23 de abril?
Porque foi nesse exato dia, em 1616, que morreram Miguel de Cervantes, William Shakespeare e o bem menos conhecido (mas não menos importante) Inca Garcilaso de la Vega – este considerado o “príncipe dos cronistas do Novo Mundo”. Talvez os defensores da tributação não tenham se atido a isso, mas até faz sentido, já que o Brasil teve um ex-prócer governamental que conseguiu confundir o checo Kafka com um quitute árabe. Metamorfose é isso aí. E a data, sufocada pelos números da covid-19 e os recordes macabros de abril, foi praticamente eclipsada.
Mas, no final das contas, talvez abril realmente não tenha culpa de nada – são 30 dias emparedados por más notícias que não cabem ao calendário gregoriano explicar. E, para não dizer que jornalista só fala de coisas ruins – matar o mensageiro é sempre mais simples –, abril cravou a marca de 30 milhões de brasileiros vacinados. Ainda é pouco? Com certeza, mas é um caminho em meio a tanto arame farpado viral. E um lembrete: maio é o “mês das noivas” na cultura popular. Não é nada, não é nada – talvez não seja nada, mesmo.